O que é a interseccionalidade por ​​Eunice Aparecida de Jesus Prudente

Eunice Aparecida de Jesus Prudente é professora sênior do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP. Atualmente é Secretária Municipal de Justiça da Cidade de São Paulo, integrando também a Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo.
Eunice Aparecida de Jesus Prudente é professora sênior do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP. Atualmente é Secretária Municipal de Justiça da Cidade de São Paulo, integrando também a Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo.

No dia 2 de março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente sobre interseccionalidade.

INB:  Atualmente, as abordagens interseccionais têm sido utilizadas para discutir relações de opressão que acontecem na sociedade. Qual é o significado da “interseccionalidade” e sua importância nos debates atuais? 

Eunice: A interseccionalidade é um sistema sociológico que permite o entrelaçamento de informações e dados para esclarecimento de questões sociais complexas, envolvendo questões sociológicas, econômicas e históricas. Para exemplificar, é possível pensar no Brasil, cuja riqueza cultural encontra fundamentos na cultura de povos de todo o mundo. No entanto, discriminações e ações violentas estão presentes entre os brasileiros. 

Diante dessa matriz diversa, como entender as discriminações e violências que se voltam para pessoas específicas?

Dentre elas, encontram-se a discriminação racial e de gênero. Um exemplo de sua manifestação acontece com a naturalização do lugar social da pessoa negra, que frequentemente ocupa uma posição de subalternidade na sociedade brasileira. Raízes nos quatrocentos anos de escravização! Trata-se de uma posição enraizada em uma política preconceituosa e racista, extremamente complexa e que precisa ser elucidada por meio de informação. A violência contra as pessoas negras e as mulheres, especialmente as mulheres negras, deve ser levada em consideração pelas instituições que pretendem se aprimorar rumo ao estado democrático de direito.

A abordagem interseccional, por meio de sua tecnologia, estabelece uma base de dados fundamental para reconhecer as opressões existentes na sociedade. No entanto, não basta apenas conhecer a questão; é necessário atuar para combater as violências.

Do meu ponto de vista, o feminismo negro contribui muito com a luta pela emancipação das opressões. Na década de 1960, a pensadora e ativista Angela Davis inovou no campo filosófico ao discutir as relações entre gênero, raça e classe social. Suas ideias são fundamentais para complexificar o debate feminista da época, ao reconhecer que entre as próprias mulheres há uma enorme coletividade e diversidade. A mulher negra, por exemplo, possui um universo de vivências e especificidades distintas da mulher branca. Esse avanço representa uma verdadeira revolução no próprio sistema de direitos humanos.

Contemporâneas, temos as feministas negras que se dedicam a estudar as relações interseccionais existentes no Brasil, como Lélia Gonzalez, Maria Beatriz Nascimento, Edna Roland e Sueli Carneiro. Essas brilhantes pensadoras contribuíram para o próprio desenvolvimento das políticas de direitos humanos fundamentais conquistadas graças as ações políticas dos movimentos negros e das instituições internacionais  firmadas no pós guerra.

Além disso, nota-se que, desde a segunda metade do século XX, o aprimoramento das relações internacionais também resultou na criação de órgãos importantes para o reconhecimento dos direitos humanos como indisponíveis. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, é uma instituição que colabora muito para a visão sobre as coletividades sujeitas a direitos com olhares para os estados americanos.

Há décadas atrás, fui secretária do Departamento de Direito do Estado na Universidade de São Paulo (USP), onde agora tenho a honra de ser professora sênior. Naquela época, escrevia com máquina de escrever e me lembro de datilografar petições do professor Dalmo de Abreu Dallari defendendo comunidades indígenas. Eu perguntava a ele como era possível localizar cada um dos sujeitos na peça judicial e o professor, tão comprometido com a luta pelos direitos humanos, destacava a importância de se olhar para a coletividade. Por exemplo, a comunidade indígena Pataxós é uma coletividade sujeito de direitos humanos a ser portanto defendida em juízo.

Hoje as mulheres  já figuram como coletividade sujeito de direitos e se constrói a coletividade de mulheres negras brasileiras como sujeito de direito perante o Judiciário. 

Foram essas e muitas outras experiências na USP que me fizeram consciente da importância dos estudos interseccionais ao refletir sobre os direitos humanos. Desse ponto de vista, as ideias de Norberto Bobbio são excelentes, pois observam como as revoluções liberais motivaram a conquista da liberdade. No entanto, a noção de liberdade torna-se mais delicada à medida que avançam as revoluções industriais. Isso ocorre porque, com o desenvolvimento desse processo, forma-se uma nova classe social de trabalhadores urbanos que possui características específicas. E as desigualdades afloram!

De certa maneira, com a sociedade industrial, uma nova série de complexidades surge, e o Brasil não está alheio a esse fenômeno. Para combater essa situação, algumas iniciativas foram criadas no país. A partir da década de 1970, com a lei da ação civil pública, que contribui para a proteção de uma série de grupos sociais discriminados, como as mulheres negras, a população LGBTQIAP+, etc. Essas pessoas dependem muito da existência de um Estado Democrático de Direito para sua conservação e desenvolvimento.

INB: Em seu livro A era dos direitos, Norberto Bobbio sustenta que o maior desafio em relação aos Direitos Humanos na atualidade não é mais a sua fundamentação, mas sim sua efetivação. Isso significa enfatizar a dependência que os Direitos Humanos têm em relação ao Estado. Na sua opinião, como a adoção de uma perspectiva interseccional contribui para a efetivação dos Direitos Humanos?

Eunice: A abordagem interseccional no Brasil proporciona uma visão abrangente sobre questões sociais muito complexas. A metodologia que ela adota fornece dados muito importantes sobre as diversas opressões que ocorrem no país e como o machismo e o racismo estão presentes na vida cotidiana de todos nós. A partir dessa sólida base de informações, os governos podem elaborar políticas públicas com o objetivo de melhorar essa realidade e, assim, defender os direitos fundamentais.

Esclarecendo que a política de dados abertos a permitir  propiciar o olhar interseccional somente ocorre no Estado Democrático de Direito.

A Constituição de 1988 reconhece que os direitos fundamentais são indisponíveis, ou seja, qualificam-se como obrigações de fazer e de não fazer para os governos. Embora sejam frequentemente romantizados, sua validade ainda é incontestável. Talvez a disposição constitucional mais importante da Carta Magna esteja no artigo 5, parágrafo 2, que determina que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais dos quais a República Federativa do Brasil faça parte.

Portanto, a própria Constituição Federal reconhece a existência de outros sistemas de direitos humanos que devem ser reconhecidos no Brasil. Todas essas nuances são fundamentais para combater as diversas opressões, como aquelas dirigidas às mulheres negras, aos homens negros, à comunidade LGBTQIAP+, etc. E a interseccionalidade é justamente uma forma de atuação a partir de dados que, apesar de aparentemente distintos, se referem aos seres humanos.

INB: No século XXI, observa-se não apenas a manutenção, mas um aprofundamento de diversas violações de Direitos Humanos. Um dos aspectos notáveis desse processo refere-se às opressões étinico raciais e de gênero. Como a senhora avalia esse cenário?

Eunice: Esta é uma questão muito delicada. Do meu ponto de vista, o fascismo acompanha a humanidade até hoje, apesar de ser um fenômeno que ocorreu no início do século XX. Isso significa que o exercício da cidadania no século XXI precisa estar muito atento às ameaças fascistas que pretendem retornar ao poder.

A situação se agrava ainda mais ao considerar que essa não é uma tendência exclusivamente brasileira. Ao redor do mundo, existem intimidações fascistas promovidas por governos ditatoriais e despóticos.

Acredito que a solução para isso seja o investimento em uma educação de qualidade que forme cidadãos. Paulo Freire dizia que quando a pessoa não é devidamente educada, a tendência do oprimido é imitar o opressor. Ele acha que tem valor aquele que grita, que usa armas, que humilha, que tem dinheiro, que pisa nos outros e se considera superior. É preciso quebrar essa lógica por meio da educação.

As pessoas precisam se sentir representadas pelo governo. E isso não é um mero capricho, é uma determinação clara da Constituição de que todo o poder emana do povo. O cidadão precisa conhecer as instituições políticas, pois são elas que vão medir as consequências das ações gravíssimas do fascismo e da dominação do ser humano e das inteligências.

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