Platão por Marco Antônio de Ávila Zingano

Marco Antônio de Ávila Zingano é professor de filosofia antiga na Universidade de São Paulo. Autor de diversos artigos em revistas especializadas, publicou Razão e História em Kant (Madamu, 2020 - 2. ed); Razão e Sensação em Aristóteles: um ensaio sobre De Anima III 4-5 (L&PM, 1998); Platão e Aristóteles: O Fascínio da Filosofia (Odysseus, 2005 - 2.ed), além de ter editado as coletâneas de ensaios Sobre a Metafísica de Aristóteles (Odysseus, 2009 - 2.ed) e Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles (Odysseus, 2010). Está em curso sua tradução integral é amplamente anotada da Ethica Nicomachea da qual já foram publicados três volumes: O Tratado da virtude moral: I 13 - III 8 (Odysseus, 2008- nova edição em preparação), O tratado da Justiça: v I - 15 (Odysseus, 2017) e As Virtudes morais: III 9 0 IV 15 (Odysseus, 2020). Os Estudos de ética antiga estão na 3a edição pela EDUSP, com novos ensaios.
Marco Antônio de Ávila Zingano é professor de filosofia antiga na Universidade de São Paulo. Autor de diversos artigos em revistas especializadas, publicou Razão e História em Kant (Madamu, 2020 - 2. ed); Razão e Sensação em Aristóteles: um ensaio sobre De Anima III 4-5 (L&PM, 1998); Platão e Aristóteles: O Fascínio da Filosofia (Odysseus, 2005 - 2.ed), além de ter editado as coletâneas de ensaios Sobre a Metafísica de Aristóteles (Odysseus, 2009 - 2.ed) e Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles (Odysseus, 2010). Está em curso sua tradução integral é amplamente anotada da Ethica Nicomachea da qual já foram publicados três volumes: O Tratado da virtude moral: I 13 - III 8 (Odysseus, 2008- nova edição em preparação), O tratado da Justiça: v I - 15 (Odysseus, 2017) e As Virtudes morais: III 9 0 IV 15 (Odysseus, 2020). Os Estudos de ética antiga estão na 3a edição pela EDUSP, com novos ensaios.

No dia 14 de março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com o professor Marco Zingano a respeito das contribuições de Platão na filosofia.

INB: Qual é a importância e o significado da filosofia platônica ? 

Marco:  O filósofo inglês Alfred North Whitehead dizia que a filosofia se resume, basicamente, em um compilado de notas de rodapé sobre a obra de Platão. Tal afirmação pode até  parecer excessiva, mas ela possui um fundo de verdade. De fato, Platão criou um gênero que possui aspectos literários próprios e seus diálogos são de uma beleza encantadora. Contudo sua verdadeira inovação reside em demonstrar os  fundamentos da filosofia,  a partir de uma análise filosófica extremamente refinada. 

De certo modo, aprendemos a filosofar pela leitura de seus textos e dos chamados escritos socráticos. Sobre esse aspecto, Aristóteles relata que, logo após a morte de Sócrates, muitos intelectuais passaram a escrever diálogos e textos seguindo seu método. Dentre os autores que adotaram a lógica socrática, destaca-se Xenofonte, um importante discípulo e biógrafo grego. Ele relata que Sócrates possuía duas virtudes louváveis: a capacidade de suportar o sofrimento sem reclamar e a temperança. 

Platão dá um passo além pois pretende discutir os aspectos do caráter de Sócrates, do ponto de vista de seu significado. Nesse sentido, a  intenção é identificar a natureza da temperança atribuída a Sócrates. Em Cármides, Platão explicita a essência filosófica dessa virtude. Percebe-se que seu esforço está em explorar de fato as ideias socráticas, o que vai muito além de seus feitos heróicos. 

Esse tipo de análise conceitual pretende evidenciar quais são os elementos básicos que compõem determinadas noções. No diálogo Protágoras, por exemplo, Platão investiga a possibilidade de uma virtude isolar-se das demais ou se, necessariamente, ela precisa coexistir com outras. Hoje em dia, talvez essa reflexão possa ser considerada um clichê tipicamente filosófico mas, na época, era realmente importante.

A escola de Platão

Atenas, por ser uma cidade culturalmente próspera desde sua fundação, é o terreno sobre o qual Platão inspirou-se para elaborar esse tipo de discussão. As inovações que propunha impactaram a comunidade local e sua influência começou a atrair discípulos. Diante desse cenário, fundou uma espécie de escola onde os estudantes adotaram seu método analítico, embora não fossem obrigados a concordar com as teses.

Dentre os membros da academia de Platão, destaca-se Aristóteles, um autor que criticou duramente as teorias platônicas. No entanto, isso nunca o impediu de ser um discípulo fiel por vinte anos. Isso porque o método proposto por ele baseava-se na análise criteriosa dos problemas, de modo que a clareza conceitual deveria prevalecer na abordagem de qualquer assunto. Mais do que adotar posições ou defender teses, a ênfase recai na busca por uma atitude reflexiva. Platão emerge como criador de um gênero filosófico que institui uma cultura de discussão.

É verdade que outros pensadores, como os pré-socráticos, também exploraram questões filosóficas. Porém, as contribuições de Platão no campo da Filosofia são de uma elegância singular e  memorável. Seus textos despertam a paixão e o desejo de conhecimento. A importância do autor reside em sua influência fundadora, pois estabelece as bases e os procedimentos claros para a prática filosófica.

INB: Qual é a peculiaridade distintiva na relação filosófica entre Platão e Sócrates e como essa relação se reflete na abordagem e nas contribuições individuais desses dois pensadores?

Marco:  Trata-se de uma relação muito peculiar na história da filosofia, especialmente porque só é possível conhecer um Sócrates por meio da escrita de Platão e de outros autores contemporâneos que escreveram sobre ele.  Esse é um elemento importante que caracteriza a obra platônica.

Nota-se que Platão é resistente em escrever em primeira pessoa e opta pelos diálogos para desenvolver o raciocínio filosófico. Também é curioso que Sócrates seja frequentemente o personagem central, embora existam diálogos em que outros personagens ocupem o papel central, como é o caso de As Leis. Mas é inegável como a presença de Sócrates nos diálogos  revela as teses associadas ao próprio Platão.

Especialistas da filosofia platônica costumam identificar três fases distintas dos diálogos. Em um primeiro momento, Sócrates é apresentado como alguém que refuta sua própria sabedoria e a dos outros, pois sugere que ninguém verdadeiramente sabe sobre nada. Trata-se de uma atitude que parece refletir mais a visão de Sócrates do que a de Platão. Em contrapartida, em uma obra como a República,  Sócrates apresenta-se como porta-voz de doutrinas e lições cujo objetivo é ensinar o interlocutor. Nesse caso, Platão utiliza-se de Sócrates para transmitir suas próprias teses. Na terceira fase, Platão discute suas próprias teses, o que denota uma evolução e refinamento metodológico e reitera sua capacidade de reexaminar suas próprias perspectivas filosóficas.

Nas mãos de Platão, Sócrates se converte em uma personagem. É difícil estabelecer os limites precisos entre os textos de Platão e Xenofonte. É preciso ter cuidado ao comparar as semelhanças existentes entre as teses desses autores e concluir que elas pertencem a Sócrates. Na verdade, cada um deles retrata Sócrates de acordo com sua percepção sobre a atitude socrática.

Na Apologia de Sócrates, Platão narra um evento extraordinário que ocorreu em 399 a.C., quando Sócrates foi condenado à morte e fez sua própria defesa no tribunal. A leitura do texto revela que tal condenação marcou profundamente a reflexão de Platão, de maneira que, em diálogos posteriores, esse evento é frequentemente referido. Por exemplo, no Político, ao se discutir sobre a convocação de pessoas para que, frequentemente, carecem de conhecimento e tomam decisões baseadas em opiniões. Isso é um problema, porque a opinião enquanto fundamento da decisão pode aumentar o risco de condenações injustas; por outro lado, a condenação de Sócrates está por trás desses debates.

Sócrates, além de uma personagem, foi uma figura extremamente influente na vida ateniense mesmo sem deixar registros escritos. Talvez por isso Platão tenha se dedicado a escrever tanto sobre seu método e pensamento. De certo modo, Sócrates é responsável por impulsionar Platão a se engajar na filosofia. Mas todos esses apontamentos devem ser compreendidos com cautela. A busca pelo verdadeiro Sócrates deve considerar as diversas maneiras que ele é retratado por Platão e Xenofonte, pois suas perspectivas não coincidem e representam interpretações distintas. Ademais, deve-se reconhecer que Platão tenta alcançar uma compreensão mais profunda dos fatos e das questões éticas em um contexto mais amplo que extrapola a figura pessoal de Sócrates.

INB:  Em que sentido o Direito é compreendido pela filosofia platônica?

Marco: Há duas obras de Platão que estão diretamente relacionadas às questões do Direito. A primeira delas é República, na qual se investiga a existência da justiça e se a conduta justa sempre é recompensada. O texto conduz um experimento mental ao colocar a seguinte questão: se um indivíduo assegura-se que nunca  será descoberto, ele agirá de maneira ilícita ou lícita diante da ausência da punição?

  A resposta platônica requer uma reflexão profunda sobre o significado da justiça e do Direito. Evidentemente, não se trata de uma análise jurídica convencional, mas sim de uma ponderação sobre os motivos que implicam agir injustamente e se, sobretudo,  é possível confiar no justo, mesmo  diante da impunidade e da ausência de recompensa. 

Na República, Platão constrói uma cidade ideal, denominada “Kallipolis” ( que significa cidade bela), para demonstrar a ideia de que os filósofos devem ser os governantes que, por sua vez, devem se dedicar à filosofia tanto quanto possível. Essa cidade ideal possui uma estrutura altamente idealizada e Platão não se preocupa em demonstrar sua viabilidade prática.

O interesse de Platão em estabelecer um ambiente propício à educação desde a mais tenra infância, deve-se a sua pretensão de orientar as pessoas para o belo e justo Ele chega até mesmo a sugerir que a educação musical deveria começar já no ventre, revelando sua preocupação em criar uma sociedade de cidadãos virtuosos.

Posteriormente, seu diálogo Leis apresenta três idosos caminhando rumo a uma cidade onde planejam estabelecer suas próprias legislações e constituições. Durante a jornada, eles discutem longamente questões relacionadas aos seus objetivos. Esse diálogo foi concluído por um assistente de Platão e é um dos exemplos mais notáveis de sua preocupação com o direito.

Bons e maus governos, segundo Platão

Em outro diálogo, intitulado Político, retoma-se a distinção clássica entre governos regidos pelas leis e governos que agem sem sua observância. Ele identifica tais modalidades de acordo com os princípios legais derivados da realeza, da aristocracia e da democracia. Sob seu ponto de vista, o melhor governo regulado por leis seria a realeza, seguida pela aristocracia e por fim pela democracia. Por sua vez,  a tirania é a pior forma dentre os governos que agem de acordo com desejos e caprichos individuais.

Uma outra reflexão interessante de Platão sobre o Direito diz respeito a idealização de uma sétima Constituição,fruto do trabalho de um filósofo que possui conhecimento sobre a política, a natureza das coisas e seu valor intrínseco. A sétima Constituição, de acordo com Platão, é por vezes considerada uma manifestação divina que raramente poderia ser realizada.

No entanto, se uma pessoa possuir o conhecimento da verdadeira ciência política – daquilo que ele chama de “ciência real” – ela não deveria estar sujeita às leis. Com base no seu conhecimento, seria capaz de criar as leis para os demais seguirem. Trata-se de um raciocínio comparável à relação de um médico com as regras que prescreve para o paciente seguir.

No entanto, há em Platão uma ambiguidade. Por um lado, ele acredita que todos devem seguir as leis, pois os governos que se apoiam nelas são preferíveis aos que não possuem tal estrutura. Por outro lado, o verdadeiro conhecimento liberta o sujeito da subordinação. 

Como se vê, a ambiguidade da perspectiva platônica revela-se também em  suas reflexões sobre leis, Direito e constituição. Ao mesmo tempo que valoriza a obediência, também sugere que o conhecimento real impossibilita a obediência. Essa perspectiva é surpreendente porque desafia a noção convencional de que todos, independentemente de seu conhecimento, devem sujeitar-se às mesmas leis.

INB: A tentativa de abordar a atualidade da obra de Platão cai muitas vezes em raciocínios anacrônicos. Na sua opinião, como os textos platônicos auxiliam na formação dos estudantes de hoje?

Marco:  Essa questão é pertinente, pois pretende avaliar a relevância contínua da investigação filosófica. Fazer filosofia é, essencialmente, retornar aos princípios e elementos que fundamentam uma determinada perspectiva e guiam as principais linhas das abordagens intelectuais. Voltar a Platão é recuperar aquilo que se espera de qualquer análise filosófica: reavaliar o objeto a partir de sua origem e de seu fundamento primordial.

As virtudes cardinais de Platão

Para ilustrar o argumento, um exemplo interessante é o diálogo  Protágoras, que mencionei anteriormente. Platão tenta demonstrar que existem apenas quatro virtudes aquelas sem as quais um ser humano não pode ser verdadeiramente moral: conhecimento, justiça, coragem e temperança. Segundo o autor, a piedade não pode ser considerada uma virtude autônoma, pois é parte intrínseca da justiça.

No entanto, é possível questionar: por que justamente essas virtudes são cardinais? Trata-se de uma manobra conceitual de Platão e o curioso é que tomamos suas conclusões como algo inerentemente óbvio. No entanto, as virtudes cardinais são construções intelectuais cujo objetivo é restringir o escopo semântico  do conceito. Tal esforço baseia-se na tese de Platão sobre a unidade das virtudes, especialmente quando trata da ideia de que toda virtude moral é um tipo de conhecimento.

Aqui está a essência: Platão realiza manobras conceituais fundamentais, com as quais lidamos até hoje sem notar. Eu gosto de dizer que esse processo constitui uma verdadeira “operação” do autor, justamente porque é composto de ações intelectuais  que executa e depois transmite aos leitores. As virtudes cardinais, por exemplo, são operações executadas por ele e encontram-se na origem das interpretações fundamentais da filosofia. Portanto, recuperar Platão é também voltar às origens. 

Nesse sentido, é muito interessante estabelecer um diálogo abrangente entre a contemporaneidade e os pensadores dos séculos anteriores. Assim, é possível avançar na tentativa de compreender nossa própria posição no presente. Trata-se de um processo que envolve retomar os princípios essenciais e, tratando-se da atualidade de Platão, sua obra é a fonte elementar que deu origem às primeiras formulações filosóficas. Por essa razão, até hoje é um autor incrivelmente relevante e que provoca a reflexão sobre diversos conceitos.

A beleza da simplicidade

Essas considerações podem parecer abstratas, uma vez que a filosofia é em si mesma um discurso abstrato. No entanto, a análise filosófica inicia-se quando o sujeito incorpora e entende a natureza do argumento. Imaginemos que existam duas teorias para explicar o mesmo fenômeno sob as mesmas condições empíricas, sendo que uma delas é mais complexa do que a outra. Diante dessas possibilidades, é natural supor que a tendência é escolher a explicação mais simples.

A beleza da simplicidade é evidente e reconhecida no campo conceitual. Pode até parecer surpreendente, mas existem diversos argumentos que explicam as razões da preferência para explicações menos complexas. Mas deve-se lembrar que as bases desses esforços  encontram-se no primeiro livro da República, quando Platão demonstra que a unicidade da fruição serve para garantir a unidade do objeto e nã o contrário. 

Nota-se que apesar de tal atitude intelectual parecer ser natural, ela é um produto da reflexão de Platão. Ele perguntou onde reside a unidade do objeto e encontrou na unicidade da função sua resposta. Em outras palavras, um objeto é considerado uno por excelência quando realiza apenas uma única função. Isso significa que a simplicidade é o último garantidor da unidade. De fato, trata-se de um conceito peculiar, mas que até hoje é operado em níveis abstratos.

Até mesmo Aristóteles aceitou essa tese platônica. Ele a menciona no início de sua obra Política, no momento em que critica um indivíduo que obteve sucesso comercial em Delos. Esse sujeito tornou-se popular em um centro de peregrinação destinado ao sacrifício e preparo de animais, pois inventou uma faca que possuía várias funções diferentes. Aristóteles critica esse fato pois, do seu ponto de vista, a natureza não opera de maneira mesquinha ao combinar múltiplas funções em um único objeto.

A ideia de que a simplicidade garante a unidade é uma tese platônica e retomar Platão simboliza um retorno aos  princípios e fundamentos filosóficos. Talvez esse exercício não convença todos quanto à atualidade do autor, mas o fato é que suas contribuições sobreviveram ao longo do tempo. Sua potência reside na capacidade de formular questões de forma vívida e, com a mesma vivacidade, perseguir as respostas. 

INB: Qual é o significado e as principais características da ética platônica?

Marco: Talvez esta contribuição de Platão no debate sobre ética tenha uma importância ligeiramente menor, do que a de Aristóteles, um de seus discípulos. Contudo, uma das principais teses de Platão, embora  simples, é significativa. De acordo com ele, a razão é holística, pois a mera compreensão sobre a natureza do objeto implica a identificação de seu valor moral e se faz na relação com todas as outras coisas.

Nesse sentido, não há uma separação no uso da razão. O valor moral encontra-se implicado no conhecimento. Isso é importante porque Platão atribui um valor positivo à razão, como se ela fosse exclusivamente orientada para o bem. Portanto, não existe possibilidade de manipulá-la para obter vantagens próprias e imorais.

Além disso, a ética platônica envolve noções como episteme, sophia e phronesis, que são valorizadas por Aristóteles em sua teoria sobre o conhecimento moral. Por exemplo, na República, Platão defende que os governantes devem se dedicar à filosofia, o que implica assumir que os filósofos devem ser os governantes. O filósofo, de acordo com tal perspectiva, respeita o método dialético e, após uma investigação profunda, torna-se capaz de contemplar a natureza de todos os objetos. Assim, conhece-se o que são de forma abrangente.

Segundo o autor, a consequência desse processo é que o filósofo também adquire consciência moral sobre os valores. Dessa maneira, torna-se um agente da moralidade e sabe exatamente o que deve ser buscado para agir de modo moralmente correto.

A divisão da alma humana por Platão

Uma outra reflexão fundamental da ética platônica refere-se à ideia de que a alma humana é dividida em três partes. Platão discute o tema em seus diálogos, mas ele ganha destaque especialmente no quarto livro da República. Segundo o autor, a alma possui três fontes de motivação: os apetites, que buscam o prazer; a razão, que busca o “bom” definido com base em argumentos; e a parte irascível que motiva a reação defensiva diante de injustiças.

Sua teoria sobre a divisão da alma torna-se mais complicada quando assume que pode haver conflitos internos que desequilibram o sujeito na busca de seu bem-estar. A partir dessa construção, Platão estabelece que as ações vis são praticadas porque a alma encontra-se em desequilíbrio. Um exemplo disso ocorre quando a parte apetitiva ganha predominância sobre a parte racional e assim por diante.

Sob a perspectiva da filosofia moderna, há um reducionismo em relação às  partes da alma. Isso porque  é comum dizer que todos nós somos racionais e irracionais ao mesmo tempo.  Nesse sentido, o verdadeiro desafio consiste em dominar as duas tendências para que uma não se sobreponha à outra. No entanto, a complexidade da teoria platônica  demonstra que a ação injusta por decorrer do desequilíbrio psíquico, encontra-se implicada na reflexão ética que envolve a busca por harmonia. A racionalidade deve dominar para emitir ordem aos apetites e impulsos. 

A antropologia pessimista de Platão

Platão possui uma antropologia pessimista que influencia profundamente sua análise ética. Ele acredita que o conhecimento é acessível a poucos e apenas algumas pessoas conseguem alcançá-lo. Nós, como parte da maioria, somos considerados inferiores e o conhecimento não se dissemina naturalmente.

Do seu ponto de vista, conhecer não se restringe a saber o que é um objeto, mas também significa identificar seu valor intrínseco. Somente assim é possível agir de maneira justa. Para Platão, a maioria das pessoas age de acordo com opiniões e não com conhecimento.

A posição do autor está relacionada a um desafio prático que precisa enfrentar: o intelectual precisa se posicionar como filósofo, para que possa transmitir suas ideias e garantir convencimento.  É tarefa do filósofo veicular a verdade por meio do conhecimento, enquanto os demais só disseminam opiniões sem ter certeza se são verdadeiras.

A perspectiva platônica de que apenas um grupo restrito é capaz de transmitir o conhecimento enfrenta um problema. Os poetas, por exemplo, são pessoas que também transmitem conteúdos. Hesíodo, inclusive, discute a própria constituição da justiça. No entanto, os poetas não podem ser considerados filósofos e, por isso, estão desconectados da verdade. Os conteúdos que compartilham podem até ser verdadeiros, mas não são necessariamente verdadeiros da mesma forma que os dos filósofos. Dessa forma, o filósofo deve não só ocupar uma posição especial, mas precisa assegurar que ninguém mais a ocupe.

A partir desse raciocínio, ele conclui que é absolutamente necessário que os poetas sejam expulsos da cidade. Isso porque busca afastar todos aqueles que têm a habilidade excepcional de transmitir conteúdos que, embora não sejam verdadeiros, possuem a  beleza extraordinária da poesia e da arte retórica.

A dificuldade de lidar com a maioria

O segundo desafio enfrentado por Platão é a necessidade de lidar com a maioria, que age de acordo com opiniões Por causa disso, é provável que a massa nunca alcance o verdadeiro conhecimento. A maioria deve internalizar os conteúdos transmitidos pelos filósofos, mesmo que estes não sejam transmitidos com a mesma elegância daqueles difundidos pelos poetas.

Então, deve-se perguntar: por que a maioria continuaria a ouvir os filósofos se ela mesma não possui o critério para discernir a própria verdade? Platão explora esse dilema em um notável diálogo chamado Górgias, cuja terceira parte relata o debate entre Sócrates e Cálicles, que demonstra desinteresse em permanecer na conversa. Cálicles menciona que a filosofia é uma tarefa para a juventude e que deve ser deixada de lado em prol de empreendimentos mais sérios. Em um determinado momento, a personagem se retira do diálogo e Sócrates cria uma versão fictícia de Cálicles para conduzir um diálogo fictício.

Além da beleza literária própria da habilidade platônica, surge um problema. O que acontece se alguém não quiser escutar o filósofo? Como fazer com que adquira os conteúdos necessariamente verdadeiros que apenas o filósofo possui? Não parece haver nenhuma solução evidente para isso. Trata-se de um ponto cego na filosofia prática de Platão.

Ele precisa acreditar que, ao ouvir um filósofo como Sócrates, o interlocutor será ao final convencido por seus argumentos e adotará suas opiniões. No entanto, quando ele se depara com alguém como Cálicles, é totalmente desarmado e não consegue propor uma solução imediata.

Imaginemos um hedonista, cuja busca pelo prazer constitui objetivo principal de sua vida. Se ele for obstinado, ninguém conseguirá demonstrar de forma conclusiva que deveria renunciar à sua perseguição insaciável por prazer, a menos que concorde em ouvir argumentos. Ou seja, a menos que o hedonista adote uma postura de interesse pelo conhecimento.

O maniqueísmo da razão

Outro tema distintivamente platônico é a concepção de que há uma razão intrinsecamente boa e verdadeira, que permanece imaculada apesar das paixões e apetites que frequentemente nos inclinam para o falso. Isso estabelece uma dicotomia entre a esfera das emoções e a esfera da razão que permanece até hoje no nosso. A crença na  razão em contraste com uma profunda desconfiança nas emoções é uma noção muito comum entre nós.

Além disso, é vital reconhecer que o pensamento político de Platão está intrinsecamente vinculado à sua ética. Sua abordagem visa a elevar o filósofo a uma posição privilegiada, reconhecendo-o como detentor do verdadeiro conhecimento. O filósofo ocupa uma posição extraordinária e age sempre de forma correta. 

Nesse contexto, tal característica confere ao poder um caráter especial quando ocupado pelo filósofo. Não se trata apenas de ocupar uma posição de domínio, mas sim de fazê-lo por mérito. Como um reflexo invertido no espelho, Platão coloca o seu oposto sempre abaixo. A figura do filósofo contrasta com a do tirano, cuja imagem é de alguém completamente avertido, que apenas satisfaz seus próprios prazeres em detrimento dos interesses dos demais.

Vale ressaltar que essas considerações não pretendem defender a tirania. O objetivo é apenas destacar que a figura do tirano é diametralmente oposta à do filósofo. Ele é tão devasso quanto o filósofo é nobre e Platão estabelece o contraste imagético para ressaltar  a elevada posição do filósofo. 

Na história da Grécia, diversos tiranos foram conhecidos por sua libertinagem e crueldade. Contudo, outros eram bem respeitados e governavam com justiça. Além disso, seus governos eram transmitidos através das gerações, e gozavam de boa reputação entre os súditos. Todos esses elementos contribuem para moldar as perspectivas platônicas.

INB: Quais são as principais obras para conhecer a filosofia de Platão?

Marco: Quando eu era aluno, participei de um curso intensivo com um professor e a primeira coisa que ele enfatizou é que não se deve ler apenas histórias da filosofia ou interpretações dos comentadores, mas sim as próprias obras dos filósofos. Essa foi uma lição que felizmente aprendi no momento certo. Assim, comecei a ler desde cedo principalmente os textos escritos pelos próprios autores e não apenas as fontes secundárias.

Láques

Tratando-se de Platão, é essencial conhecer os diálogos. Cada um de nós deve seguir seu próprio caminho intelectual para descobrir quais deles  motivam e engajam reflexões. No entanto, acredito que seja bom começar por Láques, uma vez que trata da  natureza da coragem. Embora termine de forma aporética, seu final é extremamente belo.

Protágoras

No entanto, considerando a divisão que parece capturar com certa verdade a produção intelectual de Platão, é possível mencionar certos diálogos da primeira fase, nos quais Sócrates é uma personagem que, fundamentalmente, alega não saber nada e procura demonstrar que os outros tampouco têm conhecimento. Entre eles, um dos mais significativos chama-se Protágoras, no qual Protágoras defende o procedimento democrático de tomada de decisões. Para isso, apresenta o mito de Prometeu e Epimeteu que explicita a importância de tomar decisões políticas por meio de deliberações públicas. Em seguida, discute-se a questão da unidade das virtudes. Sócrates defende a tese de que as virtudes são o conhecimento único, enquanto Protágoras argumenta que elas podem ser independentes umas das outras. Ao final do diálogo, essas posições parecem se inverter e o diálogo conclui de forma aporética.

Um dos aspectos mais notáveis desse diálogo é a honestidade intelectual de Platão. Enquanto aristocrata, não aceita que a verdade política possa ser alcançada por meio de deliberações públicas. Mesmo assim, apresenta a tese de Protágoras de modo vigoroso e claro. Trata-se de uma estrutura literária extraordinária que comporta uma verdadeira argumentação filosófica. 

Górgias

Outro diálogo que representa o final da primeira fase é o Górgias. Ele é composto por três partes distintas e, na primeira delas, Sócrates dialoga com Górgias sobre a natureza da retórica. Ele reconhece que há uma retórica benéfica empregada pelo filósofo para persuadir os outros sobre conteúdos que ele conhece, mas que os outros nunca conhecerão. Na segunda parte, Sócrates debate com Polo uma tese de tremenda potência. Ele argumenta que é preferível sofrer a injustiça do que cometê-la. Essa é uma tese de significativa relevância na teoria moral porque, se a injustiça for inevitável, é melhor ser a vítima do ato injusto do que ser o agente que o comete. Górgias é um diálogo extenso. Sua extraordinariedade reside tanto no aspecto literário quanto nos enunciados que defende.

A República

Talvez um dos textos mais notáveis na história da filosofia seja República. Trata-se de um extenso trabalho dividido em dez livros que busca, essencialmente, responder à pergunta: por que é sempre válido ser justo?

Sócrates leva o argumento ao extremo e explora a ideia de que o indivíduo injusto poderia obter vantagens ilegais sem nunca ser descoberto, enquanto o justo poderia viver nas piores condições sem reconhecimento de sua justiça. O diálogo busca responder ao desafio de saber se vale a pena, nessas condições, sempre ser justo. Na verdade, ele sugere duas saídas possíveis. Uma delas é a harmonia ou desarmonia psicológica interna. A outra relaciona-se ao fato que causar injustiças danifica a alma e resulta em punições terríveis para o sujeito. Ler República certamente desafia até mesmo a perspectiva subsequente sobre quem deveria governar. Desconstruir um argumento de Platão requer anos e anos de reflexão profunda.

Filebo

Há também os diálogos tardios como o Filebo, que trata da natureza do prazer. Nele, Filebo é um defensor radical do hedonismo e Sócrates é um defensor radical da busca pelo conhecimento. Platão introduz a ideia de que existem prazeres oriundos da ilusão e da fantasia e, na medida em que são falsos e frustrados, contaminam o próprio prazer.Trata-se de uma tese extremamente controversa e que hoje não é aceita. Normalmente, as pessoas não concordam com a ideia de que existem prazeres falsos, pois o sentimento genuíno da felicidade não perde sua legitimidade diante da frustração. A falsidade não está no fato das expectativas não serem correspondidas, mas sim no tipo de expectativa que leva ao contentamento. E se ela for puramente material,  o prazer experimentando sempre será falso. O Filebo é um texto extremamente desafiador, mas com o tempo revela-se uma obra genial.

Fedro

Por fim, gostaria de mencionar o Fedro, pois esse diálogo tem gerado muitas discussões acadêmicas sobre sua estrutura e construção. A parte central do texto refere-se à famosa Parábola da biga, utilizada para explicar a constituição da alma humana e sua imortalidade.

Nesse trecho, revela-se a potência de Platão e sua habilidade de convencimento. A tese da imortalidade da alma fundamenta diversas questões morais ao longo de sua obra, como a ideia presente na República de que agir mal resultará em punições escatológicas. Além disso, outro motivo para Platão advogar tal ideia é a noção de que o conhecimento é inato. A alma já contemplou todas as ideias e ela apenas as “relembra” ao entrar em contato com as experiências do mundo empírico. Ele não adota a tese simplesmente por vontade própria, mas por acreditar que, sem ela, não é possível compreender o fenômeno do conhecimento.

Conhecer requer um certo grau de precisão e estabilidade que, segundo Platão, somente as chamadas ideias platônicas podem fornecer. Para estabelecer as formas ideais, ele recorre à tese da imortalidade da alma. Esse conceito é explorado de maneira extraordinariamente bela no Fedro. O diálogo começa com uma cena encantadora, na qual Sócrates encontra Fedro fora dos muros de Atenas. Eles se dirigem a um local próximo a um pequeno rio chamado Ilisus, onde leem um discurso sobre o amor escrito por Lísias. Assim, instalam-se sob a sombra de um plátano, enquanto as cigarras cantam ao fundo. Quando o canto das cigarras cessa, inicia-se a leitura. E aqui começa a filosofia.

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