Respostas dos sistemas de saúde à COVID-19 por Elize Massard da Fonseca

É professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), doutora em Política Social pela University of Edinburgh, no Reino Unido (2011) e  doutora em Saúde Pública (2008)  pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 
É professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), doutora em Política Social pela University of Edinburgh, no Reino Unido (2011) e  doutora em Saúde Pública (2008)  pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. 

No dia 28 de fevereiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com a professora Elize Massard para discutir as respostas dos sistemas de saúde à pandemia da COVID-19.

INB: A elaboração e observação do ciclo das políticas públicas é essencial para a manutenção do estado democrático de direito. De que forma ocorreu a operacionalização de políticas públicas para reforçar a resposta do sistema de saúde brasileiro durante a pandemia da COVID-19? 

Elize: Antes de mais nada, é crucial compreender o que é a COVID-19. Trata-se de uma doença sem precedentes, uma vez que não havia informações sobre esse vírus e muito menos sobre as implicações de sua disseminação para os sistemas de saúde. Como resultado, as evidências que indicariam as medidas necessárias em termos de políticas públicas foram construídas simultaneamente ao avanço do conhecimento científico sobre o vírus.

Inicialmente, tomou-se a decisão de seguir a abordagem conhecida como “Testar, Isolar, Rastrear e Apoiar”. Essa estratégia envolvia as seguintes ações: i) realizar testes em pessoas; ii) rastrear os casos; iii) manter o distanciamento social; iv) fornecer apoio e condições para a observância do distanciamento social. É importante observar que diferentes países implementaram essa política de maneiras distintas, considerando suas realidades e circunstâncias específicas.

O aspecto inédito do vírus e da pandemia é de extrema relevância e deve ser levado em consideração. A obtenção de evidências científicas para orientar as ações, bem como o desenvolvimento de vacinas e terapias, ocorreu em um ritmo acelerado em comparação com os padrões tradicionais. Normalmente, leva-se anos para desenvolver uma vacina ou terapia, mas durante a pandemia, esse processo foi notavelmente mais rápido.

Em relação ao cenário brasileiro, observa-se que as políticas públicas nacionais não foram alinhadas de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A OMS é uma organização internacional que elabora diretrizes globais de saúde pública, porém os países possuem autonomia para realizar adaptações considerando suas realidades locais.

No entanto, no Brasil, o Ministério da Saúde nunca adotou uma política abrangente de distanciamento social, como foi visto ao longo destes dois anos de pandemia. Além disso, ocorreram diversas trocas de ministros durante o período, acompanhadas de decisões controversas tomadas em âmbito federal, que não se alinharam com as evidências científicas disponíveis naquele momento. Trata-se de uma situação delicada, uma vez que a Constituição Federal preconiza que o Ministério da Saúde é responsável por coordenar as ações de saúde no Brasil. A ausência dessa coordenação deu protagonismo à atuação dos Estados. 

A descentralização ocorreu de maneira pouco coordenada. Em certos Estados, a população estava mais protegida do que em outros, o que gerou um conflito federativo significativo. Tal aspecto é relevante na estrutura da política pública brasileira, uma vez que as decisões são tomadas em esferas federal, estadual e municipal. No caso da saúde, a implementação das ações fica a cargo dos municípios. Os conflitos entre as diferentes instâncias federativas também surgiram devido à competição política acerca das decisões a serem tomadas e das medidas a serem implementadas.

Talvez a melhor palavra para descrever o cenário seja “fragmentação”. Não existia uma coordenação federal clara sobre como agir em circunstâncias de tamanha incerteza, e, por isso, alguns Estados seguiram as orientações da OMS, enquanto outros o fizeram de maneira mais hesitante. No entanto, o momento da aprovação das vacinas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) foi determinante. Estabeleceu-se uma distinção evidente entre o período anterior à disponibilidade de vacinas – quando o distanciamento social era fundamental – e o período subsequente.

Contudo, certamente no início desse processo era necessário definir as prioridades na fila de vacinação, o que resultou em uma parcela limitada da população sendo vacinada logo no início. Acredito que o Programa Nacional de Imunização (PNI) demonstrou resiliência diante das adversidades ocorridas no Ministério da Saúde. De certa maneira, houve uma distribuição acelerada das vacinas, fruto de uma cobertura relativamente boa, até mesmo superior à de países com acesso abrangente à elas. Por exemplo, a União Europeia foi uma das regiões que adquiriu vacinas precocemente, mas enfrentou desafios na distribuição.

É fundamental garantir a administração das vacinas no maior grupo possível de pessoas. Nesse contexto, o PNI demonstrou a aderência da população brasileira à vacinação. Esse é um aspecto determinante: para que a imunização seja eficaz, é necessário persuadir os indivíduos a comparecerem aos postos de saúde para se vacinarem. Em 2023, pode-se concluir que alcançamos uma cobertura vacinal satisfatória, embora haja variações em sua abrangência entre os estados brasileiros. Esse é um tema que requer estudos mais aprofundados, que busquem identificar as razões por trás de tais discrepâncias. Em algumas regiões, até 50% da população não completou o esquema vacinal, enquanto em outros estados, como São Paulo, as taxas são significativamente mais elevadas.

Dessa forma, pode-se afirmar que a implementação de políticas públicas para fortalecer a resposta do sistema de saúde brasileiro durante a pandemia da COVID-19 ocorreu em várias fases. Inicialmente, houve um período de grande incerteza em que as orientações da OMS sobre as medidas a serem adotadas foram interpretadas de maneiras diversas no Brasil. Em seguida, as vacinas foram introduzidas no país e o processo de vacinação teve início. Agora, em 2023, é evidente a resiliência do PNI e a obtenção de uma cobertura vacinal nacionalmente significativa.

INB: A COVID-19 é uma doença que adquiriu escala global de contaminação, de modo que sistemas políticos distintos se depararam com grandes desafios relacionados a ela. Como os diferentes sistemas políticos e instituições condicionam a resposta dos países a crise? 

Elize: Antes de começar a responder, gostaria de relembrar um livro que co-editei em parceria com outros dois professores da Universidade de Michigan – o professor Scott Greer e a professora Elizabeth King – e com André Peralta Santos. O título deste livro é Coronavírus Politics: The Comparative Politics and Policy of Covid-19, no qual discutimos a variação das respostas em 33 países. Nos capítulos que compõem a obra, um dos autores analisa a abordagem adotada por cada um deles. Por meio desses estudos, foi possível observar alguns elementos de destaque.

A primeira conclusão é que em países com sistemas políticos majoritários – ou seja, que conferem considerável poder ao líder do governo – os governantes utilizaram o poder de agenda e ação política de maneiras controversas. Aqui, cito como exemplo o presidencialismo brasileiro e norte-americano, bem como o parlamentarismo indiano. Nesse contexto, decisões polêmicas foram tomadas por líderes como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Narendra Modi.

De fato, as instituições concedem poder de agência. Estamos nos dirigindo a um público que possui conhecimento acerca da linguagem das instituições políticas, e, como tal, reconhecemos que essas instituições empoderam os líderes. Assim, eles ganham a capacidade de empregar o poder para proteger a população, aderir às diretrizes da OMS ou adotar medidas controversas, como vemos nos casos dos três países mencionados.

Outra característica institucional importante é o federalismo. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o federalismo atuou de maneira a compensar as decisões controversas tomadas pelos líderes. Dessa forma, os Estados adquiriram autonomia para seguir as diretrizes da OMS, mesmo sem uma coordenação efetiva em âmbito federal. Eles ponderaram essa ausência, como observamos no caso brasileiro, norte-americano e em algumas regiões da Índia.

Gostaria de destacar algo que é bem conhecido por nós que trabalhamos com administração pública: o conceito de “capacidades estatais”. Nesse contexto, é comum ouvir que as capacidades estatais são indispensáveis. No entanto, em certos sistemas de saúde europeus, a disponibilidade de tecnologia avançada e o conhecimento em vigilância em saúde também são fundamentais. Porém, não é estranho que alguns dos sistemas não conseguiram responder à pandemia de maneira plenamente satisfatória. Essa lacuna também se fez presente no Brasil, apesar de nosso sistema de saúde pública ser uma referência global, com excelentes indicadores de atenção primária.

Portanto, não é suficiente apenas que as capacidades estatais existam; é essencial que elas sejam mobilizadas. E foi justamente isso que não ocorreu no Brasil. O Sistema Único de Saúde (SUS) possui uma capacidade significativa para enfrentar pandemias, e mesmo diante da novidade da COVID-19, deveriam ter sido tomadas ações coordenadas.

Para continuar a abordar a política comparada, outro achado importante de nosso livro diz respeito à relevância da política social durante o período pandêmico. A administração pública precisa unir esforços em ações de saúde com medidas de proteção social: solicitar que as pessoas permaneçam em casa é crucial, assim como é igualmente vital que elas tenham os meios para fazê-lo. 

Nesse contexto, os impactos do auxílio emergencial foram notáveis, uma vez que uma parcela substancial da população pôde beneficiar-se dessa política. De fato, muitos administradores indicam que durante o período, muitos conseguiram sair da condição de pobreza. Portanto, tanto uma política de saúde coordenada quanto uma resposta efetiva em saúde pública são necessárias.

O mesmo que ocorreu no Brasil, ocorreu nos Estados Unidos. Lá, o governo rapidamente distribuiu cheques no valor de 1.400 dólares à população, ainda que não houvesse uma estratégia de saúde que correspondesse às demandas da pandemia. Isso ocorreu em diversos países. No entanto, a Alemanha se destaca como uma possível exceção, pois conseguiu harmonizar de forma eficaz esses dois aspectos. Quando tratamos de sistemas políticos e instituições em uma perspectiva comparativa, é crucial compreender que sistemas majoritários conferem ao presidente o poder de definir a agenda, e esse líder possui a autonomia para determinar como utilizar tal poder. Além disso, o federalismo pode equilibrar as ações do líder político, e a política social desempenha um papel fundamental.

Portanto, é essencial abranger ambos os aspectos: saúde e proteção social. Por último, as capacidades estatais devem ser mobilizadas, não basta apenas que elas existam. E essa observação se tornou evidente por meio da comparação entre esses 33 países, conforme abordado em nosso livro “Coronavirus Politics: The Comparative Politics and Policy of Covid-19.

INB: Existem evidências de que a experiência prévia se países com epidemia de vírus respiratórios auxiliou no combate a Covid 19?E quais são os apontamentos que podem ser feitos sobre o aprendizado dos governos do Sul global em relação a COVID 19?

Elize:  Uma primeira lição que se destaca é a necessidade de governança e autonomia institucional durante períodos de pandemia. Isso se relaciona ao tópico que discutimos anteriormente, sobre a concessão de considerável poder de agência aos líderes políticos em sistemas presidencialistas. Um exemplo que ilustra essa lição é o que aconteceu nos Estados Unidos com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) e com Anthony Fauci, que desafiaram diretamente as decisões de Donald Trump. No Brasil, a Fiocruz e Margareth Portela também desempenharam um papel crucial na disseminação de informações. É crucial garantir a capacidade dos especialistas de fornecerem informações e conhecimento científico autônomo em momentos de crise. A própria ANVISA teve um papel relevante e possui autonomia institucional para tomar decisões. No entanto, pode-se questionar: o que fazer quando os líderes são polêmicos? Para mim, a governança deve assegurar a autonomia das instituições de saúde pública para responder às situações de pandemia. Outra lição é que o federalismo compensa as ações do governo central, mesmo que ele não adote decisões alinhadas com as orientações da OMS.

Finalmente, gostaria de enfatizar um aspecto frequentemente negligenciado quando discutimos emergências de saúde pública: o papel da política. Refiro-me à política em um sentido amplo, já que normalmente destacamos a importância da evidência científica e da realização de ensaios clínicos de padrão ouro. No entanto, é crucial compreender o contexto que envolve uma crise de saúde pública, uma vez que interesses diversos estão em jogo. A COVID-19 destacou de forma contundente que a política desempenha um papel crucial na maneira como os países reagem às pandemias. Portanto, é imperativo não negligenciar as instituições, os atores e as orientações políticas futuras.

Todos esses elementos devem ser considerados. É fundamental ter cientistas políticos, sociólogos e especialistas em ciências sociais nos comitês de resposta a crises de saúde pública. Isso deve ocorrer em conjunto com os epidemiologistas, que são indiscutivelmente essenciais. No entanto, é necessário também contar com o conhecimento dessas outras áreas para compreender os dilemas que a sociedade enfrenta e o que é viável no âmbito  institucional.

INB: Na sua opinião, qual foi o papel das agências reguladoras  durante o período mais grave da pandemia, quando as vacinas ainda não haviam sido disponibilizadas?

Elize: As autoridades regulatórias desempenharam um papel fundamental, sendo a Anvisa um exemplo notável. No entanto, prefiro usar o termo “autoridades regulatórias” em vez de “agências”, uma vez que nem todos os países possuem instituições desse tipo. No caso do Brasil, é notável o progresso que a ANVISA alcançou nas últimas duas décadas. Anteriormente, a vigilância sanitária era uma divisão dentro do Ministério da Saúde com recursos humanos limitados e conhecimento técnico reduzido. É evidente que a vigilância sanitária no Brasil fez esforços significativos para estar na vanguarda da regulamentação de medicamentos e vacinas.

Durante o auge da pandemia, a Anvisa participou de fóruns internacionais que debatiam maneiras de encurtar o tempo necessário para testes clínicos da vacina da COVID-19, com o objetivo de agilizar sua autorização no país. A ANVISA adaptou seus processos para aprimorar sua capacidade regulatória. Além disso, ela mantém uma estreita relação com importantes autoridades regulatórias, como o Food and Drug Administration (FDA) e a European Medicines Agency (EMA), cujos critérios são altamente rigorosos.

Outra função fundamental da ANVISA na aprovação das vacinas é o controle das fronteiras. Isso permitiu ao Brasil ter acesso às melhores vacinas disponíveis, aquelas que os cientistas confiam e que estão em conformidade com os mais elevados padrões regulatórios vigentes atualmente.

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