Cuidados paliativos e o direito à morte digna por Bruna Algranti

A médica Bruna M. Algranti conversou com o INB sobre as questões que envolvem cuidados paliativos em pacientes terminais, e os dilemas éticos que confluem entre a medicina e o direito.
Bruna Mezan Algranti é formada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Jundiaí desde 2007. Após a graduação, realizou Residência em Clínica Médica na mesma instituição de 2008 a 2010 e especializou-se em Geriatria no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) de 2010 a 2012. Em 2013, foi aprovada em concurso público e trabalhou como Médica Assistente na Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da FMUSP por 8 anos.

O projeto INB Debate é um espaço multidisciplinar e democrático cujo objetivo é apresentar e discutir assuntos importantes para a compreensão da nossa sociedade. A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu no dia 9 de fevereiro com a Dra. Bruna Mezan Algranti para discutir criticamente a importância dos cuidados paliativos para uma morte digna. Afinal, trata-se de um sistema que cada vez mais faz parte de nossas vidas.

Cuidados paliativos e o Direito

INB: Qual é a importância dos cuidados paliativos na qualidade de vida de pacientes com doenças avançadas e quais são os principais objetivos dessa abordagem de cuidado?

Bruna: Os Cuidados Paliativos têm uma importância enorme e grande impacto na qualidade de vida dos pacientes com doenças avançadas. Atualmente entendemos que essa abordagem deve começar o mais precoce possível pois diferentemente do que muitas pessoas conhecem, os Cuidados Paliativos não são apenas para pacientes em terminalidade, mas para qualquer paciente portador de uma doença grave que traga algum sofrimento. Para começarmos a discutir a questão, é importante entender a história do Cuidado Paliativo.

Os Cuidados Paliativos são reconhecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 1990 mas seu conceito vem sofrendo evoluções, sendo que a mais nova definição de 2022 considera uma abordagem que melhora a qualidade de vida dos pacientes (adultos ou crianças) e de seus familiares que enfrentam problemas associados a doenças que ameaçam a vida. Além disso, previne e alivia sofrimento por meio da investigação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais. Seus principais objetivos são:

  • Reafirmam a vida e consideram a morte um processo natural;
  • Não postergam nem aceleram a morte;
  • Aliviam os sintomas desagradáveis;
  • Ajudam o paciente a ter uma vida o mais ativa possível até a morte;
  • Integram o tratamento “curativo”;
  • Integram aspectos psicológicos e espirituais;
  • Oferecem suporte aos familiares.

Não é possível falar em cuidados paliativos sem citar Cicely Saunders, uma inglesa que fundou o movimento hospice. Ela foi muito impactada pelos pacientes em terminalidade, pois observou que, muitas vezes, eles eram abandonados nas enfermarias dos hospitais. Por isso, Saunders, que era assistente social, foi estudar enfermagem. E quando terminou seus estudos, tornou-se mais capaz de cuidar dos  doentes, mas ela se deparou com uma limitação importante: não podia prescrever medicações para amenizar o sofrimento físico. Assim, deu-se início à sua formação em medicina. 

Cicely Saunders é uma referência em cuidados paliativos porque a maior parte dos princípios dessa área foram elaborados por ela na década de 1950. O movimento hospice, ao qual me refiro, consiste na criação de estruturas que se assemelham às hospedarias e servem para abrigar os pacientes em estado terminal.

Os hospices são uma espécie de local intermediário entre um hospital e o atendimento domiciliar. Trata-se de um conceito fundamental, porque muitas vezes as pessoas confundem os cuidados paliativos com a indicação dos cuidados de hospice. No sistema de saúde norte americano, por exemplo, a indicação de internação em um hospice está relacionada ao cumprimento de uma série de requisitos de diferentes escalas. Dentre tais requisitos, encontra-se a necessidade do paciente possuir uma sobrevida estimada de seis meses.

Portanto, o cuidado de hospice é apenas uma modalidade dos cuidados paliativos, que são muito mais amplos do que isso, inclusive existem serviços de seguimento ambulatorial que acompanham pacientes em cuidados paliativos por anos.

Medicina geriátrica, diagnósticos e cuidados paliativos

Na perspectiva da medicina geriátrica e considerando o acúmulo de comorbidades que acontecem com o envelhecimento, os cuidados paliativos são um forte aliado. Acredita-se que devem iniciar-se desde o momento do diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida. Por exemplo, o indivíduo que sofre um infarto agudo do miocárdio e, consequentemente, é acometido por várias lesões. Esse paciente precisará de um acompanhamento médico por toda sua vida, terá de tomar medicações e pode precisar de uma série de intervenções.

As doenças cardiológicas possuem uma certa evolução e ele pode precisar de um marca-passo, medicações intravenosas ou até mesmo um transplante cardíaco, no caso de uma insuficiência cardíaca refratária. Todo esse cenário implica na necessidade de cuidados paliativos. 

A ideia é conseguir não só atentar-se aos sintomas físicos, mas também colaborar com a manutenção de uma vida plena e independente tanto quanto possível. O objetivo é cuidar dos pacientes e familiares, como aponta a definição mais recente da OMS. Algo que nós falamos com frequência é que ninguém fica doente sozinho: quando um paciente adoece, todo o núcleo familiar adoece junto. A dinâmica familiar muda completamente. 

Nesse sentido, há uma notável contribuição de Cicely Saunders que é a criação do termo “dor total”. Quando falamos em dor, as pessoas logo associam a algo físico, como uma batida. Mas existem diversos tipos de dor, incluindo a dor emocional, que é fruto da perda funcional e do consequente luto que a doença traz. Também há dores que nos levam à privação e à restrição de contato com outras pessoas. Ou nos deparamos com pacientes que precisam de recursos financeiros que não dispõem, ou seja, existe também uma dor social. Há dores espirituais que surgem dos conflitos religiosos. Eu diria que a religião é uma das formas de manifestação da espiritualidade, embora não seja a única. Existem várias outras maneiras de expressão espiritual em pessoas que não são religiosas, há pacientes que encontram seu sagrado nas relações interpessoais ou com a natureza. 

No antigo Ambulatório de Cuidados Paliativos Geriátricos do Hospital das Clínicas, em São Paulo, foi criado um diagrama de avaliação multidimensional que era usado para discussões de casos complexos. O diagrama é composto por quatro quadrantes que compreendem os elementos:

  • Físico;
  • Social;
  • Espiritual e/ou religiosos;
  • Psicológico.

Discutir os casos com uso dessa ferramenta garantia que a gente não ignorasse as outras dimensões dos pacientes e assim proporcionávamos um cuidado mais integral. 

Então, o termo “dor total” utilizado por Cicely Saunders abarca todos esses aspectos. É como se olhássemos para o sofrimento não somente pelo ponto de vista de seu componente orgânico, mas a partir de sua totalidade. A busca é sempre pela qualidade de vida e essa compreensão altera significativamente a percepção da equipe de saúde e, consequentemente, o planejamento de cuidados do paciente e da família.

Antigamente, a ideia dos cuidados paliativos centrava-se no diagnóstico de uma doença avançada. Iniciava-se os cuidados paliativos quando as medidas modificadoras de doença se esgotavam. Essa percepção caiu por terra. Hoje em dia, já foi comprovado cientificamente que os cuidados paliativos têm benefícios, inclusive no aumento de sobrevida, quando iniciados de forma precoce junto com as medidas modificadoras da doença. É por isso que o nosso campo de atuação começou a crescer.

Doenças que possuem uma evolução muito rápida, como a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), demandam tomadas de decisões extremamente difíceis sobre o estado de saúde do paciente em um curto período de tempo. Diferente de uma insuficiência cardíaca, como citei anteriormente, que pode ter mais de vinte anos de evolução. Por isso, eu considero fundamental abordar a finitude e como esse paciente quer viver o tempo que lhe resta a partir do diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida. Só assim podemos garantir o direito de escolha desse paciente e que ele viva com dignidade a partir dos seus valores.

Cuidados Paliativos e o direito à morte em nossa sociedade

INB: O tema da morte é considerado por muitos um tema sensível e polêmico. No âmbito jurídico, por exemplo, existe uma legislação extensa que busca regulamentar precisamente a ocorrência desse fato. No contexto da saúde pública, em que consiste e qual é a importância de preservar a dignidade nos momentos finais da vida do paciente?

Bruna: A ideia dos cuidados paliativos é tornar o paciente protagonista de seu cuidado. Uma das questões mais complexas nesta área é a bioética, algo que vem sendo cada vez mais valorizado pelas novas gerações. Na minha opinião, muitas mudanças fundamentais estão ocorrendo, como por exemplo a mudança de tomada de decisões de um modelo paternalista para um modelo mutualista de decisão compartilhada. Parece simples, mas é difícil de aplicar na prática. Nós tendemos a adotar os julgamentos e valores do ambiente em que fomos criados e educados. Essa é uma questão delicada, é preciso exercitar a capacidade de não julgar e de não impor nossos próprios valores sobre os outros. Portanto, para exercer a tomada de decisão compartilhada acredito que precisamos estar atentos e fazer esse exercício constante de diferenciar nossos valores dos daqueles de quem cuidamos. 

Desde o momento em que o médico decide oferecer cuidados paliativos, é fundamental que ele compreenda que não se trata de seus próprios valores que estão em jogo, mas sim os valores da pessoa em cuidado. Lembro-me de uma reunião que tive com a família de um paciente em que todos estavam muito tensos. Nessa ocasião, o paciente já não conseguia se comunicar, então eu sugeri que os familiares fizessem massagem. A família ficou em silêncio e quando percebi perguntei e então soube que o paciente não gostava de ser tocado. Apesar de eu acreditar que a massagem poderia ser reconfortante, tive que entender quem era a pessoa que estava recebendo os cuidados. 

O cuidado paliativo requer também o cuidado biográfico: compreender a história de vida da pessoa e o que é importante para ela vai muito além da própria doença. Um cuidado que leve em consideração a vida que o paciente levou é essencial para uma morte digna. Aprendi que um bom cuidado paliativo acontece quando somos capazes de fazer algo que nunca faríamos para nós mesmos, mas que fazemos pelo paciente por entender que esse é o seu valor. 

A gerontologia na sociedade brasileira

Na geriatria, que é minha especialidade, existe uma forte discussão sobre a alimentação artificial para pacientes com demência avançada. Esse processo é realizado por meio do uso de sondas, gastrostomia ou até mesmo através de veias em um ambiente hospitalar.

Antigamente, grande parte dos médicos, diante de um paciente com demência que apresentava dificuldade de deglutição, indicava a passagem de sonda ou gastrostomia. Atualmente novas evidências científicas mostram que o uso de alimentação artificial não aumenta a sobrevida e não melhora qualidade de vida desses pacientes. A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia têm comitês que divulgam esses estudos e colaboram para novos debates e assim nos faz repensar este cenário, uma vez que a comida é algo extremamente emblemático e significativo na nossa cultura. Por isso, apesar de ser difícil, cada vez mais as famílias estão abertas a propostas de manter dieta de conforto oral e não introduzir alimentação artificial com uma melhor compreensão de que esse é o curso natural da demência.

Um outro aspecto muito importante para que a dignidade do paciente seja preservada é o testamento vital. Pacientes em cuidados paliativos que têm acesso a uma equipe especializada, quando há tempo hábil, podem ser auxiliados para criar diretrizes antecipadas de vontade. Esse documento pode constar no prontuário e não precisa ter reconhecimento de firma em cartório.

Com isso, o médico e a equipe de saúde são orientados a fazerem aquilo que faz sentido para o paciente e evita que medidas obstinadas sejam instituídas. Por exemplo, em caso de dificuldade respiratória, onde não há perspectiva do paciente sair de um aparelho de ventilação mecânica em situação que ele considere digna, ele pode, em conjunto com a equipe, decidir previamente que não deseja ser entubado. Ou mesmo em casos de parada cardiorrespiratória, pode ficar definido que o paciente não será reanimado. 

O testamento vital pode ser elaborado quando há um bom vínculo entre profissional de saúde e paciente, o objetivo é definir os tratamentos futuros proporcionais para cada caso. Uma situação comum com os pacientes em processo terminal é que eles podem perder a capacidade de se comunicar, por isso é importante antecipar as informações para garantir o cuidado adequado de acordo com suas vontades.

No entanto, podem surgir perguntas como “Dra. Bruna, como é ter uma conversa dessas? Não é difícil demais?”. Na verdade, isso é um tabu tão grande quanto a morte em nossa cultura. Falar sobre cuidados paliativos também é um tabu, tanto para a família quanto para os profissionais de saúde, por desinformação. É por isso que uma das competências do paliativista é a capacidade de comunicação. Aprendemos a comunicar más notícias de maneira compassiva, justamente para auxiliar os envolvidos a elaborar tais questões.

O não dito, o que fica nas entrelinhas, pode ser muito mais assustador do que uma verdade bem colocada seguida de um bom acolhimento. Esse processo de nomear a doença e ouvir as angústias costuma ser libertador para os pacientes. A expressão “cerco do silêncio” é muito usada em nosso meio, as famílias têm receio e acham que se o paciente souber a realidade, ele vai desistir.

Mas isso não é o que costuma acontecer. A partir do momento que o assunto é colocado, pode ser que até haja alívio e mais tranquilidade. Isso porque a maior parte dos pacientes sabe o que está acontecendo; afinal as mudanças, os sinais e sintomas são no corpo dele. E o paciente também evita falar com a família,  o que gera um grande “muro” que divide os dois lados. A quebra desse muro pode ser libertadora e unir os lados. Mas isso não significa que não vai ser sofrido. 

Cuidados Paliativos e Direito: o caso do Hospital das Clínicas

Na enfermaria de Cuidados Paliativos do HC há diariamente reuniões multidisciplinares entre médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais, residentes das diversas especialidades, entre outros, para alinhamento das condutas entre essas diferentes áreas e traçar em conjunto um plano de cuidado.

Trata-se de uma tarefa difícil e desafiadora, porque exige muito respeito para entender o que é área de conhecimento de cada um e em que é possível colaborar. Nas reuniões, havia uma psicóloga que nos auxiliava a entender o que era o nosso sofrimento e o que era sofrimento do paciente. Tudo isso é crucial para a formação do paliativista. 

Há muita angústia para os paliativistas, essas reuniões ajudam a mitigar o nosso sofrimento para que ele não interfira nas tomadas de decisão. Pessoalmente, vi muitas pessoas falecerem ao longo dos anos, mas cada morte é única e impactante. Já estive  em situações em que não consegui aliviar o sofrimento. Para pacientes extremamente queridos que eu me propus a cuidar, utilizei todos os recursos disponíveis no hospital, mas mesmo assim faleceram com dor e angústia. Isso dá uma sensação de impotência e falência. Mas precisamos falar dos casos que dão errado, pois ainda romantizam muito os cuidados paliativos e, infelizmente, apesar dos esforços e da boa intenção, a medicina possui uma série de limitações. 

Evidentemente a frustração é enorme, mas é também importante que o profissional da saúde seja capaz de entender que existem coisas que vão muito além de suas capacidades. Essa limitação pode ser benéfica porque ajuda a dissipar a sensação de que somos capazes de tudo e o sentimento de onipotência dos médicos. 

O direito à morte e a eutanásia

INB: Atualmente, a eutanásia é um tema polêmico no ordenamento jurídico brasileiro. Quais são os principais aspectos que definem essa prática e quais são seus impactos na vida do profissional da saúde?

Bruna:  Esse é um assunto polêmico que precisa ser discutido. Acho interessante que você tenha trazido esse tema à tona pois, apesar da eutanásia não ser permitida no Brasil, não é possível ignorar essa questão tão em voga, principalmente porque cada vez mais países passam a permitir a eutanásia e o suicídio assistido.

Antes de avançar a discussão, acredito que é necessário pontuar alguns conceitos. No âmbito dos cuidados paliativos, fala-se muito em ortotanásia, que trata da garantia de uma morte natural, sem prolongar o sofrimento do paciente. A ortotanásia é muito diferente da distanásia, que é a prática de prolongar a vida por meio de medidas artificiais e invasivas que geram sofrimento, e que os profissionais de cuidados paliativos tendem a querer combater. Por exemplo, tentar usar um recurso de ventilação mecânica para uma pessoa frágil com uma doença pulmonar avançada poderia ser uma medida obstinada dependendo do contexto, caso prolongasse o sofrimento sem trazer benefício algum.

A eutanásia é um ato realizado por um médico que leva ao óbito imanente. Trata-se de um método imediato, indolor e com eficácia letal. Assim que a eutanásia é realizada, a pessoa morre sem sentir dor. A diferença da eutanásia para o suicídio assistido é que, no suicídio assistido, o médico fornece os meios para o próprio paciente executar sua morte. Nesse sentido, a diferença é sobre quem dispara o “gatilho da injeção”.

Na área dos cuidados paliativos, por muito tempo a eutanásia foi pouco discutida. Até porque, muitas pessoas associam, erroneamente, os cuidados paliativos com a eutanásia. E o paliativista tem muito medo disso, pois esta prática não faz parte de seus objetivos. Assim a ilegalidade da eutanásia é frequentemente usada como um escudo: não é permitida no Brasil e ponto final. Contudo, no último Congresso Brasileiro de Cuidados Paliativos, tiveram algumas mesas redondas que abordaram o tema e problematizaram essa tendência de finalizar a discussão. Finalmente ocorreram discussões ricas, inclusive do ponto de vista dos conflitos que existem em relação ao juramento de Hipócrates, no qual nos comprometemos a salvar vidas. Surgem questionamentos: se eu fiz um juramento em que me comprometo a manter a vida e preserva-lá, como posso ser a favor da eutanásia? Mas o juramento de Hipócrates também precisa ser readequado para os dias de hoje. Nós precisamos estar atentos às mudanças que são latentes. 

A partir do momento em que o médico se propõe a realizar o cuidado paliativo, imediatamente ele começa a cuidar do sofrimento do paciente/família. E se estamos falando em amenizar o sofrimento, quando existe um pedido de eutanásia, é porque a situação está insuportável e atingiu os níveis máximos. Quando isso acontece aqui no Brasil existe a possibilidade de sedação paliativa, mas esse procedimento tira a consciência e não abrevia a vida do paciente. Nesse cenário é necessário realizar uma avaliação extremamente cautelosa e multiprofissional. É uma situação complexa, pois é preciso estar certo de que todas as medidas e recursos disponíveis foram adequadamente usados e ainda assim há um sofrimento refratário.

Direito e Bioética: dilemas contemporâneos

INB: A bioética é uma área importante do conhecimento dedicada ao estudo das implicações morais relacionadas às pesquisas científicas na área da saúde. Qual é o tratamento que esta disciplina concede ao tema da eutanásia?

Bruna: Do ponto de vista médico, o impacto da eutanásia é enorme e pode ser muito angustiante lidar com essas questões. Profissionais da saúde recebem cada vez mais pedidos relacionados a isso. Embora não tenha acontecido comigo, pacientes com condições financeiras se programam para realizar a eutanásia ou suicídio assistido em países em que a prática é permitida. É importante estarmos bem informados, mas o fato é que no Brasil, não existe essa possibilidade.

Para mim, os dilemas bioéticos são os mais desafiadores. A parte do manejo dos sintomas, como a falta de ar, a dor, etc. é algo que aprendemos nos livros, em cursos e na prática clínica.  Agora, as maiores angústias que tive durante os anos em que fazia cuidado paliativo diariamente na enfermaria, foram as questões bioéticas.

Dentro de todos os hospitais, há obrigatoriamente comitês de bioética, que lidam com conflitos e entraves éticos na condução clínica dos pacientes. Um dos meus maiores desafios foi de uma paciente jovem com uma doença neurológica genética que estava caminhando para a falência de diversos músculos respiratórios. A paciente já estava acamada e sentia dores intensas.

O seu tratamento era baseado em doses altas de opióides, bombas de infusão, mas uma das coisas que mais tinham ajudado ela a tratar suas dores era o óleo de canabidiol. Esse óleo não era legalmente permitido. Como médica em um hospital escola, não podia simplesmente permitir essa situação. Para legalizar o uso do óleo, precisei reunir uma série de documentos e artigos e passar por um intenso trâmite legal em várias instâncias até conseguir a liberação dessa medicação não padronizada e polêmica. Foram semanas de angústia tentando resolver a situação.

Atualmente, a legalização do uso de canabidiol é ainda uma grande polêmica, apesar dos resultados promissores no auxílio ao controle de dor, náusea e em quadros neurológicos. Embora não seja curativo, seus benefícios estão documentados e já se encontram evidências científicas, não tão robustas, mas existem. Eu acredito que esta é uma questão complexa do ponto de vista bioético.

A mistanásia termo que se refere a morte como forma de abandono, tanto pela família quanto pelos serviços de saúde governamentais, também é uma questão da bioética que precisa ser discutida. Hoje, o abandono governamental é muito presente, como podemos observar com a situação dos indígenas Yanomamis.

Em relação à futilidade terapêutica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) apresentou uma nova resolução em setembro de 2022 na qual define que o médico não deve realizar tratamentos fúteis, ou seja, aqueles que com as melhores evidências clínicas disponíveis mostra-se incapaz de atingir o objetivo biológico almejado, em respeito aos princípios da não maleficência e justiça.

O australiano Philip Nitschke, em 2015, afastou-se oficialmente da sua carreira médica para dedicar-se exclusivamente à organização pró eutanásia Exit, fundada por ele em 1997. Ele defende há muitos anos a eutanásia e o suicídio assistido e já criou algumas versões de um sarcófago, uma espécie de equipamento em que a pessoa se tranca dentro e dispara um gás letal, o qual deve ser aprovado em breve. De certa maneira, o sarcófago seria o próprio caixão da pessoa. Inclusive, uma discussão que tem sido recorrente é a execução da eutanásia pelo profissional da área médica. Essa prática traz um sofrimento e dilema bioético e essa seria uma forma de tirar o médico de cena. 

A eutanásia ou o suicídio assistido são permitidos em alguns países em condições específicas que estão previstas em diversos relatórios. Deve ser comprovado que existe um sofrimento irreversível e incurável e todo o procedimento deve ser realizado mediante avaliações de profissionais, que são antes de tudo seres humanos (e potencialmente falíveis). Isso gera uma série de discussões e questionamentos, tornando-se uma imensa “Caixa de Pandora”. Uma das ideias de Philip Nitschke seria também que essas avaliações fossem feitas por meio de formulários aplicados por Inteligência Artificial

É importante que a bioética continue auxiliando os profissionais de saúde em situações difíceis, principalmente quando surgem dúvidas e dilemas sobre o que é ético e mais adequado para cada caso.

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