Os livros essenciais de Alice de Perdigão Lana

Os livros essenciais da advogada e pesquisadora, Alice Lana Perdigão.
Alice de Perdigão Lana é mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR) e graduada em Direito pela mesma universidade. É coordenadora de pesquisa da área de Cultura e Conhecimento & Encarregada de Dados (DPO) do InternetLab.

No dia 15 de março de 2023, a pesquisadora Alice de Perdigão Lana  se reuniu com a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, para contar os livros essenciais na sua história de formação. Para contar essa história ela apresentou como marcos referenciais, os livros mais fundamentais de sua vida. Alice foi professora no curso Democracia e Internet, produzido pelo Instituto Norberto Bobbio em parceria com o Politize!

Livros essenciais na infância

Eu sou filha de professores. Minha mãe é professora de literatura e meu pai era professor de biologia. Em casa, o hábito da leitura sempre foi cultivado desde que eu era pequena. Uma das minhas primeiras memórias relacionadas a literatura é de quando eu tinha seis ou sete anos e meu pai me dizia “Alice, você já leu mais livros que a maioria dos brasileiros leu na vida”. Na época, eu pensei que ele estava caçoando de mim.

          Eu sou muito grata aos meus pais não só pelo incentivo, mas porque sempre foram grandes exemplos. Eles liam o tempo todo e por isso que a literatura teve um papel de formação na minha vida, não apenas no sentido de aprendizado mas também de entretenimento. Nós nos reuníamos para ler juntos com frequência. Uma lembrança que tenho é do meu irmão, dois anos mais velho do que eu, brigando comigo pelo livro do Harry Potter. Nós líamos os volumes na medida em que eram lançados e a minha mãe sempre cogitava que dava pra comprar um volume só e seríamos razoáveis, mas na verdade brigávamos por eles.

Outra coisa que meus pais fizeram muito bem em relação à literatura na minha infância e na de meus irmãos, era raramente colocar interdições em relação aos livros. Lembro de quando minha mãe estava lendo Vidas Secas e eu com dez anos fiquei interessada na obra por conta do desenho da capa. Evidentemente, fiquei traumatizada e até hoje não consigo ler a história da Baleia sem chorar. Mas foi uma experiência interessante para ter uma noção do tamanho do universo literário.

          Eu gostava – e ainda hoje gosto muito – de ficção científica no geral. Então uma série que marcou a minha infância foi a Discworld de Terry Pratchett, um autor britânico que escreve tanto ficção infanto-juvenil como adulta. Nessas histórias, várias lendas aparecem como realidade no Discworld, como o fato da Terra ser plana e da câmara fotográfica funcionar com um diabinho que mora ali dentro e pinta um quadro muito rápido.            

Então, várias formas de ver o mundo pelos olhos de criança são realidades nesse universo de lendas. A Morte realmente é uma pessoa que usa capa e ceifa as vidas alheias. Várias dessas imagens existem no cosmos fantástico que ele criou.

Outra fase: os livros essenciais na escola

Na época da escola, eu  também gostava muito de ler e por isso fiz amigas que compartilhavam desse hábito. Nesse momento, consumia literatura infanto-juvenil considerada para meninas e meu pai sempre me importunava dizendo “ Quando você vai ler um livro de adulto de verdade?”. Hoje, penso que essa fala é despropositada, mas vejo que era uma forma de me incentivar a evoluir nos meus gostos.

Os livros da Meg Cabot que minhas amigas liam eram objetos de conversas e uma forma de acessar um conteúdo diferente do que eu conhecia antes. Quando nova, tinha acesso à literatura infantil e ao que meus pais estavam lendo em casa. Esse é um ponto importante: a minha casa sempre foi repleta de livros e os meus primeiros contatos estavam restritos a eles. Então, essa passagem da vida escolar foi interessante porque comecei a sentir o meu poder de agência na escolha do que ler.

Os quadrinhos

No ensino médio, continuei a cultivar o hábito de consumir ficção, principalmente as histórias em quadrinhos conhecidas como HQs. Para mim, essa é uma expressão da literatura muito negligenciada e vista como de segunda classe. Toda vez que converso sobre leituras com as pessoas, eu procuro trazer a referência de uma HQ.

          Quando eu era criança e ainda estava no fundamental, li Maus pela primeira vez e fiquei muito deprimida. Foi nessa leitura que percebi com clareza que meus pais não filtravam minhas escolhas literárias. Eu me lembro de estar com esta HQ em uma viagem de família e minha tia ficou devastada. Ela dizia para os meus pais: “como vocês deixam ela ler isso? Ela é tão pequena!”.

          Uma outra HQ que foi muito marcante para mim se chama Persépolis. Tanto Persépolis quanto Maus são livros que têm dimensões históricas, reais e dramáticas. E isso rompeu com a impressão que tinha sobre quadrinhos desde as leituras da Turma da Mônica. Na minha infância, eu devorava essas histórias e meu pai, sempre que passava em um sebo quando voltava para casa do trabalho, comprava um ou dois gibis da Turma da Mônica para nós. Então, existe uma relação muito afetiva com quadrinhos em geral.

          A consciência sobre a riqueza de expressão das HQs é algo fantástico, especialmente no Brasil com as obras de Marcello Quintanilha e Lourenço Mutarelli. É triste pensar que muitas pessoas acham que os quadrinhos estão em segundo plano, que não se relacionam com a literatura e são restritos ao mundo infantil. Faz dois anos que eu li, por exemplo, uma HQ chamada Minha coisa favorita é monstro que é  inteiramente feita de canetinha. Essa é uma história pesada e densa que envolve questões de gênero, de abuso e de infância. Portanto, o quadrinho também é um veículo para esse tipo de mensagem.

A hora e a vez do vestibular

Eu sou formada na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e durante o processo de vestibular, tiveram duas leituras que me impactaram especialmente. A primeira foi Claro Enigma de Carlos Drummond de Andrade, porque eu sempre li poesia na minha casa. Na verdade, a poesia era algo muito social na minha vida familiar e meu pai sempre chegava no meu quarto e dizia: “Alice, vamos ler poesia”.

Tanto é que, quando fiz o intercâmbio no ensino médio na Holanda, lia frequentemente uma edição de bolso do Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles com o meu pai pelo Skype. Ele era mineiro e gostava muito desse assunto, o que ajudou a construir uma relação de proximidade com a poesia.

Desde pequena, meus pais tinham o hábito de ler para a gente, antes mesmo de sabermos ler. Mas mesmo depois de alfabetizados, esses hábitos continuaram. Isso porque meu pai sabia ler em francês, um pouco de italiano e alemão. Quando eu era criança, eu tinha a impressão de que ele falava todas as línguas do mundo, até porque tinha bastante criatividade ali. Tudo isso me fez ter a impressão de que os livros são mundos possíveis de serem explorados por todos os lados. E a poesia também tem esse efeito.

Esses momentos de leitura conjunta com a família eram íntimos e uma porta de entrada para os poetas brasileiros. Por isso era algo extremamente social. E o Claro Enigma apareceu no período tenso e ansioso do vestibular, justamente quando estava sozinha. Eu me lembro de estar em uma tarde em casa, chorando de emoção com os poemas do livro. Depois, meu pai me falou que a Máquina do Mundo era o seu preferido. De fato, é um poema lindo.

          O segundo livro que me marcou durante o vestibular, mas do ponto de vista negativo, foi o Lucíola de José de Alencar. Minha mãe era professora de literatura brasileira e não gostava muito dos autores românticos dessa fase. Eu lia, mas não aproveitava o texto. Embora entendesse a sua importância histórica, eu questionava o jeito que o autor retratava as mulheres, as relações amorosas e o desejo. E a metáfora que fazia sobre Lucíola ser como um tanque com lama no fundo era algo que me deixava emburrada e de saco cheio. Minha mãe passava e tirava sarro de mim dizendo: “Ah, disso você não está gostando né Alice?”

Desde a minha adolescência,  me envolvi no movimento feminista. Eu cursei o ensino médio na Universidade Tecnológica Federal do Paraná e ajudei a fundar um coletivo feminista com outras mulheres. Também participei dos movimentos de gênero e sexualidade. Talvez por isso que Lucíola produziu esse efeito em mim – ainda que hoje, claro, eu reconheça a importância da obra.

As leituras essenciais na graduação

A graduação foi o momento em que menos li literatura na vida, assim como muita gente que tem esse hábito. Na faculdade de Direito, estudar é ler. Talvez, para quem estude engenharia ou outras disciplinas matemáticas, o processo de estudo seja baseado em listas de exercícios, simulações no computador, etc. Mas como no Direito o estudo é ler, quando eu queria descansar, já não buscava mais a literatura.

          Retomei o contato com ela apenas no final da graduação, lendo uma coisa ou outra e trocando ideias com os amigos. Isso foi interessante porque muita gente tinha passado pela mesma coisa que eu e essas pessoas também perderam um pouco da literatura nos trajetos da vida.

          Mas nesse período eu entrei em contato com autores teóricos que abriram muito a minha cabeça. No primeiro ano da faculdade, cursei uma disciplina chamada Teoria da História, algo que é muito qualificado na UFPR. Eu tive aula com o professor Ricardo Marcelo Fonseca, que hoje é reitor na UFPR e ele apresentou as escolas de historiografia. Foram seis meses muito interessantes pra mim, sob o ponto de vista acadêmico. Eu, que sempre gostei de história, me tornei capaz de observá-la através de lentes diferentes, tais como o positivismo, o marxismo, as análises da École des Annales e também a leitura de Walter Benjamin. Sobre esse autor, eu li o livro Walter Benjamin: Aviso de Incêndio de Michael Löwy e o Teses sobre o conceito de História, escrito pelo próprio Benjamin.

Direito, história, sociologia e outras leituras

Embora tenham sido experiências difíceis, elas mudaram a forma como eu me relacionava com a história e com a minha vida. Especialmente no que diz respeito a perceber o passado a contrapelo, como diz Benjamin. Eu não saia nem um minuto das aulas de Teoria da História, para não perder nenhuma palavra do professor.

          No primeiro ano de faculdade, também me aproximei do Direito Digital, que é a área que trabalho hoje no InternetLab. Nesse contexto, uma autora que me marcou foi a Donna Haraway, do Manifesto Ciborgue, porque ela conseguiu realizar uma interseção rica entre gênero, tecnologia, crítica e identidade. Além disso, nessa mesma época, comecei a estudar a Teoria Queer.

          A minha professora de Filosofia do Direito e orientadora de monografia, Ângela Couto Machado, me apresentou inúmeros textos feministas que partiam do referencial queer. Eu tive bastante proximidade com a obra de Judith Butler e isso me permitiu entender o gênero não como algo fixo, estático e que te aprisiona e modula. Nesse sentido, ele é mais como uma brincadeira. Eu diria que Michael Foucault foi um autor que me auxiliou a elaborar ideias nesse sentido e atravessou a minha graduação inteira.

          Mais pro final da faculdade, passei a sentir muita falta de incorporar uma perspectiva mais do sul global aos autores estadunidenses e europeus que lia. Eu tive uma outra disciplina muito interessante com o professor Luiz Fernando Lopes Pereira, também da História do Direito, em que ele discutia o pensamento decolonial. Foi a primeira vez que li uma autora nigeriana. Ela bagunçou totalmente a minha cabeça e se tornou referência na dissertação: a Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Esta autora discute os limites de gênero e do corpo a partir de uma tensão que deriva da posição do feminismo no globo. Ela questiona o que entendemos como razão no Ocidente e trata do mito fundante desta região, que é justamente a supervalorização da racionalidade.

Para Oyěwùmí, o Ocidente é fundado no corpo e não na razão, porque o que acontece lá depende do corpo e cor da pele. Tudo no Ocidente é alimentado pelo corpo, mas isso é acobertado pela falácia da razão. Ela tem dois textos que são fundamentais para mim e sempre recomendo: o Conceitualizando o Gênero e Visualizando o Corpo.

Os livros essenciais no mestrado

Na minha dissertação, duas importantes referências foram a Donna Haraway e Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Eu estudei suas obras tanto na monografia quanto no mestrado, com o objetivo de discutir a disseminação não consensual de imagens íntimas (NCII), também chamada de revenge porn.

          Desde o começo da graduação, me interessei pelas interseções entre Direito e Gênero, de um lado/ e Direito e Internet do outro. Eu queria juntar todas essas coisas em um projeto de pesquisa e o tema da disseminação não consensual de imagens íntimas foi o que me permitiu fazer isso. E eu espero poder continuar a investigar o tema fora do campo da violência. Isso porque, quando falamos de gênero e internet, quase sempre nos referimos a violência contra a mulher e minorias políticas. Mas eu também gosto de investigar a Internet não só como um espaço de violências, mas também de potencialidades.

Na monografia, estudei NCII porn sob o ponto de vista da responsabilidade civil dos provedores – ou seja, de plataformas como o Facebook, Instagram, WhatsApp, etc, – que está detalhada no Marco Civil da Internet brasileiro. Já na dissertação,  discuti como os outros países lidavam com isso e trouxe hipóteses que levavam a compreensão de imagem íntima como um dado pessoal. A consequência desse processo é a apropriação das legislações de proteção de dados pessoais também para proteger mulheres. Na dissertação, consegui tensionar um pouco mais a questão do que é o corpo no direito ocidental, uma vez que ele se estrutura a partir de duas categorias: pessoas e coisas. Mas, embora uma das bases do direito seja o corpo, ele fica em um estatuto jurídico fluído. Às vezes ele é lido como pessoa e, em outras, como coisa.

          De certa maneira, o corpo é avesso ao direito e o direito é avesso ao corpo. Contudo, ainda assim, o direito regula as transações que acontecem com o corpo, ainda que ele diga que o corpo não está presente nas transações. Pude explorar esse aspecto na dissertação para fazer o gancho com a disseminação das imagens íntimas. E como isso se relaciona com questões de gênero? Simplesmente porque não é algo que acontece com todas as pessoas. Isso acontece com mulheres situadas em um determinado local e contexto.

          Eu tenho vontade de continuar as pesquisas sobre esse tema. Admito que queria parar de estudar um pouco gênero e violência, porque fazem anos que me dedico ao assunto. Talvez, um caminho seja focar nas questões de acesso ao conhecimento, moderação de conteúdo e regulação das plataformas. São discussões que me animam bastante e que permitem construir paralelos com a literatura e as artes.

Os livros da cabeceira

Geralmente, leio dois livros ao mesmo tempo. Esse é um hábito que cultivo desde a infância: um livro de literatura e um de teoria ou história. Atualmente, estou em processo de finalizar Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, uma obra pesada. No âmbito da não ficção, terminei recentemente o Projeto Desfazer de Michael Lewis, que fala sobre uma teoria elaborada por psicólogos israelenses sobre a tomada de decisão humana. Depois de terminar o Projeto Desfazer, comecei a ler A Solidão dos Moribundos de Norbert Elias.

No ano passado, li muito sobre o luto e o livro que mais me marcou foi Altos Voos e Quedas Livres de Julian Barnes. É uma visão delicada e dolorida sobre a morte e o processo de luto de alguém que se amou muito. Pensando em outros livros essenciais na minha trajetória como leitora, também indicaria Persepolis, de Marjane Satrapi; Amada, de Toni Morrison; e Oryx and Crake, de Margaret Atwood.

O que está por vir?

Eu tenho uma lista infinita de livros para ler. Ultimamente, tenho me aproximado de obras de literatura japonesa. No fim do ano, vou participar do Internet Governance Forum (IGF) que fica no Japão e por isso tenho consumido bastante literatura desse país. Esse é um hábito que busco cultivar: de consumir aspectos da cultura local antes mesmo de viajar e conhecer. Agora, caiu nas minhas mãos um livro chamado Kitchen de Banana Yoshimoto.

Um outro livro de literatura japonesa que li se chama Há quem prefira urtigas, de Junichiro Tanizaki. Ele conta uma história muito bonita e sensível sobre a passagem do Japão tradicional para o moderno, sobretudo no que diz respeito aos relacionamentos desse país em mudança. Mas que, no fundo, não quer mudar.

Conheça mais leituras, temas e debates na página oficial do Diálogos INB.