A conexão entre Direito e Meio Ambiente por Tiago Zapater

O professor e advogado, Tiago Zapater, conversou com o INB para contar as relações, conexões e impasses contemporâneos sobre Direito e Meio Ambiente, com foco no ecossistema brasileiro.
Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater é professor do Departamento de Direitos Difusos e Coletivos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e coordenador assistente no curso de Especialização em Direito Ambiental do Cogeae-PUC/SP- Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão. Atua também como advogado do escritório Trench Rossi Watanabe.

A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou com o professor Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater no dia 23 de março de 2023, sobre a relação entre direito e meio ambiente.

INB: O ordenamento jurídico brasileiro possui diversas previsões de ordem constitucional e infraconstitucional que regulam a relação entre Direito e Meio Ambiente. Na sua opinião, quais são os principais marcos legais existentes e quão eficazes eles têm sido no tratamento das questões ambientais?

Tiago:  Essa é uma questão ampla e abrangente que pode ser feita para qualquer ramo do direito.  Ao abordar  o tema no início do curso de Direito Ambiental, o primeiro ponto que exploro é, justamente, a relação entre Direito e meio ambiente. Sugiro aos meus alunos que consultem manuais de Direito Ambiental, pois muitos deles mencionam que as primeiras leis ambientais encontram-se nas Ordenações Filipinas. Nesse documento, já havia uma previsão que proibia, por exemplo, o corte de árvores frutíferas.

No entanto, o tratamento legislativo dado aos componentes do meio ambiente é variável – existem diversas leis sobre árvores, extração de carvão e regulação das atividades produtivas voltadas ao tratamento destes elementos. Ao analisar a transição da Idade Média para o Direito Moderno, é possível encontrar referências sobre tais questões. No entanto, o termo “direito ambiental” como o conhecemos hoje, não existia no século XIX ou mesmo no  início do século XX. Embora houvesse legislação  sobre situações dessa natureza, o Direito Ambiental ainda não era uma área específica e reconhecida.

Meio ambiente como recurso econômico

De fato, houve uma verdadeira evolução no tratamento do ecossistema e dos componentes do meio ambiente. Anteriormente, ele era considerado um recurso estratégico e econômico, regulamentado pela legislação. No entanto, com o passar do tempo,  começou-se a reconhecê-lo como um direito. Pensar o meio ambiente como um direito é diferente de simplesmente haver legislação sobre o assunto. Um exemplo histórico bastante conhecido é a legislação da Prússia, que proibia a colheita de galhos e troncos de árvores caídas na floresta. Curiosamente, o próprio Karl Marx escreveu sobre o assunto. 

Existem leis que regulam condutas e atividades em relação aos componentes do meio ambiente. No entanto, os motivos que levaram às suas consolidações não se relacionam com a percepção de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos nós. Na verdade, elas foram pensadas para regulamentar aquilo que, naquele momento, era visto  como recurso público. Na era moderna, o meio ambiente é considerado um recurso do Estado ou um recurso privado. Portanto, falar sobre proteção do meio ambiente antes do surgimento do direito ambiental, propriamente dito, parece estar mais relacionado a uma regulação do uso desses recursos no seu sentido econômico do que à garantia da saúde e qualidade de vida.

Por isso, menciono os principais marcos legais do Direito Ambiental no Brasil. Do meu ponto de vista, essas reminiscências históricas não tinham o objetivo principal de proteger o meio ambiente, mas sim de proteger os recursos econômicos, como o carvão, peixes e minérios. Somente a partir da segunda metade do século XX, com a construção de uma comunidade jurídica internacional e a influência dos movimentos de direitos civis, surgiram demandas populares direcionadas ao Legislativo capazes de levar ao surgimento do direito ambiental como conhecemos.

O surgimento da comunidade jurídica internacional e a participação civil

Esse tipo de abordagem começou a surgir nos anos 1960 e se tornou mais evidente a partir dos anos 1970. Há também uma preocupação internacional voltada ao comércio internacional que participa dessa história. Um exemplo importante diz respeito ao princípio do poluidor-pagador, que foi mencionado em uma recomendação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1972. Basicamente, essa recomendação argumenta que é necessário estabelecer uma regulamentação internacional para evitar que os Estados subsidiem excessivamente medidas de proteção ambiental para empreendimentos privados, sob pena de desequilibrar o comércio internacional. E o princípio do poluidor pagador foi, posteriormente, incorporado no Direito Ambiental. 

Essas preocupações internacionais são relevantes, tanto no contexto do comércio internacional quanto nas questões ambientais. Por exemplo, no caso das discussões climáticas, é evidente que os esforços de um único país em cuidar do meio ambiente não são suficientes, se os demais agirem de forma omissa. O meio ambiente transcende os limites políticos e administrativos de um Estado e, por isso, os marcos internacionais são importantes. Eles só podem ser estabelecidos quando há uma comunidade internacional consolidada.

Direito ambiental e limitação de propriedade

Além disso, é importante ressaltar que o Direito Ambiental lida principalmente com a limitação do uso da propriedade, uma vez que os problemas ambientais estão relacionados à legitimação da intervenção do Estado nas atividades privadas. O que impacta de fato o meio ambiente é o controle da atividade produtiva. E  a construção do direito ambiental depende de uma certa estabilização democrática, em que a sociedade pode demandar. Embora a ascensão da extrema direita, em especial durante o governo de Jair Bolsonaro, tenha mudado essa dinâmica, os estadistas anteriores sempre receberam bem o discurso ambiental.

Todos os governos falavam positivamente do meio ambiente e prometiam ações para preservá-lo. O problema ocorre na implementação do Direito Ambiental, porque esse processo gera um importante conflito com o direito de propriedade. Tradicionalmente, é necessário ressaltar, que o Direito Ambiental não gerou um debate ideológico intenso, no sentido de questionar se a proteção ambiental deveria ou não existir conceitualmente, como aconteceu com parte dos direitos civis. Os maiores questionamentos se dão no campo da implementação. 

Dado esse contexto,  refletir sobre os marcos legislativos do Direito Ambiental no Brasil torna-se possível. No caso brasileiro, o marco mais significativo é a Constituição de 1988. Embora existam leis anteriores, foi ela quem elevou o meio ambiente ao nível constitucional. Mas não só.  O modo como a Constituição de 1988 lida com o assunto é muito interessante. O extenso artigo 225, por exemplo, é analítico na maneira como impõe obrigações ao poder público em relação ao meio ambiente. No parágrafo primeiro, estabelece as obrigações do poder público para garantir esse direito. Essa é uma  estrutura pouco observada em outros momentos da Constituição.

Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater
A Constituição e as legislações

Embora haja uma série de direitos no artigo quinto, não há um parágrafo específico que estabeleça as obrigações do poder público para garanti-los. No caso do  artigo 225 da CF, isso está presente de modo bastante detalhado. Dessa forma, torna-se possível pensar que direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é fundamental e dele derivam uma série de obrigações para o poder público. Essas obrigações variam desde o licenciamento ambiental até a obrigação de restaurar os processos ecológicos, controlar a poluição, os poluidores e substâncias poluentes. 

O artigo 225 da CF estabelece um marco que condiciona também a atividade do legislador em diversos aspectos. Com base nisso, é possível afirmar que a proteção do meio ambiente não é uma opção política, que pode ou não ser parte do programa de governo a cada quatro anos. Não é algo negligenciável em relação aos outros interesses. A proteção ambiental está fora das opções politicamente disponíveis. 

Pessoalmente, concordo que a Constituição não é dirigente em todos os seus aspectos, para usar a expressão do constitucionalista português José Gomes Canotilho. Mas, no caso da proteção ambiental, está nítido que a Constituição estabelece obrigações que vão além da manutenção do status quo ambiental, como  restaurar ecossistemas degradados, utilizar a divisão do solo para criar áreas especialmente protegidas, proibir a alteração de seus destinos por razões ambientais, como no caso das terras indígenas. Essas questões foram disciplinadas pela Constituição Federal.

Ao refletir sobre o assunto, nota-se que a Constituição direciona a atuação do Estado brasileiro e o comportamento dos particulares em relação ao meio ambiente. Assim, ao dispor sobre os marcos legais, deve-se considerar não apenas o âmbito constitucional, mas também a forma como ele orienta a atuação do poder público. 

E, a partir da Constituição, observa-se  cada vez mais uma proliferação da legislação ambiental infraconstitucional. Na minha opinião, é difícil analisar essa estrutura Constituição/legislação meramente sob os  parâmetros de um esquema piramidal. Evidentemente, se o assunto for controle de constitucionalidade, a estrutura da pirâmide é relevante. No entanto, quando se trata de saber como os tribunais decidem em relação ao direito ambiental, como o Poder Executivo atua e os particulares se orientam, a legislação tem uma importância enorme

O marco da Política Nacional do Meio Ambiente

Um outro marco significativo, nesse sentido, é a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), formulada antes mesmo da Constituição Federal, em 1981. A  PNMA antecipa o espírito presente no artigo 225 da Constituição. Essa lei foi extremamente avançada para o contexto da época, tanto em termos conceituais quanto na criação de uma política pública ambiental. Grande parte das legislações ambientais derivam de suas ideias porque sua estrutura — e, nesse sentido, extremamente inovadora —  é de uma legislação de política pública: ela contém princípios e objetivos a serem alcançados, bem como uma estrutura jurídico-administrativa que permite e baliza o atingimento desses princípios.

Eu costumo comparar a PNMA com o Código Civil. Esse exemplo pode parecer trivial, mas o fato é que o Código Civil possui normas e princípios que regem as condutas particulares mais ou menos em um esquema de validade/invalidade. A PNMA, por sua vez, tem objetivos a serem alcançados, como erradicar o desmatamento, acabar com a poluição e recompor os ecossistemas. Há aí um reflexo da mudança no paradigma jurídico moderno, que está muito presente no Direito Ambiental. Não se trata mais de um direito voltado a garantir a cada um a certeza daquilo que é válido querer, de manter a paz e a segurança jurídica das relações, mas sim de um direito preocupado em promover mudanças sociais o que, em certo sentido, vai no sentido oposto.  Veja-se, por exemplo, o artigo 3º da Constituição que estabelece os objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e redução das desigualdades.

Nesse novo paradigma, não é suficiente que um direito ambicione garantir segurança jurídica e estabilidade, mas não reconheça a necessidade de transformação diante dos problemas existentes. Essa abordagem se reflete tanto no Direito Ambiental quanto na PNMA. 

Avançando historicamente, após a criação da PNMA em 1981, ocorre a promulgação da Lei de Ação Civil Pública, em 1984. Em seguida, a Constituição Federal de 1988 é promulgada e em 1998, a Lei de Crimes Ambientais. Esse cenário demonstra que o legislador reconhece quais são os instrumentos importantes para a responsabilização por danos ambientais, como por exemplo o próprio licenciamento e o monitoramento. Passou-se a criar e ampliar um catálogo de áreas especialmente protegidas e que possuem um regime diferenciado. Além disso, o IBAMA e o CONAMA foram formados para responder perante o Ministério do Meio Ambiente pela estruturação de um sistema administrativo para implementação das políticas ambientais, o SISNAMA. Toda uma estrutura jurídico-administrativa de princípios, regras e competências às quais  corresponde certa organização orçamentária e essa estrutura independe dos órgãos ambientais em si, que podem ser criados ou extintos, mas sempre operam dentro dessa estrutura.  

Na Constituição (à qual podemos integrar tratados internacionais) e na PNMA, de certo modo, estão todos os princípios fundamentais que constituem a espinha dorsal do direito ambiental. A partir desse centro, e de modo consistente com a principiologia, toda uma multiplicidade de leis abrange temas específicos como diversidade biológica, recursos hídricos, clima, proteção do solo, fauna e a preservação da Mata Atlântica. Para cada um desses temas, há uma intensa proliferação da legislação ambiental.  

Alguns podem até pensar que a existência de um Código Ambiental seja pertinente. Eu não sei se essa é a melhor solução, mas entendo que a compreensão da lógica inerente ao Direito Ambiental torna o assunto menos complicado: há leis centrais – como a Constituição e a PNMA –  e leis temáticas que direcionam aspectos específicos do meio ambiente ao estabelecer regimes próprios.

Mas, como mencionei anteriormente, os princípios e instrumentos sempre remetem à Constituição, não apenas por uma questão hierárquica, mas porque ela é analítica. Conceitos como meio ambiente, poluição e degradação ambiental estão definidos na PNMA, e ela também é inovadora ao fornecer um capítulo explicativo capaz de compreender determinados conceitos. Existem riscos nessa abordagem, mas ela pode nos auxiliar quando lidamos com assuntos novos.

 Portanto, acredito que esses são os marcos fundamentais para atuar no Direito Ambiental. É importante familiarizar-se com a Constituição e com o seu capítulo sobre meio ambiente, assim como com a PNMA. Uma vez que haja um bom entendimento dessas bases, navegar pelo restante não é difícil.

Legislação X Proteção e Conservação ambiental

INB: No Brasil, os processos de formulação legislativa são permeados por inúmeros interesses econômicos, políticos e sociais. Até que ponto as leis e regulamentos nacionais e internacionais priorizam a proteção e conservação ambiental sobre o desenvolvimento econômico e outros interesses concorrentes e como eles equilibram estes interesses?

Tiago: Essa é uma questão interessante, especialmente a forma pela qual ela foi apresentada. Isso porque, parece que  há algo no processo legislativo que não deveria haver. Contudo, uma visão mais realista revela que essa contaminação acontece o tempo todo na elaboração de leis.

A tradição do pensamento jurídico brasileiro é muito influenciada por Hans Kelsen e pelo positivismo científico. Por isso,  há uma grande influência de suas ideias na  compreensão da tarefa do jurista como algo dissociado de outros aspectos da sociedade onde o direito acontece. Ao jurista puro seriam vedadas considerações políticas, sociológicas, antropológicas que, de certo modo, contaminariam a pureza técnica do direito, normalmente pensada em termos de objetividade e imparcialidade ou sem interesses.  Utiliza-se com frequência a expressão “questão técnica” justamente para se referir a esses recortes mas que são, na essência, uma tentativa de eximir o jurista da responsabilidade política de sua decisão ou interpretação.

Por isso que a pergunta sobre interesses que contaminam o processo legislativo é interessante, porque pode dar a impressão de que existiriam processos legislativos, e interpretações jurídicas e decisões judiciais puramente técnicas e desinteressadas. Mas sempre há interesses, a questão é entender a dinâmica desses interesses sem perder de vista a autonomia do direito. 

Nos meandros das Teorias do Direito

Grande parte da Teoria do Direito parte desse pressuposto. Assim, é notável o impacto da influência desse pensamento, vamos dizer assim “positivista“,  nas decisões judiciais, cuja expectativa geral é que sejam desvinculadas dos interesses políticos, econômicos, sociais, etc. na formulação da legislação. E isso é ainda mais evidente no caso do direito ambiental.

Como mencionei anteriormente, pressupõe-se certa estabilidade democrática para que as demandas da sociedade possam chegar aos formuladores de legislação. Há um desejo coletivo para construir boas leis ambientais e isso encontra raízes históricas no próprio direito moderno e burguês. Não pretendo fazer uma crítica marxista, mas uma observação histórica empírica. 

Com o fim do antigo regime, a produção legislativa passou a ser profissionalizada. Antes do século XVI, o Poder Legislativo europeu se reunia, vamos dizer, duas vezes por ano e as cortes aprovaram uma quantidade insignificante de leis. Atualmente, no Brasil, e no mundo, esse poder funciona diariamente, aprovando milhares de leis por ano.

Quando começamos a pensar na produção legislativa moderna – considerando o século XIX e o século XX –  verificamos que elas eram feitas por e para os proprietários. E essa situação persiste até hoje. No contexto brasileiro, a República Velha era oligárquica e não havia muitas expressões democráticas. A formulação da legislação no Brasil, até 1930, era feita por proprietários, que lidaram diretamente com o problema da abolição da escravidão e a mudança da monarquia para a República. E a preocupação dos proprietários era de que maneira seus privilégios se manteriam.

A Era Vargas e o deslocamento ambiental para a categoria constitucional

Seguindo o desenvolvimento histórico brasileiro, o Estado Novo de Getúlio Vargas também não pode ser chamado de  democracia. Mas o que gostaria de apontar é que somente com a Constituição de 1988 instituiu-se o sufrágio universal: me refiro não apenas ao direito de voto feminino, que já existiu no passado, mas ao voto dos analfabetos. Qual é a condição de democracia quando os analfabetos não podem votar ou ser eleitos, ainda mais se eles representavam uma grande parcela da população? 

Os poucos momentos democráticos são muito recentes e foram construídos, efetivamente, só a partir de 1988.  Portanto, a formulação das leis pelo Legislativo, com a preocupação de atender às demandas da população e não apenas dos proprietários ou do poder econômico, é bastante recente. Essa é a razão pela qual o processo legislativo sempre esteve permeado, primordialmente, por interesses econômicos.

O ponto de vista empírico revela esse processo com clareza. Mas a novidade é quando a população passa a controlar a produção das leis, o que só acontece com a formulação dos direitos fundamentais. Os interesses até podem ser debatidos, mas quando há um direito fundamental isso já não é mais relevante. A ideia, pelo menos conceitualmente, é  limitar a disponibilidade política dos direitos fundamentais. 

Na medida em que o meio ambiente é deslocado para a categoria constitucional, ele adquire uma outra importância. E essa demanda só pode existir em uma sociedade democrática. O constituinte condiciona a formulação de legislação ambiental à  proteção do direito fundamental garantido. Dizer que o direito ao meio ambiente é um direito fundamental significa retirá-lo da disponibilidade do legislador. Há uma proteção contra a influência de outros interesses, desde que eles sejam contrários ao núcleo desse direito. 

Esse é o mecanismo operante no Brasil, o que, na prática, torna a situação ainda mais difícil. Isso porque não há  necessariamente  uma eficácia na proteção contra os interesses. Na verdade, o legislador, ao desejar criar uma legislação que diminua a proteção ambiental, enfrenta maiores dificuldades. 

Do meu ponto de vista, até recentemente, ainda havia uma proteção legislativa relevante do meio ambiente. Inclusive, essa legislação era considerada avançada em relação a muitos países. Hoje, verifica-se um cenário de intensa preocupação internacional em relação ao Brasil, que é visto como o pulmão do mundo e abriga 25% da biodiversidade do planeta. 

A hora e a vez do Antropoceno

Em tempos de crise climática, não podemos ignorar a importância da proteção ambiental em um país como esse. Metade do  nosso território é coberto de vegetação e concentramos uma biodiversidade planetária significativa. E isso não pode ser relativizado. No entanto, como mencionei anteriormente, o Direito Ambiental opera em uma importante tensão: a proteção ambiental versus a atividade econômica produtiva, ou seja, a propriedade privada.

 A formulação da legislação ambiental enfrenta competições de interesses e ainda existem interesses econômicos que visam ao lucro de qualquer forma. Assim, preferem explorar recursos sem considerar a proteção ambiental. Nos últimos anos, apareceram diversos projetos de lei que pretendiam revogar o licenciamento ambiental ou torná-lo menos eficiente. Eles  argumentam que a burocracia atrapalha o desenvolvimento nacional.

A mudança no discurso em relação ao meio ambiente é recente e o ataque deliberado ocorre sistematicamente por meio do aparelhamento das instituições. Não é necessário alterar a legislação ambiental se o orçamento do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama for drasticamente reduzido. 

Mas não é apenas na formulação legislativa que podem haver debates e opiniões divergentes. Por exemplo, o novo Código Florestal foi discutido por dez anos e ainda há discussões no Supremo Tribunal Federal sobre seu modelo de proteção. No entanto, quando ocorre o esvaziamento dos órgãos responsáveis pela aplicação da legislação ambiental,  contorna-se o sistema democrático. 

A preocupação não é mudar a legislação, mas retirar os recursos desses órgãos e estimular práticas prejudiciais ao meio ambiente, como o “Dia do Fogo”. Trata-se de um fenômeno muito recente no Brasil e em outros países também. É importante notar que a vida não acontece apenas dentro dos tribunais, ela está em todo resto. O Direito tem que ser funcional na garantia.  

Interregno ambiental: o Governo Bolsonaro

Em relação às previsões ambientais, durante o governo de Jair Bolsonaro, ocorreu uma redução nas cadeiras do CONAMA. O problema disso é que há uma redução da representatividade e do aspecto democrático da deliberação sobre questões ambientais. O governo executivo tem muito mais poder para decidir o que acontecerá ou não nessa área. Assim, retiraram-se recursos do combustível, dos equipamentos de veículos, de monitoramento por satélite,  do combate ao desmatamento, etc.

E todas essas iniciativas dispensaram a necessidade de mudar a legislação. Elas não foram implementadas para promover um grande projeto de desenvolvimento do país em qualquer sentido. São medidas pequenas que facilitam o garimpo em terras indígenas, por exemplo. É um problema grave. Como as instituições podem se proteger dos interesses econômicos quando eles aparelham a totalidade do Estado?

Direito e Meio Ambiente: responsabilidades civis e individuais

INB: Como a responsabilidade civil ambiental é tratada pelo direito, e como as empresas e os indivíduos podem ser responsabilizados por danos ambientais?

Tiago:  Em primeiro lugar, o direito ambiental precisou lidar com uma evolução no sistema tradicional de responsabilidade civil, que é baseado na culpa aquiliana. Essa tradição tem raízes no direito romano, embora muitos de seus institutos tenham sido reinterpretados ao longo do tempo.

No entanto, a responsabilidade civil é um dos principais institutos jurídicos em qualquer jurisdição, e o Direito foi criado para lidar, essencialmente, com a questão da responsabilidade. As leis antigas que promoviam a justiça retributiva não são adequadas para a nossa compreensão atual da responsabilidade civil. Nosso sistema tradicional de responsabilidade é antiquíssimo, com origens ancestrais e baseado na noção de culpa.

 Em outras palavras, busca-se responsabilizar aqueles que cometeram algo errado e que poderia/deveria ter sido evitado. Quem é responsável em um acidente de trânsito? É aquele que agiu com negligência, imprudência ou falta de habilidade. Isso se aplica também aos erros médicos e outras situações, pois o sistema sempre foi fundamentado nessa noção.

A responsabilidade civil é originariamente um instituto moralista. Não busca apenas reparar o dano causado, mas também fazer com que o causador aprenda uma lição. A intenção é que, ao ser punido, tome mais cuidado da próxima vez. Após a Revolução Industrial, surgiram formas inéditas de causar danos. Essencialmente, tornou-se possível executar atividades que têm um impacto sem precedentes na história do planeta, seja na extração de recursos necessários, seja no impacto ambiental que causam ou na produção de resíduos poluentes.

 Se pensarmos nas mudanças nos padrões de consumo decorrentes dessas atividades, o mais próximo disso na história são as guerras. No entanto, mesmo esses cenários bélicos não produziam um impacto global no meio ambiente. A atividade industrial é absolutamente inédita, assim como o tipo de risco que gera. Portanto, os danos derivados desse processo, não podem ser logicamente atribuídos a algo que poderia ter sido evitado.

Moralismo e culpa

A noção moralista e individualista de culpa  não foi excluída, mas está distante no contexto ambiental. O desastre de Mariana, por exemplo, não deixa claro quem é o culpado direto. Quem é o responsável pela as ações da VALE que desencadearam a tragédia? Quem colocou a barragem lá? Quem gerou o risco de ter um terremoto? Se tivesse um terremoto sem a barragem, o cenário seria diferente, mas com a barragem, gerou-se um risco para os entornos.

 Quando o risco passa a ser o fundamento da responsabilidade, o instituto é radicalmente modificado. Uma das mudanças da responsabilidade civil ambiental em relação à tradicional é que ela não depende da culpa, justamente porque em grande parte dos danos ambientais, é impossível encontrar os verdadeiros culpados. Por essa razão, ao invés da culpa, a responsabilidade se vincula ao risco gerado pela atividade. Todos os demais elementos  também começam a se transformar. Nem mesmo o nexo causal é o mesmo, pois a busca não é mais pela ligação entre conduta e dano. O próprio conceito de dano também foi alterado, já que nem sempre pode ser expresso em termos patrimoniais. 

Portanto,  houve uma verdadeira evolução no sistema de responsabilidade. A resposta do Direito Ambiental, existente no Brasil desde 1981 com a PNMA, é que o causador do dano ambiental é responsabilizado independentemente de culpa. Tal compreensão foi desenvolvida pela jurisprudência, doutrina e leis que trabalham o nexo causal e o conceito de dano.

 Essencialmente, a resposta é sobre ter uma atividade que, mesmo quando operada corretamente, gera riscos. Se ocorrer uma enchente ou um deslizamento de terra que não cause diretamente dano ambiental, mas sim o rompimento de um oleoduto ou o derramamento de óleo, a empresa é responsabilizada. Portanto, se ocorreu o dano, é necessário repará-lo. 

Na verdade, há uma obrigação anterior de evitá-lo No sistema de responsabilidade tradicional, o agente pode até se justificar dizendo que o dano aconteceu por força maior e poderia ter sido evitado. Mas no Direito Ambiental, não importa a inevitabilidade, pois a atividade criou condições para que ele ocorresse. Dessa maneira, empresas e pessoas são responsabilizadas independentemente de culpa e geralmente respondem por causa do risco que sua atividade gerou.

 Esse é um sistema absolutamente inovador e que supera problemas tradicionais de prova na responsabilidade civil. No entanto, existem algumas dificuldades.  Se pensarmos  no caso Brumadinho, um dos grandes desastres ambientais nacionais, muitas vítimas ainda não foram indenizadas. Portanto, mesmo com todo esse sistema moderno de responsabilidade ambiental, os grandes casos permanecem impermeáveis à uma eficácia.

Caso Brumadinho: entre tragédias e resiliências

A cidade de Brumadinho ainda não foi reconstruída, as pessoas ainda não foram indenizadas e  grande parte do dano causado ainda está presente. Com frequência, foram encontrados corpos que ainda não haviam sido localizados. Já se passaram anos desde o ocorrido. No caso do derramamento de óleo no Nordeste do Brasil, ainda não se sabe a origem do óleo nem como reparar os danos. Não possuímos os mecanismos legislativos teóricos de responsabilidade que, supostamente, resolvam o problema da prova de culpa. 

Essa é uma visão baseada no processo judicial e foi elaborada por juristas. Mas ainda há falta de indenizações. Qual é a resposta para esse problema? Não é possível ter uma resposta correta sem a pergunta correta. O que precisamos notar no sistema de responsabilidade civil ambiental hoje é que há um problema de eficácia na reparação. É claro que não é fácil lidar com grandes desastres em nenhum lugar do mundo e  as empresas tentam criar fundações e oferecer programas de adesão voluntária para indenizar todos. 

Observa-se que muitos advogados estrangeiros  estão vindo para o Brasil  em busca de soluções. Hoje, empresas envolvidas em alguns desses desastres responderam aos processos aqui no país. Pessoalmente, como advogado, acredito que  todo o sistema de indenização no Brasil leva a uma distorção, pois os valores são muito baixos.  

Certa vez, ouvi um professor comentar no Congresso, que a única resposta legislativa estatal que faria  no caso da VALE sentido seria a estatização da empresa. Ou seja, a empresa não poderia mais operar privadamente e seria devolvida ao controle do Estado. Porém, isso acarreta outros problemas de legitimidade. Quando relaciono o dano causado ao lucro gerado, surge um problema muito diferente. 

O hoje

Inicialmente, acreditava que a eficiência do sistema de responsabilidade ambiental no Brasil era brilhante. Porém, após o caso de Mariana em 2014, para mim ficou evidente a ineficiência desse sistema, uma vez que muitas pessoas ainda não foram indenizadas adequadamente. Muitos fizeram um acordo e receberam uma quantia em dinheiro, mas o fato é que  a vida dessas pessoas foi modificada para sempre e o dano ambiental persiste.

Portanto, acredito que ainda há desafios a serem enfrentados. E eles aumentarão à medida que nos deparamos com as mudanças extremas no clima. Infelizmente, imagino que veremos mais situações de desastres em que será cada vez mais difícil atribuir a característica de “natural” a esses eventos. Existe uma movimentação incipiente em vários países no sentido de promover a litigância climática e abordar essa questão. 

 Acredito que será necessário pensar em um sistema de responsabilização que, em última análise, socialize os lucros, uma vez que as atividades que causam essas mudanças climáticas e desastres são extremamente lucrativas e bilionárias. E isso é possível? A desigualdade em nossa sociedade é algo como que pré-estrutural, isto é, condiciona a própria construção das estruturas sociais, a partir dos seus alicerces, e, por isso, se reproduz em todas as manifestações da sociedade. Não é só na economia em si, de quanto dinheiro cada um tem, a desigualdade condiciona as possibilidades na educação, na habitação, na saúde, e até mesmo em setores como religião e direito (existem as religiões “de rico” e “de pobre”; assim como existe a advocacia “de rico”, que tem “passagem nos tribunais” e a dos pobres). Os impactos ambientais seguem a mesma lógica: os mais pobres estão mais expostos aos impactos ambientais do que os ricos, que são, normalmente, os responsáveis pelas atividades que casam esse impacto.

Em Brumadinho, por exemplo, a lama passou por cima do refeitório dos funcionários, e não sobre a sala de reunião da diretoria, provavelmente localizada em um escritório na cidade grande. De certa forma, isso simboliza como os riscos ambientais se distribuem de acordo com o esse “metacódigo” da desigualdade.

 Em algum momento, os sistemas de responsabilidade por danos ambientais terão que deixar de ser apenas uma forma de arrecadar recursos após desastres. O sistema deve realmente priorizar que esses danos sejam reparados de modo relativamente independente de quem seja o responsável, custeado pelo setor envolvido como um todo. Ainda estamos presos à ideia de que essas empresas precisam ser “punidas” e não é que não precisem, mas a reparação dos danos talvez não precise estar atrelada a essa responsabilização individualizada.

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