A filosofia de Hans Kelsen por Willis Santiago

Willis Santiago, pesquisador e professor da PUC-SP, falou com o INB para contar as diversas facetas históricas sobre a filosofia de Hans Kelsen.
Willis Santiago Guerra Filho é professor doutor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Professor Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional. No dia 26 de janeiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou com o Prof. Willis Santiago Guerra Filho sobre as contribuições da filosofia de Hans Kelsen,  um dos maiores juristas e filósofos do século XX.

A filosofia de Hans Kelsen em um mundo de transformações

INB: Quem foi Hans Kelsen e como o contexto político e social em que viveu influenciou o seu trabalho?

Willis: Hans Kelsen nasceu em Praga em 1881, uma época em que a cidade pertencia ao Império Austro-Húngaro. Ele era judeu e sua língua materna era o alemão. Kelsen viveu em Viena em um período de grande efervescência cultural. O livro Viena: Fin de siècle de Stephen Toulmin apresenta um quadro ilustrativo do que foi esse momento na cidade.

Toulmin foi um filósofo importante e  adepto às ideias de Ludwig Wittgenstein. De certa maneira, seu livro retrata as notáveis figuras culturais daquele momento, com destaque para o próprio Wittgenstein. Este autor testemunhou parte da decadência do Império Austro-Húngaro, que se desintegrou após a Primeira Guerra Mundial em 1918. Sigmund Freud também fazia parte desse ambiente cultural e era amigo de Kelsen. Inclusive, houve uma ocasião em que Kelsen defendeu Freud, quando este foi processado pela prática da análise leiga. Kelsen argumentou que a psicanálise poderia ser praticada por profissionais formados em áreas do conhecimento diversas da medicina. 

Além disso, as contribuições kelsenianas também impactaram as análises políticas no sul global. Esse autor é amplamente discutido no Brasil e nos países da América Latina. Isso é curioso, se pensarmos na Alemanha ele é menos conhecido. Eu fiz meu doutorado na Alemanha e me lembro que, certa vez, conversei com um colega sobre Kelsen. Para minha surpresa, ele não o conhecia.

E esse cenário é totalmente diferente do que acontece aqui. Reza a lenda que o primeiro assunto que se discute  nas salas de aula dos cursos de Direito no Brasil, é a filosofia kelseniana. Não há uma explicação clara para isso, somente uma pesquisa seria capaz de talvez explicar esse fenômeno.

Além de Kelsen, existem outros autores europeus que são considerados mais importantes no país em comparação com sua terra natal. É notável que, politicamente, ele sempre foi considerado um democrata, em uma época na qual a democracia social ainda não havia sido estabelecida.  No contexto da democracia liberal, Kelsen foi um grande defensor e ator  político. Não por acaso, foi também ministro e contribuiu para a instituição do primeiro Tribunal Constitucional Europeu, seguindo um modelo de controle concentrado. Apesar de já haver precedentes na Suprema Corte Americana, o modelo implementado na Áustria é inovador. E o mandato do Tribunal Constitucional Europeu é totalmente democrático, pois é considerado um poder político que decide em última instância sobre a constitucionalidade.

A política em Hans Kelsen

O conteúdo político de Kelsen é frequentemente subestimado. Há uma perspectiva clássica acerca da epistemologia das ciências que pode ser aplicada ao Direito. Este ponto de vista tem contribuído para a fama de Kelsen, especialmente  em razão de seus esforços para formular a Teoria Pura do Direito. No entanto,  a contribuição política de Kelsen é ainda mais importante do que sua Teoria Pura do Direito. Um exemplo de sua habilidade política pode ser observado no caso em que um acordo condicional não obteve êxito inicialmente na Áustria. Como resultado, a Igreja e as forças conservadoras se revoltaram e buscaram fechar o tribunal. Kelsen propôs um acordo político para salvar a situação e ele, juntamente a dois colegas, se retirou do tribunal, que foi posteriormente reconstruído de maneira mais conservadora. Isto é, Kelsen se retirou para preservar a instituição.

Após esse episódio, o jusfilósofo passou a residir na Alemanha e aceitou o convite para ser professor em Colônia, onde, mais tarde, votou a favor da inclusão de Carl Schmitt no quadro de professores da universidade. Naquela época, era comum que os professores se manifestassem sobre quem deveria lecionar nos cursos de formação. Neste caso, a situação tornou-se extremamente delicada porque, anos depois, Schmitt apoiou a expulsão de Kelsen da universidade durante o período nazista, quando a Áustria foi anexada e o Tribunal Austríaco constitucional foi fechado.

Disputas ideológicas

Como é sabido, após os horrores do nazismo, as forças políticas, jurídicas e sociais precisaram ser recompostas. E o Tribunal Constitucional instituído na Alemanha liderou o processo na Europa e no resto do mundo, o que adquiriu uma enorme importância do ponto de vista político, social e teórico. Os cargos de juízes funcionavam por meio do quórum qualificado exigido para a eleição e isso determinava quem seria escolhido para ocupar tais funções. Naquele ambiente cultural germânico, os professores normalmente eram indicados como os mais competentes para atenderem às  diversas forças políticas que circulavam no país. Inclusive, havia  uma vaga para cientista político na corte austríaca,  o que remonta ao próprio modelo original kelseniano,  resgatado após a Segunda Guerra

Portanto, Kelsen entrou em conflito com Schmitt sobre essa questão.  E Schmitt defendia que quem deveria ser o guardião da Constituição era o Führer. Uma breve análise histórica, já revela o resultado dessa opinião. Contudo, a história também demonstrou que houve uma grande vitória ao final da segunda guerra mundial, que foi a criação da instituição política mais importante da segunda metade do século XX:  a Corte Institucional. É ela quem permite o equilíbrio dos poderes e por isso é preciso que esteja bem composta e estruturada. A Corte Constitucional possui duas funções: arbitrar o conflito entre os poderes e garantir os direitos fundamentais, o que há de mais relevante em um Estado Democrático de Direito. 

A importância da Filosofia de Hans Kelsen

INB: Qual é a importância e atualidade do pensamento e da obra de Kelsen em suas variadas dimensões ?

Willis: Como mencionei anteriormente, Kelsen é o autor do modelo da Corte Constitucional, ou mais precisamente, do controle concentrado. Isso o coloca em uma posição de destaque. Em termos teóricos, há dois aspectos que devem ser mencionados. Primeiramente, a teoria pura do direito proposta por Kelsen, representa um marco na ciência jurídica e serve como base para avanços futuros.

Infelizmente, muitos profissionais do direito ainda estão distantes dessa proposta e isso causa preocupação. É fundamental trabalhar para melhorar este quadro, assim como faz Friedrich Müller, um exemplo de intelectual ativo e relevante na doutrina jurídica alemã do pós-guerra, que mantém contato frequente com o Brasil.

Müller escreveu o prefácio da segunda edição de sua Teoria Estruturante do Direito e lá afirma que o livro foi escrito como uma homenagem a Kelsen. Segundo Müller, a melhor homenagem que se pode fazer a um intelectual é superá-lo, atualizá-lo e levar adiante o que ele não pôde fazer por não ter vivido o suficiente. Caso Kelsen estivesse vivo, teria continuado a se transformar. A prova disso é o livro que reúne material inédito póstumo chamado Teoria geral das normas, no qual observa-se uma postura contrária à ortodoxia kelseniana. 

A partir dos anos 1960, Kelsen argumentou que a norma fundamental não poderia ser hipotética. Isso porque uma hipótese implica em algo que pode ser verdadeiro ou falso, enquanto a norma é válida ou inválida. No entanto, ele mesmo violou suas próprias premissas ao afirmar que a norma fundamental era um pressuposto transcendental. Ao estabelecer como fundamento de validade das normas fora do âmbito em que elas se situam – ou seja, o âmbito da validade em si – Kelsen constrói uma solução teórica para resolver esse problema.

 No contexto destas reflexões, Kelsen já era um leitor de Hans Vaihinger, defensor da filosofia do “como se” – como é possível perceber em sua obra Die Philosophie des Als Ob. Kelsen menciona Vaihinger em seu trabalho de 1904 sobre ficções jurídicas, o que indica que já estava familiarizado com o autor. Desse modo, ele resolve o problema ao afirmar que a norma fundamental é  fictícia, o que implica que todo o direito é uma construção ficcional que deriva dela. Isso tudo é muito impactante para os leitores ortodoxos de Kelsen, pois eles, muitas vezes, não aceitam que o autor mudou de opinião ao longo de sua vida.

Da epistemologia à teoria pura do direito

Um outro aspecto que gostaria de destacar, é que Kelsen não se limitou à realizar contribuições restritas apenas ao campo da epistemologia. De fato, ele o fez com excelência, como demonstra as suas contribuições epistemológicas em sentido estrito, que se concentram principalmente no campo da teoria pura do direito. Mas ele também escreveu importantes textos sobre a relação entre o direito e a alma e  entre Deus e o Estado, que consiste em um estudo anterior à teologia política de Carl Schmitt. Até que ponto a teologia política é uma reação? Deixo para os pesquisadores responderem essa pergunta. Além disso, Kelsen foi pioneiro na relação entre direito, psicanálise e teologia política. 

Seu livro Teoria geral das normas, traduzido por José Florentino Duarte, foi publicado muito cedo no Brasil, pela editora Sérgio Fabris, o que explica sua baixa repercussão no país. As pessoas costumam se interessar em outros textos de Kelsen, entre eles, a Teoria Pura do Direito e acredito que esses textos póstumos devem ser mais discutidos por nós. A Teoria geral das normas trata do direito enquanto sistema, assim como a moral e a religião. Tais temas são trabalhados de diferentes maneiras pelo autor.    

A antropologia também foi contemplada de uma forma inovadora por Kelsen. Considero o autor, um grande platonista, pois ele escreveu livros sobre antropologia,  sociedade,  direito,  natureza, antropologia jurídica e filosofia, entre outros. Ou seja, discutiu os mais variados temas de modo criterioso, tendo em vista a preservação do princípio do formalismo por ele adotado. A versatilidade de interesses de Kelsen, também pode ser exemplificada pelo seu pioneirismo em explorar a relação entre direito e literatura. Seu texto A Teoria do Estado de Dante Alighieri é uma demonstração disso. 

Há ainda outros autores que seguiram uma linha de pensamento kelseniana, como Oscar Corrêas e Luiz Alberto Warat , meus grandes amigos. Corrêas imigrou para o México e desenvolveu sua carreira por lá. Além de kelseniano, ele também era marxista. Portanto, em seu texto El otro Kelsen, publicado na edição especial de uma revista jurídica da Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua, Managua – UNAN, sua preocupação é estudar o ordenamento jurídico burguês a partir de uma ideologia marxista.  A ideia central é discutir um outro Kelsen, ou seja, aquele que poucos conhecem, como o Kelsen que estabelece o liame da psicanálise com a filosofia e a religião. 

Kelsen e sua multidisciplinaridade

Tudo isso é fundamental para explicitar a multidisciplinaridade de Kelsen e, assim, nos afastamos de sua percepção estritamente dogmática. De acordo com o autor, o Direito não se mistura com outras áreas. Essa é uma perspectiva kantiana moderna facilmente localizada no formalismo. Contudo, o formalismo não impede que o Direito não se relacione com outras matérias, do ponto de vista científico. 

Do ponto de vista  de vista, o conteúdo jurídico é plurigo, ou seja, é composto de valores. Ao dispor sobre essa questão, Kelsen destaca a importância de se considerar o valor do sentido objetivo em contraposição ao valor subjetivo ou ideológico, para que se possa estudar cientificamente o Direito. Embora reconheça a existência desses valores subjetivos, Kelsen ressalta que não se pode assumi-los para fins científicos.

Em contrapartida, é necessário superar alguns pontos obscuros na teoria de Kelsen e assumir uma perspectiva democrática na teoria do Direito. A teoria do Direito deve promover os direitos humanos fundamentais e a democracia.

INB: No campo da filosofia do direito a  Teoria geral das normas  não é tão prestigiada  por muitos dos leitores de Kelsen. Quais são as contribuições e limites dessa obra?

Willis: Além do que eu mencionei, para mim a maior contribuição desta obra foi tratar a norma fundamental como uma ficção. Kelsen  trabalhava com a lógica das normas, o que resulta em uma discussão intensa com Ulrich Klug, seu colega e professor em Colônia. Klug é reconhecido como  pioneiro na aplicação da lógica modal na Alemanha, que estende-se aos estudos das prescrições de Henrik von Wright, discípulo de Wittgenstein e criador da lógica deôntica. Klug, por sua vez, trouxe essa abordagem para o estudo específico do Direito. 

Entre cartas e correspondência: Kelsen e Klug

Kelsen e Klug também mantiveram correspondência, traduzidas e publicadas em português por Paulo Bonavides, um importante intelectual brasileiro que foi professor visitante em Colônia. Mas o que é importante no debate entre Kelsen e Klug, é que Kelsen defendia que se estudasse as normas com lógica, mas não que houvesse uma lógica das normas. Isso porque ele defende a opinião que a norma não tem compromisso com a lógica, pois esse papel é da Ciência. 

Na Teoria geral das normas, essa distinção não está mais presente, pois Kelsen percebeu a diferença entre a proposição normativa e  norma já na segunda edição da Teoria Pura do Direito. Norberto Bobbio, por exemplo, explica essa distinção de forma muito precisa. Primeiramente, ele se pergunta: a imputação pertence à norma ou à proposição normativa? A partir dessa questão, é mais fácil compreender que a imputação, assim como o princípio da causalidade nos juízos de fato da ciência da natureza, também pertence ao juízo. Ou seja, é o juízo que realiza a imputação. 

Assim, Kelsen parte dessa distinção em sua obra póstuma. E isso é diferente do caminho que tomou na primeira edição da Teoria Pura do Direito, na qual conceituou a norma como um juízo lógico hipotético. Mas isso é equivocado: a norma é uma prescrição. No entanto, é possível elaborar um juízo lógico sobre as normas por meio da ciência. Não se deve confundir o plano da ciência e da lógica com o plano da vontade, que se expressa para influenciar outras vontades. Esse é o conteúdo das normas e a vontade racional não está necessariamente comprometida com a razão. A vontade pode ser orientada pela razão, mas os planos da vontade e da razão não devem ser confundidos. 

“Portanto, a lógica está no plano da razão, enquanto o Direito, como uma ordem coercitiva, é definido na segunda edição da Teoria Pura do Direito como uma manifestação de vontade para coagir outras vontades. Porém, essa manifestação de vontade não necessariamente segue a lógica – é dever do cientista estabelecer tal conexão.”

Posteriormente, Kelsen reconhece na segunda edição da Teoria Pura do Direito que a norma fundamental é um resquício do conceito de norma jurídica em geral. Inclusive, a primeira edição da Teoria Pura do Direito traz o conceito lógico de norma e ele trata do conceito da norma como juízo. Essa perspectiva é alterada na segunda edição, pois o autor passa a entender a norma como um ato de vontade e isso não significa que ela terá um sentido lógico.

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