No dia 13 de março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a Clara sobre o seu projeto de pesquisa “Aplicação da Inteligência Artificial no Poder Judiciário e seus Impactos”
INB: Qual é o problema discutido no seu projeto de pesquisa e o que te motivou a pesquisar sobre o assunto?
Clara: A minha pesquisa aborda a aplicação da inteligência artificial nas decisões dos tribunais brasileiros. A primeira parte do estudo dedica-se a discutir conceitos relevantes ao desenvolvimento histórico dessa tecnologia para, em seguida, analisar casos práticos dessa implementação no Poder Judiciário por diversos países, com ênfase no Brasil.
Para ser sincera, antes de iniciar a pós-graduação, não tinha muito contato com o tema (inteligência artificial). Lembro-me que logo na primeira disciplina do curso de pós-graduação abordamos aspectos da tecnologia e, apesar de ser uma introdução, cumpriu o objetivo de apresentar ideias iniciais da computação do ponto de vista técnico. Ao mesmo tempo, o professor responsável pela disciplina discutia o assunto de forma didática e acessível, sempre trazendo exemplos da aplicação tecnológica no âmbito jurídico. Foi nesse contexto que assisti à primeira aula sobre inteligência artificial, que despertou imediatamente meu interesse.
Eu sempre entendi o direito como um ramo tradicional e, em muitas situações, extremamente burocrático. Acredito que isso pode se tornar um óbice ao acesso à justiça, como se ele por si só fosse um caminho tortuoso para a prestação jurisdicional. Quando era estagiária na Defensoria Pública, tinha que lidar com um enorme volume de processos e, por isso, passava muito tempo desempenhando funções mecânicas. Esse cenário é diferente hoje para o estagiário, à medida que a incorporação da inteligência artificial auxilia e otimiza a resolução de tarefas nessa área.
No entanto, essa questão não se limita à Defensoria Pública, embora nesse órgão o problema seja especialmente significativo, visto que o objetivo dessa instituição é oferecer, de forma integral e gratuita, assistência e orientação jurídica às pessoas que não possuem condições financeiras de pagar as despesas destes serviços. De fato, ela se estende ao universo do Direito como um todo. Do meu ponto de vista, tais experiências me motivaram a entender de que forma a inteligência artificial é aplicada na gestão do processo judicial para, assim, realizar um mapeamento das tecnologias que contribuem para uma maior inclusão e efetivação do acesso à justiça.
INB: O que você concluiu com o seu projeto de pesquisa?
Clara: Enquanto realizava o mapeamento das tecnologias, meu objetivo era destacar as implicações dessas modernizações, pois elas afetam diretamente a vida das pessoas. Durante a pesquisa, encontrei alguns casos de sucesso, mas também identifiquei situações problemáticas. Um exemplo notável de aplicação de inteligência artificial no Brasil é o Sistema Victor, do Supremo Tribunal Federal, que categoriza recursos extraordinários com base em temas de repercussão geral. Por meio da tecnologia de aprendizado de máquina, esse programa analisa os recursos que ingressam no Tribunal e identificam padrões de modo a agrupar os processos nos julgamentos de Repercussão Geral. Além disso, esse programa é capaz de separar e categorizar as peças mais importantes de cada processo e converter imagens em textos no processo digital ou eletrônico.
Recentemente, após o fechamento da minha pesquisa, o STF lançou um novo programa, o RAFA 2030 (Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030), ferramenta que tem o objetivo de classificar as ações de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).
Outro caso interessante, embora problemático, ocorreu nos Estados Unidos com um software chamado COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions), usado para calcular penas de condenados. Após estudos, a ONG ProPublica, revelou que as decisões geradas pela ferramenta eram desvinculadas do caso e agiam sem fundamentação. Isso levava a um número desproporcional de condenações de pessoas negras e de baixa renda, o que levanta preocupações significativas sobre a igualdade e a presunção de inocência. Segundo a ONG, a tomada mecânica de decisões, com base em padrão decisório previamente definido, dissociado do caso concreto e sem a fundamentação em contraditório pelo juiz do caso, acabou por reforçar injustiças da sociedade norte-americana.
Em resumo, a inteligência artificial pode democratizar o acesso à justiça, mas para isso requer regulamentação cuidadosa, especialmente nos países que ainda não possuem legislação específica. Devemos garantir que a Inteligência Artificial não perpetue preconceitos e discriminações, desde a fase de construção até a implementação. Ela não pode substituir completamente a participação humana. Eu considero, então, essencial que as decisões da máquina não estejam dissociadas do fator humano inerente a maioria dos casos, de modo a evitar que a máquina reproduza preconceitos que estão presentes na nossa sociedade.
INB: Como você analisa a contribuição da sua pesquisa para a nossa sociedade?
Clara: Eu considero que a inteligência artificial é o tema do momento e merece toda a atenção que está recebendo. Isso porque suscita questões que precisam ser amplamente estudadas, e suas informações precisam ser disseminadas. Na verdade, todos nós interagimos diretamente com a inteligência artificial em nosso cotidiano, o simples ato de ligar a televisão para assistir a um filme na Netflix é mediado pela interação com a inteligência artificial, que faz recomendações. Portanto, acredito que essa discussão é crucial.
Além disso, considero que a inteligência artificial é um tema interdisciplinar que vai além do campo jurídico. Deve ser uma discussão presente em diversas áreas, como na tecnologia da informação, na segurança da informação e nas ciências sociais, entre outros. Meu trabalho, dentro de sua delimitação, visa expandir o debate e o estudo sobre o assunto.
Dentro do conceito das ondas renovatórias de acesso à justiça, inicialmente desenvolvido por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que, posteriormente, continuaram a ser trabalhadas por demais juristas, é interessante destacar que já há pesquisadores alertando, por exemplo, para o surgimento de uma sexta onda que trata justamente de como as novas tecnologias e iniciativas vão aprimorar o acesso à justiça. Assim, talvez minha maior contribuição seja expor mais informações e promover a discussão sobre um recorte específico do debate. Estou comprometida em contribuir nesse sentido com futuras pesquisas.
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