Interesse Público por Floriano de Azevedo Marques Neto

Floriano de Azevedo Marques Neto é professor titular de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP) e professor do curso de pós-graduação stricto sensu da FGV-RJ. Atualmente é Ministro do Tribunal Superior Eleitoral (2023).
Floriano de Azevedo Marques Neto é professor titular de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP) e professor do curso de pós-graduação stricto sensu da FGV-RJ. Atualmente é Ministro do Tribunal Superior Eleitoral (2023).

No dia 18 de janeiro de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com o professor Floriano sobre o tema do interesse público

INB:  É um senso comum a afirmação de que o Estado deve contemplar o interesse público. No entanto, ao mesmo tempo parece ser cada vez mais difícil compreender essa noção como uma unidade. Para o senhor, o que significa interesse público?

Floriano: O interesse público tornou-se um artifício retórico que impacta o direito público brasileiro mais do que outros sistemas jurídicos. Este termo é amplo e abrangente e engloba quase tudo, exceto os interesses particulares. No entanto, existem duas maneiras de definir o conceito. Uma delas é por exclusão, na medida em que considera-se tudo o que não é particular como interesse público. A outra é por meio de uma definição que transcende o indivíduo ou grupo, pois afeta a  coletividade em diferentes graus.

Essa distinção é importante por duas razões. Em primeiro lugar, não há uma equivalência precisa entre interesse público e coletivo, uma vez que os desejos de uma determinada coletividade nem sempre correspondem aos desejos de toda a sociedade. Em segundo lugar, é essencial identificar o benefício que atinge todos os membros de uma coletividade para caracterizar o fenômeno como público. O interesse público restringe os interesses privados e pode beneficiar as pessoas de forma desigual. Por exemplo, aqueles que dirigem alcoolizados têm uma pretensão mais imediata em evitar outros motoristas alcoolizados do que aqueles que não estão nessa situação. Nesse caso, embora haja desigualdade, ainda há um benefício para todos.

É importante compreender que existem diversas facetas do interesse público, e, portanto, são necessários mecanismos transparentes para escolher qual deles será privilegiado em cada situação. Um exemplo disso envolve os conflitos entre famílias que vivem em áreas de mananciais e desejam preservar o ambiente e o Estado. Por sua vez, esse almeja estender a preservação ambiental. A definição do interesse público como algo transcendente que afeta todos os indivíduos é uma maneira de abordar a questão.

No entanto, lidar com os conflitos e encontrar soluções equitativas para situações complexas é essencial. Note que sua análise é detalhada e demonstra uma compreensão profunda das complexidades envolvidas na definição e aplicação do conceito de interesse público. Essas ambiguidades são propositalmente ocultadas pela fórmula retórica. Isso ocorre porque, se houver apenas um interesse público, o administrador se torna o definidor plenipotenciário. Isso cria uma dimensão de inoponibilidade e impossibilidade de antagonismo.

Na verdade, a fórmula em questão é promovida pelos administrativistas que trabalham com a ideia da supremacia, contra a qual não pode haver contraposição, questionamento ou qualquer tipo de ponderação. Se for esse o caso, abre-se espaço para o arbítrio e o autoritarismo. Ao reconhecer a existência de vários interesses públicos, assume-se a possibilidade de haver um debate para construir a transparência e participação do significado. Embora nem todos possam se beneficiar diretamente das políticas que atendem ao interesse público, sua manutenção é essencial para garantir a qualidade de vida em uma sociedade justa.

A política de cotas nas universidades, por exemplo, permite que barreiras artificiais sejam quebradas, tornando o ambiente mais plural e tolerante. O intercâmbio de experiências e a integração de pessoas na sociedade são fundamentais para liberar o potencial de cada indivíduo.”

INB: Para Norberto Bobbio, uma das promessas não cumpridas da democracia passa pela não participação da sociedade civil no Estado. Como o senhor avalia a relação entre participação e interesse público em um contexto no qual as novas tecnologias favorecem a ampla possibilidade de manifestação?

Floriano: Essa relação representa um desafio muito grande para todos nós. Do meu ponto de vista, há uma falha sistêmica na democracia representativa: o crescente fechamento de espaços para a participação popular. É claro que houve avanços significativos na perspectiva de ampliar as políticas públicas ao debate público e à maior participação. Mesmo assim, a democracia representativa não consegue incluir todos o tempo todo.

Se estivéssemos tendo essa conversa há 15 anos, eu diria que o melhor caminho a seguir é o da ‘arena pública’, conforme as considerações do autor italiano Sabino Cassese. Com a introdução das novas tecnologias, surge uma dimensão qualitativa no debate público, pois elas, aparentemente, aumentam a participação popular. No entanto, isso é enganoso porque elas dão voz, sobretudo aos grupos fechados em suas bolhas de ideias homogêneas.

No passado, alguns autores afirmaram que a sociedade em rede tornaria a sociedade mais democrática. Porém, nos últimos anos, vimos o oposto acontecer. A sociedade em rede, no modelo algorítmico, tornou a sociedade menos democrática e promoveu a polarização de ideias, opiniões e posturas, em vez de uma participação ampla e contínua de todos no processo político. Hoje arrisco dizer que, se Bobbio estivesse vivo, ele reavaliaria essa afirmação. As novas tecnologias nos mostram que a participação pode se tornar quase corporativa, como se cada grupo se constituísse e dialogasse entre si, buscando influenciar de forma absoluta e pouco permeável na definição das agendas do Estado.

INB: Diante das atuais dificuldades que atravessam as tentativas de conceituação do interesse público, quais são seus impactos para a delimitação das funções da  Administração Pública? 

Floriano: O modelo tradicional do Direito define o conceito a partir da lei, que elege pautas presumidamente de interesse público e confere margens de capacidade, competência e autoridade. Assim, no momento de sua implementação, ele deverá ser qualificado, seja no detalhamento da política pública, seja na ação concreta. Quanto mais complexas se tornam as demandas e quanto maior a pluralidade de interesses, mais esse processo de definição legislativa e concreta se torna disputado.

Este é um fenômeno muito recente; começamos a ver o Judiciário sendo convocado a definir onde está o interesse público. Portanto, há uma avocação involuntária ou voluntária pelo Judiciário da capacidade, na sociedade democrática, de determinar o interesse público, o que traz problemas e desafios. O mundo ficou muito complexo para fórmulas óbvias.”

INB: Qual é a atualidade do princípio da soberania do interesse público sobre o privado ? 

Floriano: A supremacia do interesse público é uma armadilha que os administrativistas criaram para si próprios. Hoje em dia, essa ideia está sendo cada vez mais questionada. O problema da fórmula em questão é que ela confere um caráter absoluto, de supremacia e incontestabilidade a uma ideia que não traz nada de concreto. Assim, quando algo é considerado supremo, imediatamente torna-se incontestável, inquestionável e irrecorrível.

Quando o interesse público é obscurecido por uma fórmula retórica, aquele que detém o poder de implementá-lo, adquire uma ferramenta suprema para aplicar uma ideia abstrata. Isso cria uma contradição evidente e, como resultado, desenvolve-se um arcabouço teórico que nos legou um direito público altamente autoritário. Isso não significa que seja derrogatório ao Estado de Direito, mas sim que confere uma grande autoridade e poder à autoridade suprema, que determina o que é ou não interesse público.

Isso faz com que o sistema funcione como um campo onde essa noção se defende, sem que seja controlável por alguém, simplesmente porque é considerada de interesse público. E quando tenta-se controlar, surgem problemas, porque aquele que está no controle muitas vezes discorda do que é o interesse público, mas ainda assim se apropria da supremacia.

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