Bernardo Kucinski é um dos mais brilhantes escritores brasileiros da atualidade. Autor de importantes obras como K – relato de uma Busca (2011), Pretérito imperfeito (2017), A nova ordem (2019) e Julia: nos campos conflagrados do Senhor (2020), estreou na ficção inovando o cenário literário contemporâneo. Por isso, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou com o Bernardo no dia 2 de março de 2023 a respeito de sua produção literária.
INB: O jornalismo literário é uma forma de retratar os acontecimentos de um determinado tempo histórico, a partir da utilização das estruturas narrativas ficcionais. Como o senhor avalia a importância e o impacto do jornalismo literário na construção da memória social e das suas próprias obras?
Bernardo: Aqueles que estudaram minha ficção muitas vezes preferem usar a categoria literária “autoficção”. Embora eu não seja um especialista em literatura, alguns estudiosos tratam assim, principalmente quando tentam localizar no vasto campo literário, o meu livro principal, “K: relato de uma busca”. Isso também acontece com outros livros do mesmo gênero, escritos por pessoas que viveram os anos difíceis da ditadura civil-militar brasileira e sentiram a necessidade de fazer um relato pessoal, muitas vezes usando elementos imaginativos e preocupação literária.
Portanto, obras desse tipo foram incluídas na categoria de “autoficção”. Recentemente, fiquei sabendo que a Casa de Las Américas – uma das instituições literárias mais importantes da América Latina – criou um prêmio específico para livros com características autoficcionais. Eu diria que isso responde um pouco ao tipo de trabalho que eu faço.
Meu estilo literário é claro, conciso e econômico, talvez por isso os leitores o associam à narrativa jornalística. Mas para mim, esse estilo reflete minha forma de pensar, que sempre foi assim, mesmo quando trabalhava como jornalista. Acho que essa abordagem se refletiu em minha ficção. Depois que me tornei ficcionista, deixei o jornalismo para trás. Embora o acúmulo de conhecimento e experiência seja sempre importante, minha ficção tem pouco a ver com minha vida como jornalista. Eu me encantei tanto com a escrita literária que decidi esquecer o jornalismo.
Estante INB: literatura e ficção
INB: Em seu livro “K: relato de uma busca” o senhor alerta aos leitores que ” tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Na sua opinião, quais são os limites de restringir a literatura ao campo meramente ficcional?
Bernardo: Essa frase, que inicia o K: relato de uma busca, até se tornou famosa e outros escritores a utilizam como epígrafe em suas obras. Eu comecei a escrever esse livro a partir de contos. Houve uma circunstância em que eu estava sem ter o que fazer e um representante de uma revista semanal que publicava contos apareceu. Diante disso, comecei a escrever contos e tive sucesso; esse é o meu gênero literário mais forte. Escrevi quase duzentos contos em um período muito curto, e o K: relato de uma busca surgiu no meio desse processo.
Os leitores podem notar que cada um dos capítulos do livro é como um conto independente, embora eles formem um conjunto. Alguns desses capítulos são quase uma reprodução fiel do que realmente aconteceu, mesmo que utilize a linguagem literária para relatar as histórias. Por exemplo, no capítulo intitulado “Dia em que a Terra parou”, há um relato do episódio em que o ministro Armando Falcão anunciou, em uma rede de rádio e televisão, que iria revelar o destino dos desaparecidos. No entanto, contou um monte de mentiras. Esse episódio é uma reprodução fiel do que aconteceu. Em contrapartida, há capítulos mais inventivos, embora neles existam elementos de realidade. Como quando o senhor K. procura um rabino porque quer, de alguma maneira, colocar um túmulo no cemitério israelita mesmo sem um corpo. O senhor K e o rabino começam a discutir, quando ele responde: sem corpo, não há túmulo. Esse trecho não é totalmente inventado, mas nele existem dois extremos: um pouco de invenção e um pouco de realidade. Nesse sentido, justifica-se a epígrafe “tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”.
Pretérito Imperfeito
INB: O seu livro Pretérito Imperfeito começa de uma forma muito impactante, com um pai dizendo que vai romper efetivamente com seu filho. Como foi o processo de criação desse texto?
Bernardo: O K: O relato de uma busca foi um livro que nasceu quase espontaneamente de mim. Eu costumo dizer que foi um processo quase psicografado, como esses livros que muitos espíritas escrevem. Mas o Pretérito Imperfeito foi uma narrativa totalmente autoconsciente, na qual eu trabalhei a linguagem de uma forma bastante apurada. Foi algo de cabeça pensada, uma espécie de construção intelectual..
Feita essa distinção, eu entendo que o Pretérito Imperfeito também faz parte da categoria da “autoficção”. É uma história que realmente aconteceu comigo e com a minha família, embora seja tratada com um alto grau de liberdade e inventividade. Eu criei alguns personagens que não existiam, em razão da necessidade da narrativa. Mesmo assim, é uma história que foi realmente vivida, em sua essência. Foi um livro escrito já com deliberação, com propósito de concluir a escrita. E como diz a epígrafe deste livro, ao contrário do K: relato de uma busca, uma das formas de vencer um trauma é contar uma história sobre ele.
Por entre linhas
INB: A publicação de “K: relato de uma busca”, em 2013, teve grande repercussão na cena literária nacional. De que forma esse período o influenciou no processo de concepção e escrita de seu brilhante “Os visitantes”, publicado em 2016?
Bernardo: O livro Os visitantes é uma consequência das reações ao K: relato de uma busca, algo realmente extraordinário. Quase todos os episódios que relato no Os visitantes aconteceram e me surpreenderam muito. O primeiro caso é o único quase todo inventado, mas foi o que me motivou a escrever. Eu tenho um amigo já aposentado, que era pesquisador do Museu do Holocausto em Jerusalém e ele criticou uma pequena passagem do K: relato de uma busca, na qual eu digo que até os nazistas escreviam nos nomes de todos os desaparecidos. Ele disse que isso é falso, pois os nazistas só escreviam o nome daqueles que eram selecionados para trabalhos forçados. Isso porque precisavam fazer a contabilidade dos que iam para o matadouro.
Foi essa observação do meu amigo que despertou a ideia de escrever um capítulo no qual um sobrevivente do Holocausto, que teve um parente desaparecido, visita o escritor para reclamar. Essa é a primeira abertura de Os visitantes. Porém, os outros capítulos são registros de coisas que me surpreenderam, como por exemplo quando a Congregação do Instituto de Química da USP, ao invés de se juntar às demandas de esclarecimento sobre o desaparecimento da minha irmã, a demitiu por abandono de cargo. Na verdade, eles sabiam muito bem que ela havia sido sequestrada.
Somente após a publicação do K: relato de uma busca, essa mesma Congregação, embora formada por outras pessoas, aprovou um voto de repúdio ao ocorrido. Isso eu não inventei, foi um fato que realmente aconteceu. Outra coisa interessante é que, no último capítulo do K: relato de uma busca, há uma carta de um militante para outro sobre seu exílio em Paris. Na carta, ele reclama sobre o por que continuaram e não pararam; aquilo já não fazia mais sentido. E eu também fui procurado por pessoas daquela organização que sobreviveram e queriam que eu mostrasse a carta, porque diziam saber da sua existência. Mas eu inventei a carta completamente, do começo ao fim.
Então, os capítulos que compõem Os visitantes, são uma expressão das reações ao K: relato de uma busca que, de fato, aconteceram e me surpreenderam enormemente. Por isso eu achei que daria para escrever uma continuação. Embora muita gente goste de Os visitantes, por ser uma espécie de metanarrativa na qual o escritor fala dele mesmo, eu sinto que há um pequeno problema: o leitor acaba não sabendo bem o que é verdade ou invenção.
História, ditadura e literatura
INB: A ditadura civil militar é um tema explorado pelos mais variados ramos das ciências humanas. Como o senhor percebe a contribuição de sua obra na reelaboração do passado e no alargamento do horizonte de sentidos do que significou essa experiência na história brasileira?
Bernardo: Eu acredito que o ficcionista não se propõe a um resultado didático e pedagógico para contribuir historicamente. Sua obra é algo que ele cria e que vem de dentro dele. Eu me empenhei na temática da ditadura civil-militar brasileira porque ela impactou muito a minha vida. Esse é um tema que me persegue e trabalho com ele de diversas formas. Inclusive, o meu próximo livro continua a desenvolver esse campo.
No entanto, acho que meus livros contribuem para o entendimento daquela época, principalmente porque têm a vantagem de serem obras de ficção atraentes e que as pessoas gostam de ler. Assim, os leitores indicam uns para os outros e isso tem um papel de colaboração, esclarecimento e abertura de discussões que podem ser mais eficazes do que um livro de história. Um exemplo é Júlia: nos campos conflagrados do Senhor, uma novela que escrevi e que foi finalista do Prêmio da Biblioteca Nacional na categoria infanto-juvenil. Ela também demonstra o que foram aqueles anos de chumbo. Nela, busquei retratar as nuances, o clima e o ambiente da época.
Mas esse avançar sobre esse caráter pedagógico não é meu objetivo. Ele faz parte intrínseca da criação. A literatura, por ser mais cativante, possui um efeito político, sensorial e ideológico que, por vezes, escapa de um livro de história crua. Até porque é muito difícil para quem vive hoje e não viveu naquele momento sentir as nuances da ditadura brasileira. Ela foi composta por muitas fases, inclusive por aquelas em que os seus aspectos nefastos e cruéis foram ocultados por um suposto “milagre econômico”. A repressão daquela época desceu sobre um segmento relativamente pequeno da população brasileira e a nossa sociedade não foi capaz de exigir a punição dos culpados – nenhum deles foi condenado. A história ficou debaixo do tapete, mas a literatura continua para que essas coisas não sejam esquecidas.
As cartas ácidas da campanha de Lula de 1998
INB: A qualidade de sua produção jornalística pode ser observada é reconhecida em diversos de seus textos, como por exemplo As cartas ácidas da campanha de Lula de 1998, Jornalistas e Revolucionários: nos Tempos da Imprensa Alternativa e Jornalismo Econômico. Nesse cenário, como o senhor se descobriu enquanto escritor?
Bernardo: Foram um conjunto de circunstâncias que me levaram a esse lugar. Eu havia retornado de um período trabalhando com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sua primeira presidência. Trabalhei com o presidente por meio de um empréstimo da Universidade de São Paulo, onde eu era professor. Como é o procedimento padrão, depois desse período, voltei à universidade. Porém, pouco tempo depois, entrei na aposentadoria compulsória, que ocorre quando completamos setenta anos, independentemente do nosso desempenho.
Então, de repente, me vi fora do governo – uma experiência muito intensa para mim – e fora da universidade. Foi nessa fase, na qual eu não sabia bem o que fazer da vida, que o espírito literário se manifestou em mim. Eu comecei a escrever contos, algo que nunca havia feito antes. Escrever foi uma resposta a um conjunto de circunstâncias, mas especificamente sobre K: relato de uma busca, era algo que estava dentro de mim, esperando o momento de sair. Nessa mesma época, eu colaborava intensamente em um site de crítica à mídia hegemônica chamado Carta Maior e tive uma pequena desavença que me afastou dele. Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo e me reinventei como escritor e ficcionista.
Sempre fui muito aficionado por novelas policiais, principalmente contos desse gênero. Durante a ditadura, nos anos 1970, havia uma revista americana chamada Mystery Magazine, cuja edição em português era lida vorazmente por muitas pessoas, inclusive escritores importantes. As narrativas policiais publicadas eram muito bem escritas, irônicas e sedutoras. Inspirado por isso, minha primeira experiência de ficção foi uma novela policial chamada Alice: Não mais que de repente, embora ela tenha sido publicada anos depois. Essa novela conta muito da experiência que vivi na universidade, sobretudo as disputas de poder nos departamentos e os ciúmes acadêmicos. Mas é uma história de um crime: começa com a descoberta de um corpo morto, como toda boa novela policial. É possível notar que Júlia: nos campos conflagrados do Senhor é, no fundo, uma novela policial, mesmo que tenha um tom específico.
Estante INB: as produções atuais
INB: Em uma de suas entrevistas, o senhor diz que tem muito material novo para ser publicado. Atualmente, em que o senhor tem trabalhado?
Bernardo: Agora, tenho poucos textos inéditos para serem publicados. Meu editor da Alameda decidiu publicar uma coletânea de todos os meus contos, exceto meia dúzia que considerei mais fracos. Também comecei a escrever uma história este ano, mas desde o início da pandemia, fiquei paralisado e estou re-trabalhando um texto que será publicado em breve. No final do ano passado, precisei ser internado por causa de uma pneumonia e, durante a internação, fui inspirado a escrever novamente. Dessa vez, escrevi um conto infantil que já está pronto para publicação. Fiquei muito feliz por sentir que minha inspiração ainda está viva.
Além disso, escrevi uma história que meus amigos me recomendaram não publicar, porque ela é pesada. É um conto longo sobre um sujeito que fica revoltado com a quantidade de mulheres passeando com seus cachorrinhos em seu bairro e, por isso, ele decide matá-los. Meu amigo me disse que se eu publicar esse conto, posso ser cancelado. Eu mesmo não sei como terminá-lo.
Atualmente, estou me preparando para o lançamento de uma novela que também é sobre o tema dos desaparecimentos. É um texto que escrevi cerca de dez vezes. Isso é interessante porque K: o relato de uma busca saiu de uma vez, sem muitas alterações. Eu me concentrava um pouco e escrevia um capítulo inteiro. Esse livro, que será publicado em breve, foi algo que trabalhei inúmeras vezes até sentir que estava pronto para ser publicado. Espero que, talvez, seja um livro de alguma importância.
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