Direito, constituição e notícias falsas por Jéssica Guedes Santos

A advogada Jéssica Guedes, da Peck Advogados, falou com o INB sobre o campo do direito, questões sobre à constituição e notícias falsas na atualidade.
Jéssica Guedes Santos é mestranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/EDP) e graduada em Direito pela mesma Instituição. É advogada do escritório Peck Advogados e pesquisadora. O “Direito e o mundo” é um espaço dedicado a explorar as conexões existentes entre o campo jurídico e outras áreas do conhecimento.

A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou com a advogada Jéssica Guedes Santos no dia 14 de fevereiro de 2023, sobre a relação entre direito, constituição e fake news.

Tecnologia e fake news na atualidade

INB: A disseminação de notícias falsas não é algo novo em nossa sociedade. Porém, as novas tecnologias impulsionaram esse processo, na medida que possibilitaram o espalhamento de inverdades para milhões de pessoas em minutos. Qual é o papel do direito na regulamentação da comunicação pela via tecnológica?

Jéssica: As notícias falsas não são uma novidade para a sociedade. Elas definitivamente não surgiram nos últimos 20 anos. Recentemente, lembrei-me de um caso interessante que ocorreu no século XIX nos Estados Unidos. Um jornal, em meio  a uma grande grande concorrência, inovou ao publicar notícias pontuais. Diante da competição do mercado, outros jornais semelhantes surgiram, e como resultado, surgiu a necessidade de se destacar novamente. Por isso, esse jornal publicou uma série de notícias falsas sobre a Lua, o que lhe permitiu ganhar mais espaço no mercado do que seus concorrentes.

Eu dou esse exemplo para dizer que as notícias falsas circulam em meios que possuam maior amplitude na sociedade. Atualmente, seria muito estranho ver uma notícia falsa circulando por meio de carta, já que o alcance desse meio não  atinge a maioria da população de forma rápida e eficiente. 

Naquela época, foi feito um movimento ousado, apesar das críticas editoriais e dos princípios da imprensa.Os jornais eram meios bastante utilizados naquela época e, de certa maneira, as notícias falsas sobre a Lua acabaram “viralizando” de alguma forma. No entanto, hoje em dia as dinâmicas são diferentes porque grande parte da comunicação é digital. Com os instrumentos adequados, a internet é acessível em computadores e celulares em todo o Brasil e em outros lugares do mundo. Embora ainda exista um grande número de pessoas sem acesso à internet, como indicam as pesquisas formuladas pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br), há também muitas pessoas que têm acesso.

A notícia falsa como negócio

Atualmente, a disseminação de notícias falsas é mais fácil e rentável. Os meios digitais buscam  atingir um grande número de pessoas. Em primeiro lugar, devemos pensar nos objetivos dessa disseminação para tentar mitigá-los. Existe um estudo interessante realizado pela Comissão Europeia em 2017, realizado por Claire Wardle e Hossein Derakhshan, chamado Information Disorder: Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. Nesse estudo, os dois pesquisadores mapearam quatro objetivos gerais para a disseminação de notícias falsas, sendo o primeiro deles justamente o ganho financeiro. Esse aspecto se relaciona com a questão dos números de cliques na notícia, com as bolhas da internet e com a rentabilidade de certos canais.

O ganho financeiro pode não parecer ser um objetivo sensato, mas de fato, é possível lucrar com o que é conhecido como “desordem de informação”. Um segundo objetivo apontado pelo estudo é o político, ou seja, a possibilidade de influenciar ou prejudicar algum candidato. Parece-me que isso é algo bastante factível na atual conjuntura. É possível observar isso nos últimos anos, não apenas nas campanhas eleitorais brasileiras, mas também outros países.

O terceiro objetivo está relacionado à possibilidade de influenciar grupos específicos. A desinformação pode ser usada para prejudicar um grupo; afinal, é mais fácil prejudicar do que ajudar. A lógica da notícia falsa é essa: causar prejuízo por meio da repetição sucessiva de uma mensagem ou narrativa. É bastante comum que um grupo social sofra os impactos negativos desse processo. Por fim, um quarto objetivo é atingir o prestígio individual de alguém, prejudicando sua reputação ou imagem pública. Portanto, é importante que o Direito leve em consideração esses quatro motivos para combater a disseminação de notícias falsas e contribuir com a pacificação e organização social.

O start das redes sociais

Na verdade, as redes sociais sempre foram bastante presentes no Brasil. O Myspace, o MSN e o Orkut, bem como alguns mecanismos de mensageria que, na época, não eram regulados, foram exemplos disso. Esses mecanismos já apresentavam questões jurídicas importantes e, inclusive, o Tribunal Superior Eleitoral  julgou um caso de propaganda eleitoral no Orkut em 2009.

Portanto, esse não é um fenômeno recente. O Direito está atento ao tema  porque ele faz parte da vida social. Há um tripé entre direito, sociedade e novas tecnologias, no qual o direito desempenha o papel de observador e regulador. No início da internet havia uma corrente do ciber-libertarianismo que defendia a regulação mínima ou até mesmo a ausência total de regulação, mas isso se tornou inviável na prática. Vários países já possuem legislações sobre proteção de dados e sobre outras questões, como copyright. Nos Estados Unidos, por exemplo, existe o Digital Millennium Copyright Act(DMCA) mesmo que não haja uma lei geral de proteção de dados. Na União Europeia, há oGeneral Data Protection Regulation (GDPR), o  Digital Markets Act (DMA), assim como outras regulamentações que estão surgindo.

Também é importante destacar que existem países que tem regulações específica para tentar combater notícias falsas, como como a Malásia. Essa é uma tendência global e o Direito está atento a isso, regulando como pode para ajudar. Acredito que a regulação pode ser útil se for feita de forma razoável. O grande desafio é encontrar um equilíbrio: ao mesmo tempo em que as empresas não sejam desestimuladas tecnologicamente, as leis devem garantir a proteção e liberdade do usuário na interação com as tecnologias.

A discussão sobre a regulação de plataformas é muito sensível enão tem uma resposta simples. No entanto, a regulação surge como resposta aos problemas que já existem. No Brasil, um exemplo disso é o Marco Civil da Internet de 2014 que até hoje está vigente, mas passa por discussão  sobre a  responsabilidade das plataformas. O papel do Direito como regulador é justamente pacificar e encontrar soluções para esses problemas.

E a regulação na internet traz desafios transfronteiriços. Como regulá-la em um contexto internacional? Os países são autônomos e, às vezes, suas leis convergem e outras vezes não. Em alguns lugares, a proteção é muito maior do que nos demais. O desafio é integrar tudo isso. Talvez o caminho seja estruturar uma organização internacional, algo que já existe em outros casos, como tratamento sobre o direito autoral e propriedade intelectual. Parece que o próximo passo tem de ser mais transnacional, para garantir uma normatização geral.

Direito, constituição e fake news: regulamentação de notícias falsas pelo poder legislativo

NB: No âmbito do direito brasileiro, o Congresso Nacional tem se dedicado a regulamentar o debate em torno das fake news e do uso de ferramentas tecnológicas para a disseminação de notícias falsas. Na sua opinião, quais são as principais iniciativas legais que foram formuladas e o que ainda falta regulamentar?

Jéssica: Eu acho importante esclarecer que ainda estamos em um processo de discussão legislativa sobre esses temas. O principal Projeto de Lei (PL) que foi proposto sobre o assunto, na minha opinião, não se concentra apenas em notícias falsas, embora também tenha reflexos nisso. Me refiro ao PL 2630 de 2020 que começou no Senado Federal e passou para a Câmara dos Deputados.

Na Câmara dos Deputados, inúmeras discussões ocorreram e formou-se uma comissão específica de aperfeiçoamento para realizar pesquisas a partir da consulta de especialistas e de audiências públicas. A comissão funcionou por cerca de oito meses e realizou um trabalho interessante. Seu relator foi o deputado Orlando Silva, que também foi relator da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). O projeto substitutivo proposto pela comissão alterou diversos aspectos previstos  no projeto original. Ele foi apresentado em 2021, mas não entrou na pauta do Congresso daquele ano, em razão da dinâmica política de um cenário pré eleitoral. Para que o substitutivo  tenha validade nas eleições, o princípio da anualidade precisa ser respeitado. No final de 2021, era consenso geral que esse projeto de lei não seria aprovado naquelas circunstâncias.

Agora a expectativa é sobre a votação do substitutivo. Mas, existem novos fatores que foram apresentados recentemente nesse mês de abril. De forma extraoficial, o governo apresentou uma proposta nova, bastante diferente do substitutivo, e o relator apresentou uma outra proposta tentando convergir o substitutivo e o projeto do governo. Pode ser que a votação desse PL ocorra em breve e precisamos esperar qual será o texto protocolado para identificar qual será a versão final.

Seguindo todo o processo legislativo, a perspectiva é de que ele possa ser aplicado até as eleições do próximo ano, mesmo nas eleições municipais. Esse Projeto de Lei apresentará algumas obrigações para os provedores que podem ter reflexos no combate à desinformação. 

É interessante lembrar que cada país tem alguma ou algumas plataformas que tem mais usuários e, geralmente, são nesses serviços que as notícias falsas serão disseminadas.   Por exemplo, no Brasil, o uso dos aplicativos de mensagem é muito amplo e isso acabou se tornando um grande problema nas últimas eleições, especialmente em 2018. Nesse contexto, muitas notícias falsas foram amplamente veiculadas.

Medidas de combate à fake news

Algumas medidas previstas no substitutivo me parecem interessantes, como limitar o encaminhamento de mídias e incluir mecanismos de consentimento para adicionar membros em grupos de aplicativos de mensageria. Essas medidas ainda não estão previstas legalmente, mas podem vir a estar. Alguns dos aplicativos as implementaram automaticamente e, com isso, reduziram a disseminação de notícias falsas. Depois de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) iniciou um programa permanente de combate à desinformação e fez parcerias com várias empresas de tecnologia para tentar combater a disseminação de notícias falsas em suas plataformas. Atualmente, são mais de 50 empresas envolvidas nessa iniciativa. O tribunal deve lançar um relatório dos efeitos dessas ações nas eleições do ano passado em breve, talvez no primeiro ou segundo trimestre deste ano.

Em breve, deveremos ter acesso ao relatório, o que possibilitará a análise das soluções adotadas. Esse é o estado atual do tema no Brasil e no Congresso, mas eu queria destacar um ponto interessante: o próprio TSE incluiu um artigo na resolução de propaganda eleitoral do ano passado proibindo a desinformação no contexto eleitoral. Trata-se do artigo 9 da resolução 23610 e ele é mais um  parâmetro da regulação do combate à desinformação no Brasil. 

No entanto, ainda não sabemos quantos casos foram julgados utilizando esta disposição como base e, por isso, seria importante realizar uma pesquisa sobre o assunto. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) monitora as ações julgadas sobre notícias falsas  nos tribunais eleitorais, mas o relatório do ano passado ainda não foi divulgado de forma consolidada. Acredito que ele também incluirá informações sobre o artigo 9.  Para mim, será interessante ver como essa regulação do TSE foi aplicada.

Direito, constituição e fake news: a advocacia no combate à desinformação 

INB: Quais são os principais desafios que têm surgido para a advocacia brasileira em relação ao combate à disseminação de fake news?

Jéssica: Lidar com a desinformação na internet é bastante complicado. Em primeiro lugar, porque as coisas se espalham rapidamente. De acordo com estudo do MIT, uma informação falsa pode se propagar dez vezes mais rápido do que uma verdadeira. Isso significa que, quando uma desinformação é identificada e removida, ela já pode ter se espalhado para muitas pessoas. É uma dificuldade de tempo: até uma desinformação ser removida, ela provavelmente já circula na boca de muita gente.

A segunda dificuldade está relacionada à preservação da prova digital. Nem sempre é fácil comprovar a existência de uma desinformação, já que ela pode ser excluída rapidamente e, por vezes, é difícil acessá-la para comprovar sua existência. Por isso, várias campanhas montaram equipes próprias para acompanhar e preservar as informações. Dessa , a ação judicial é necessária para remover um conteúdo e para identificar o autor de uma desinformação. 

Em muitas ocasiões é preciso haver colaboração entre provedores de conexão e provedores de aplicação. Infelizmente, nem sempre essa colaboração acontece de forma adequada. Além disso, há dificuldades técnicas, como o uso do IPv4 e IPv6, que dificultam a identificação de algumas fontes de desinformação. 

O IPv4 e o IPv6 são  identificadores de rede. Se um indivíduo possui um IP próprio em seu computador e ele é em formato V6, é possível identificar o provedor de conexão. No final da conexão, existe um identificador, um número que o individualiza. No entanto, no caso do IPv4 é preciso um outro identificador, chamado de porta lógica, para identificar alguém. E muitas empresas não armazenam ou não divulgam isso. Então, quando alguém entra com uma ação para remover um conteúdo e  identificar o autor da desinformação, é necessário reconstruir toda a cadeia. Isso é difícil porque, se faltar qualquer dado necessário, é impossível chegar no infrator.

Há ainda outra dificuldade relacionada à regulação das plataformas. Compreender como regular o que pode ser colocado e o que deve ser removido é um grande desafio. Embora não haja dúvida sobre a necessidade de remover a desinformação, a discussão sobre definir esses conteúdos está relacionada à liberdade de expressão.

Existe um papel jurídico de regulamentação? 

INB: Há um debate sobre a possibilidade das novas tecnologias no que diz respeito ao seu papel regulamentário, como se elas pudessem superar a própria regulamentação jurídica. Como você avalia essa situação?

Jéssica: Essa é uma questão complicada e por isso vou voltar a algo que mencionei na primeira pergunta. Na minha visão, o direito deve ser compreendido por meio de um tripé fundamental: direito, sociedade e tecnologia. Se pensarmos apenas no direito posto, então falamos de legislação. O processo legislativo é longo e compreende inúmeras discussões em diferentes casas, vetos presidenciais, prazos de vigência e assim por diante. Na minha opinião, esse é o procedimento regular e não creio que o problema seja o tempo necessário para a aprovação da lei. No entanto, a dinamicidade da tecnologia é um fator importante. As novas tecnologias surgem rapidamente, como por exemplo o Chat GPT que, até dezembro do ano passado, era desconhecido para muitos. 

O “advento” do Chat GPT

Como isso acontece  tão rapidamente? É surpreendente o fato de tantas pessoas de áreas diferentes usarem o Chat GPT. Eu tenho um amigo que é professor de história e ele está testando a plataforma para ajudá-lo a dar aulas mais interativas. Então, as potencialidades de uso das tecnologias são diversas. Quando uma nova tecnologia é disponibilizada, ela já produz um efeito na sociedade. 

Para mim, o direito sempre estará um passo atrás. É difícil alcançar esse movimento, porque muitas pessoas não têm acesso fácil às inovações. No caso do Chat GPT, os efeitos são imediatos e por isso surgem discussões, como sobre seu uso nas escolas. Talvez, os pontos mais complexos sejam aqueles sobre a falta de fontes e plágio. E o papel da regulação não deve se restringir aos casos concretos. Por isso ela deve ser ampla e abstrata, para absorver todas as nuances. 

Mas o fato é que as tecnologias entram na nossa sociedade, as pessoas fazem uso delas e a legislação parece estar atrasada. Um exemplo disso é o caso da Inteligência Artificial aqui no Brasil, pois o legislativo ainda discute o substitutivo do Projeto de Lei sobre o assunto. O mais importante nesta regulação é manter a perspectiva de proteção do usuário, bem como não frear o desenvolvimento tecnológico.

 Existem caminhos que estão sendo estudados, como a autorregulação mencionada no Projeto de Lei das notícias falsas. No entanto, ainda não acredito que a internet seja um espaço mais democrático do que a própria sociedade. Existem  problemas em ambos os campos e precisamos enfrentá-los. Quando a onda de desinformação surgiu em 2016, principalmente sobre a política brasileira, alguns pesquisadores de direito constitucional e ciência política falaram sobre a desconsolidação democrática, enquanto outros afirmaram que a democracia estava se fortalecendo. Isso porque as pessoas começaram a questionar aspectos estruturais da política nacional. Esse é um movimento simbiótico e sempre haverá oscilações entre os momentos mais difíceis e os de maior estabilidade. Leonardo Avritzer, cientista político da UFMG, usa o termo “pêndulo democrático” para explicar esse balanço.

Como eu disse, eu ainda não concordo que as redes sociais permitem um movimento mais democrático do que na sociedade em si. Acredito que elas são um reflexo de certos aspectos da nossa sociedade e, por isso, é necessário melhorar algumas questões. Mas isso não é uma tarefa fácil e é preciso que haja uma colaboração entre provedores, plataformas, Estado e usuários. .

Nesse sentido, um mecanismo de autorregulação pode ser interessante e é importante observar as experiências em outros países para tentar aprender com elas. Em relação ao Projeto de Lei das notícias falsas,  acredito que o Congresso Nacional abordará todos os pontos que mencionei. Isso pode ajudar no combate à desinformação e no fortalecimento da esfera democrática virtual. Acredito que teremos um posicionamento do Congresso sobre o PL 2630 esse ano e poderemos avaliar se o texto aprovado corresponde as expectativas.  

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