INB na Cabeceira por Rafael T. Magdaleno

O professor e advogado, Rafael Magdaleno, falou ao INB sobre os livros de sua cabeceira e trajetória para o quadro INB na Cabeceira.
Rafael Tubone Magdaleno é bacharel e mestre em Direito pela PUC-SP, com período de intercâmbio na Université Paris-Ouest Nanterre/La Defense, e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) . Possui especialização em Direito Público e Direito Tributário. Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo. É professor universitário e coordenador do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Nove de Julho de Osasco (NOVE-Osasco)

No dia 15 de março de 2023, o professor Rafael Tubone Magdaleno se reuniu com a pesquisadora Júlia Albergaria, do INB, para contar os livros essenciais na sua história de formação. Para contar essa história ela apresentou, como marcos referenciais, os livros mais fundamentais de sua vida. Rafael foi professor no curso “O que é democracia? ” produzido pelo Instituto Norberto Bobbio em parceria com CIEE.

Minha trajetória, hoje

Sou bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e durante a faculdade, fiz intercâmbio na Université Paris Nanterre, na França. Além disso, também sou bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. A minha dissertação tratou do Direito em Atenas no século V a.C., período conhecido como Atenas democrática ou como “século de Péricles”.

Atualmente, estou em processo de concluir meu doutorado no departamento de Teoria Geral da Filosofia do Direito na USP, orientado pela Profa. Dra. Mara Regina de Oliveira. Deposito a tese em um mês. Minha pesquisa atual analisa como o livro Os miseráveis de Victor Hugo trabalha com conceitos políticos e jurídicos de sua época e como sua obra é recebida pelos juristas do século XIX. 

Além de pesquisador, também atuo como coordenador do curso de Direito da Faculdade Nove de Julho de Osasco (UNINOVE) e sou professor na Associação Educacional Nove de Julho. Há bastante tempo, tenho percorrido esse caminho duplo de ser professor e advogado.

INB na cabeceira: a infância

Ao narrar nossa trajetória, muitas vezes é preciso recorrer às palavras que têm um lugar de destaque na literatura.  Ao falar sobre meus anos de formação como leitor, percebo que eles começaram cedo. Desde criança, sempre gostei de fazer atividades por conta própria, embora não me considerasse solitário. Lembro-me claramente do dia em que ganhei de presente o livro Harry Potter.  Muitas pessoas da minha geração iniciaram suas vidas literárias com as histórias de Hogwarts e comigo não foi diferente. Porém, aconteceu algo peculiar: eu comecei a leitura pelo terceiro livro e não pelo primeiro. Isso pode parecer uma entrada um tanto absurda, mas foi ao acaso.

A partir desse momento, me apaixonei pela literatura infantojuvenil e comecei a buscar mais livros relacionados ao tema. Isso aconteceu quando tinha cerca de 11 anos e ainda sonhava em me tornar um bruxo estudante em Hogwarts, como muitas outras crianças dessa faixa etária.  Para minha infelicidade, o meu sonho nunca se realizou.

Eu considero  que tive a sorte  de ser influenciado na escola, desde muito cedo, a ler bons livros. Evidentemente, eles podem ser impróprios para uma pessoa tão jovem, mas pelo menos  não eram maçantes e não me sentia obrigado a persistir na leitura.

Eu me lembro de ter lido um livro do Jostein Gaarder, chamado O dia do Curinga. Eu o achei muito bom, especialmente para uma criança da minha idade. Ele me aproximou de algumas temáticas mais reflexivas. Cursei o ensino médio em uma escola chamada Colégio Jardim São Paulo e, naquela época,  já gostava muito de ler. Na verdade, um dos motivos que me levaram a estudar lá foi o fato de ser apaixonado pelo teatro. Inclusive, eu e meus colegas, realizamos uma montagem de uma peça do Cyrano de Bergerac ainda no ensino fundamental e a perspectiva de continuar a atuar me motivaram a seguir para o Colégio Jardim São Paulo, onde poderia perseguir a minha (breve) carreira de ator mirim. Naturalmente, essa paixão pelo teatro apenas aumentou minha devoção pela leitura.  

No ensino médio, alguns outros livros me marcaram. Me refiro ao  O mundo de Sofia do próprio Jostein Gaarder e O Poderoso Chefão de Mario Puzo. Mas, o autor que mais me impactou nesse momento foi Gabriel García Márquez. Eu me lembro de ler O amor nos tempos do Cólera e incentivar minha namorada da época a ler também, pois tornaria nosso amor mais puro, assim como o amor de Florentino Ariza. O amor nos tempos do Cólera tem um dos finais mais surpreendentes que já vi. Em uma das passagem do livro, ele descreve uma cena de sexo, das mais cruas que existem, mas ao mesmo tempo das mais poéticas. E isso é algo muito difícil: narrar uma cena sensual entre idosos. E Gabriel  García Márquez consegue transmitir isso.

Ainda no meu ensino médio, li Cem anos de solidão. Essa história despertou em mim uma paixão, que nutri durante um longo tempo. A narrativa sobre os cem anos de uma família pode ser desafiadora. Alguns diziam que eu nunca conseguiria ler, porque as relações entre os personagens eram muito difíceis, a cadeia genealógica extensa, mas eu não me importei com isso, apenas queria ter o prazer da leitura.

Decisões

Esse foi o trajeto literário que percorri durante o ensino médio. Com muito mais livros lidos, aliás, mas aqueles citados bastam como exemplo para a narrativa. Foi um percurso que, definitivamente, contribuiu para a minha escolha de ingressar em uma faculdade de humanas. No entanto, decidir qual curso era para mim foi a tarefa mais difícil. Certa vez, contei para uma professora de língua portuguesa sobre minha indecisão entre cursar Letras, Filosofia ou Ciências Sociais e ela me olhou com expressão de quem diz “não faça isso, meu rapaz”. Porém, mesmo diante do desestimulo – talvez motivado pelas dificuldades da carreira que tais cursos proporcionam aos seus adeptos e pelo menosprezo das humanidades em nossos tempos vulgares – mais tarde decidiria mergulhar na filosofia. 

Ao mesmo tempo, também houve a sugestão de escolher uma formação profunda o suficiente para permitir uma ampliação dos horizontes de atuação. Na época, eu gostava de poesia e, até 2019, fiz algumas tentativas de ser escritor e publicar alguns textos. No entanto, espero que ninguém procure essas coisas porque sinto uma certa vergonha em relação a elas.

Desse modo, ingressei na faculdade de Direito. Sabe quando você gosta de Humanas e fica bem reticente sobre o que fazer? Então você opta pelo Direito. Assim que iniciei o curso na PUC-SP, percebi uma predileção por aquelas disciplinas associadas ao Direito, mas que algumas pessoas com interesses mais imediatos, práticos, comerciais, não identificam como tal. É o caso de disciplinas como Teoria Geral do Estado, Introdução ao Estudo de Direito, Fundamentos do Direito Público, entre outras matérias-base do primeiro ano.

Nesse período, ficava me perguntando, inquirindo, de modo peculiar, o que era o Direito e o Estado. A título de exemplo, lembro-me de uma vez em que estava na estação Parada Inglesa do trem e olhei o concreto armado noturno da cidade de São Paulo. Muitas perguntas pairavam sobre minha cabeça: como era possível organizar tudo aquilo? O que era o Estado? O que é isto?

As insatisfações

A materialidade do Estado era algo que me perturbava e eu estava insatisfeito com as soluções que a disciplina de Teoria Geral do Estado oferecia. Isso porque elas eram vinculadas apenas ao que ela havia definido como Estado, a partir de certos elementos e características. É importante o esforço de definir o Estado com base nesses critérios, mas o essencial era negado: a história da formação do Estado. Eu estudava o Estado segundo esses elementos e características, o que significava a fixação de um determinado modelo, uma definição normativa do que é o Estado, em vez de uma definição histórica. Era isso que me interessava, me interessou e me interessa até os dias de hoje.

Nesses primeiros anos de faculdade, também assistia aulas de “Introdução ao Estudo do Direito” com os meus colegas de primeiro semestre de graduação. A professora responsável pelo curso era Sílvia Pimentel e uma das atividades propostas consistia na realização de um júri simulado ao final do semestre. Embora não me recorde do caso que discutimos, lembro claramente que meus colegas tentaram solucionar o problema utilizando um argumento baseado na excludente de ilicitude do Código Penal, mesmo sem termos estudado essa matéria ainda. Enquanto isso, eu resolvi o problema usando um livro que eu li na época: “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski. Eu me vali justamente do tormento de Raskolnikov por ter matado sua vítima.

A influência  de György Lukács

minhas variadas inquietações. Por isso, decidi prestar vestibular para o curso de Filosofia na Universidade de São Paulo. Nessa mesma época, conheci um autor que me acompanhou por um bom tempo, inclusive de um modo excessivamente ortodoxo: o filósofo marxista György Lukács.

Eu me tornei um grande fã de Lukács, no bom e no mau sentido. No meu primeiro ano de graduação, andava em todos os cantos da faculdade com seus livros debaixo do braço, como uma bíblia. Os seus livros como τὰ βιβλία. Aliás, li sua obra de maneira invertida: comecei pela leitura de Para uma Ontologia do Ser Social, em uma edição anterior à da Boitempo. Essas traduções anteriores eram um pouco artesanais. Parecia que alguém tinha estudado a obra por muito tempo, e a tradução era apenas uma parte do estudo. Creio que a tradução era de Carlos Nelson Coutinho e Ivo Tonet, não me lembro bem. O que me lembro era que na internet era possível encontrar versões em espanhol da Ontologia do Ser Social. A obra era dividida em dois volumes: o primeiro era histórico e o segundo era conceitual. 

Essa motivação lukacsiana contribuiu para o meu ingresso na faculdade de Filosofia. Durante um tempo, mantive-me próximo à obra do autor e, consequentemente, lia os textos de outros filósofos a partir do referencial teórico de livros como O assalto à razão ou a Destruição da razão. Contudo, chegou um momento em que deixei de ser lukacsiano. No meu segundo ano de graduação em Direito (que foi o meu primeiro ano de graduação em Filosofia), cheguei aos textos de Karl Marx. Nas minhas férias de julho, li o primeiro volume d’O Capital porque precisava entender essa obra.

Era evidente para mim a necessidade de acertar as contas com Marx, pois ele era um autor que me incomodava e servia de referência para Lukács em diversos momentos. Busquei explicações d’O Capital sob um ponto de vista econômico e, para tanto, lia e relia os livros de Reinaldo Carcanholo que tratavam do assunto. Porém, em determinada ocasião, um amigo percebeu que eu estava abandonando o marxismo para me tornar cada vez mais escolástico. Acredito que a faculdade de Filosofia tem o papel de tornar os estudantes mais historiadores da filosofia e menos vinculados a um autor específico. Ninguém merece sair de uma igreja e entrar em outra.

Outros estudos

Com isso, deixei de lado os estudos lukacsianos e passei a estudar os autores em seus próprios termos. Na verdade, não sei se isso é bom ou ruim. Além disso, nunca abandonei a literatura. No entanto, naquele contexto, eu consumia os textos literários em momentos de relaxamento, sem colocar muito peso nessa atividade. Hoje, porém, acredito que a literatura precisa ter um certo peso e gravidade. Nesse momento, comecei a entrar em contato com as obras de dois autores pelos quais sou fascinado: Michel Houellebecq e Amós Oz.

Houve um momento na minha graduação em direito em que decidi realizar um projeto de iniciação científica. Escolhi a teoria crítica como objeto de estudo e, por isso, li um livro chamado Punição e Estrutura Social, de Georg Rusche e Otto Kirchheimer. Minha intenção era debater metodologia, mas ainda estava preso em uma “igreja acadêmica”. Nesse mesmo contexto, li O Poder da Ideologia, de István Mészáros, um autor lukacsiano.

O término da minha iniciação científica coincidiu com o término de um namoro. Nesse momento em que me sentia sem rumo, decidi realizar um intercâmbio com a intenção de estudar Lukács e estética, porque não havia abandonado a literatura e a poesia. Por isso, fui participar de um curso sobre estética na Universidade Paris Nanterre.

Em um belo dia, enquanto estava na estação de metrô La Defense, entrei em uma Fnac e, ao acaso, peguei um livro chamado “Qu’est-ce que la philosophie antique”, de Pierre Hadot. Folheei suas páginas de forma despretensiosa, pois não tinha muito dinheiro para gastar com livros. Porém, logo percebi que eu teria que comprá-lo.

Digo isso porque ele representava algo para mim que a filosofia havia perdido: a necessidade de entender um autor a partir dos seus próprios argumentos. Ainda assim, Pierre Hadot demonstra brilhantemente que a filosofia pode conter diversos elementos. É certo que a filosofia pode ser tanto um discurso sobre algo quanto um modo de vida. Ou seja, são aspectos que podem ser debatidos e discutidos. E essa é exatamente a abordagem de Hadot – sua pretensão era mostrar como isso ocorria na filosofia antiga.

Particularmente, eu me apaixonei pelo livro. Além da primeira parte, que fala especificamente dos autores, há uma segunda parte relacionada aos exercícios espirituais recomendados pelos filósofos para um modo de vida vinculado à sua filosofia.

Ao meu ver, essa é uma estratégia genial, poética, bonita e literária de Hadot. Percebi que estava encantado pelos filósofos gregos e, por isso, comecei a estudar esses sujeitos enigmáticos assim que voltei ao Brasil. No entanto, eu precisava descobrir de que maneira faria isso, uma vez que era estudante de Direito e Filosofia.

De volta ao Brasil

Com o fim do intercâmbio, a questão do Estado voltou a ocupar a minha cabeça. Assim, passei a estudar a filosofia  dos gregos com esse problema de fundo. Há um consenso na literatura contemporânea de que vivemos uma democracia, embora as pessoas tratem o tema a partir de diversos nomes importados, tais como: democracia deliberativa, democracia representativa, democracia constitucional, etc. 

Acontece que o termo “democracia” é  bastante antigo e foi relembrado somente no século XIX com as revoluções burguesas. Porém, sua recuperação ocorreu  em um sentido completamente diferente se comparado com a antiguidade. Hadot poderia falar por um longo período sobre esse assunto. 

Se analisarmos as obras de Alexis de Tocqueville, a democracia aparece mais como uma forma societal do que como um regime político propriamente dito. Já na Grécia Antiga, a democracia pode ser as duas coisas, segundo um termo que chamamos de politeia. Nos dias atuais, as pessoas costumam traduzir a politeia como “constituição”. Inclusive, esse é o próprio nome do livro de Platão,  que depois foi traduzido para A República. 

Páginas

Os debates sobre tradução me fizeram perceber que precisava estudar grego antigo. Ao mesmo tempo, passei a explorar como o direito existia no auge da democracia ateniense, que nada tem a ver com a democracia contemporânea. Eu percebi que havia muita incompreensão sobre isso. Os manuais de história do Direito, principalmente os brasileiros, tratam superficialmente dessa questão e de uma forma semelhante aos livros de Teoria Geral do Estado. Ou seja, discutem características e elementos, mas esquecem-se que há uma história por trás. Essa ligação entre história filosófica, política e constitucional sempre me interessou.

Tive essa impressão mesmo antes de conhecer as contribuições de Quentin Skinner e Pierre Rosanvallon. Sempre achei que a história filosófica, política e constitucional tinham que andar juntas. Em razão disso, li alguns autores helenistas que tratavam dessa intersecção,  como Jacqueline de Romilly. Trata-se de uma autora

que tem livros maravilhosos sobre a Grécia, especialmente sobre Atenas. Dentre eles, há um chamado La loi dans la pensée grecque, que aborda as temáticas jurídicas discutidas pelos filósofos de uma forma pouco profunda. 

Notei como as temáticas jurídicas são percebidas pelos filósofos gregos  e como as tragédias também são importantes para entender a democracia ateniense. Os grandes representantes da democracia ateniense eram os tragediógrafos, sofistas ou professores de democracia. Li um pouco sobre essa tradição deixada de lado para tentar construir o que era essa democracia no século V A.C e, assim, mostrar como funcionavam as instituições da época. Este foi o tema do meu mestrado.

Folheando o mestrado

Paralelamente aos meus estudos sobre a Grécia Antiga, mantive  a minha paixão pela literatura.  Durante o mestrado, li dois livros muito importantes para mim: A Montanha Mágica de Thomas Mann e a Teoria da Justiça de John Rawls. A leitura da A Montanha Mágica foi uma experiência surreal e maluca, tanto que escrevi um poema para Madame Chauchat. Algo como:

Podendo dizer numa linha 

Tua única e linda homenagem, 

Mocinha, vendo a tua imagem 

A face de Deus me avizinha. 

Olhando teu dorso delgado, 

Teus olhos cinzentos, quirguizes, 

Teus braços, tuas cores, matizes, 

O tempo adormece pausado…

Visando lançar meu tormento 

Empenho o meu hábil pensar, 

“É digno o duro lamento 

Humano, progresso onde está?”

Volteio… e estou logo em ti!

Oriento-me ao oriental, 

À tua doçura indolente, 

Madame, minha dona vestal,

Malina, não mais me adoente 

Pois quero te amar no Ural.

O conflito entre Settembrini e  Naphta também me chamou muito a atenção. Alguns interpretam Naphta como uma representação de Lukács, enquanto Settembrini é um herdeiro das luzes e do humanismo italiano com pendores positivistas. O que me causava um pouco de angústia era o fato de eu me reconhecer mais em Settembrini do que em Naphta. Isso representava uma ruptura muito grande com o meu  passado.

Um outro livro que eu li na época e que foi maravilhoso chama-se Herzog, de Saul Bellow. Trata-se de uma história sobre um professor e literato que passa por uma grande desilusão. Assim, ele começa a escrever cartas para desconhecidos famosos do passado. Eu me lembro de ter ficado extasiado por isso. Além de Herzog, Saul Bellow escreveu outro livro muito importante para mim, chamado Ravelstein, que é uma homenagem ao seu antigo mestre. Para quem gosta de filosofia e se sente angustiado por ser professor, é um livro incrível.

Enquanto escrevia minha dissertação, entrei em contato com O Mapa e o Território de Michel Houellebecq, que achei extremamente bom. No entanto, no final da dissertação, eu estava exausto de ler sobre filosofia grega. Mergulhei tanto no assunto que já não aguentava mais olhar para aquele objeto. Diante desse cenário, percebi que precisava estudar outros temas mais vinculados à minha paixão pela literatura.

Direito, literatura e objeto

Então, decidi estudar a relação entre direito e literatura, mas dentro de um campo que eu pudesse lidar com o objeto. Por isso, me propus a estudar a literatura francesa do século XIX. Na época, eu já gostava muito da literatura francesa, desde seus contemporâneos, como Leila Slimani, Michel Houellebecq e Emmanuel Carrère, até os autores do século XIX, como, por exemplo, Benjamin Constant e seu maravilhoso Adolphe. Contudo, após o mestrado, dediquei-me a estudar aquele que foi considerado o grande autor do século XIX e, inclusive, foi chamado de autor do século: Victor Hugo. Mas eu me perguntava por onde começar.

De acordo com Mario Vargas Llosa (e ele retira essa informação de Jean Marc Hovasse), se você entrar na Biblioteca Nacional da França e ficar dez horas por dia sentado lá, sem parar para comer e beber, só lendo os livros sobre Victor Hugo, levaria 20 anos para terminar. No entanto, eu decidi começar pela principal obra do autor, que é Os Miseráveis. Trata-se de um livro que condensa o debate político-jurídico de um século. E um ponto interessante é como os próprios juristas à época liam esta obra, como se ela fosse um tratado filosófico, humanitário e social, não apenas um romance.

Os Miseráveis possui uma linguagem que pode influenciar a realidade, mas também é influenciado por ela, tanto estética quanto politicamente. Nesse contexto, conheci as obras de Quentin Skinner, da Escola de Cambridge, e Pierre Rosanvallon e mergulhei completamente no universo de Victor Hugo. Para mim, ele é um autor extraordinário. As leituras contemporâneas dos textos de autores franceses do século XIX podem causar um estranhamento, pois pode parecer que estamos lidando com livros de literatura infanto-juvenil. 

Em livros como O Conde de Monte Cristo, que contam histórias de aventuras, o narrador pode ser julgado como ingênuo demais. Para nós, que estamos acostumados com um narrador astuto que se esconde no texto, isso pode parecer estranho ou até infantil. No entanto, quando deixamos de lado esse narrador linguarudo que quer nos mostrar como interpretar a obra a todo momento, o livro se torna muito interessante. Isso também é válido para Os Miseráveis, que possui cerca de duas mil páginas. 

Raposas e ouriços

Sempre gostei de ter uma visão ampla sobre os assuntos e, por isso, prefiro as raposas aos ouriços. Acredito que quando nos prendemos demais em uma única temática, corremos o risco de nos tornarmos apenas mais um membro de um grupo fechado, o que é muito prejudicial. Quando não há um contraponto, há sempre um problema.

Nos últimos anos, comecei a estudar autores de direita, enquanto a maioria dos meus amigos se concentra apenas no pensamento de esquerda. Isso despertou em mim a vontade de entender outros pontos de vista, sem, é claro, adotar um tom apologético. Por isso, considerei importante levar a sério os textos de Russell Kirk, Michael Oakeshott e Roger Scruton. Nunca fui adepto de combate direto, pois acredito que é mais eficiente entender os termos e raciocínios dos autores.

Esse exercício ampliou muito minha visão de mundo. Esses livros foram essenciais para estudar o século XIX, especialmente do ponto de vista dos contra-revolucionários, como Joseph de Maistre e Louis de Bonald. Se nos tornarmos muito fechados em nossas opiniões, podemos perder muito intelectualmente. Na verdade, a principal tarefa de alguém ligado às humanidades é compreender e não necessariamente julgar. É necessário compreender para poder julgar com precisão.

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