No dia 14 de março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com o professor José Dias sobre o pacifismo.
INB: Na sua opinião, como podemos definir o pacifismo?
José: O conceito de pacifismo é realmente amplo e ganhou destaque no debate público a partir do século XX. É importante notar que o contexto originário do pacifismo é marcado por um evento que promove exatamente o seu oposto: o belicismo. Isso fica evidente ao observarmos o elevado número de vítimas das duas grandes guerras mundiais decorrentes desse período. Portanto, é compreensível que a busca pela paz tenha se intensificado diante de tamanha violência.
O jusfilósofo Norberto Bobbio, logo após o término da guerra, passou a considerar os temas da paz e da democracia como prioridades absolutas de nossa sociedade. Somente mais tarde é que direcionou sua atenção para os direitos humanos, outra preocupação urgente. Isso ocorreu devido ao ambiente beligerante formado após o fim da Segunda Guerra Mundial, que afetou especialmente o povo judeu, intelectuais, entre outros.
Surgimento do movimento pacifista
O movimento pacifista nasceu com força e se consolidou na década de 1950, por meio de diversas iniciativas da sociedade civil europeia. Dentre elas, destaca-se o Mouvement mondial des partisans de la paix, em Paris, que envolveu intelectuais europeus e artistas. É interessante perceber a magnitude desse movimento. O símbolo da pomba criado por Pablo Picasso tornou-se um ícone visual associado à busca pela paz. Assim, os movimentos que contribuíram para disseminar a mensagem do pacifismo promoviam a conscientização sobre esse ideal em tempos tumultuados.
Apesar dos membros do movimento pacifista defenderem a paz, havia inúmeras divergências entre eles. Bobbio, por exemplo, não poupou críticas aos colegas que, no fim, perseguiam os mesmos objetivos. Por outro lado, ele também era criticado por comunistas que consideravam sua interpretação demasiadamente imprecisa, pois identificava a culpa da violência, manifestada como guerra, em diversos fatores e não apenas o capitalismo.
Immanuel Kant e o pacifismo
Existem várias manifestações pacifistas ao longo da história. Um episódio emblemático ocorreu em 1795, com a publicação da obra A Paz Perpétua, escrita por Immanuel Kant. Esse livro não é apenas um tratado sobre a paz europeia, mas também um acordo que delineia como estabelecer a paz internacional. O princípio fundamental subjacente é, na verdade, aquele que emerge posteriormente e que Bobbio abraça em seu pensamento pacifista. É notável que não apenas os intelectuais alinhados com o autor – que defendiam os direitos humanos, a democracia e a paz – mas também as entidades religiosas, adotaram uma abordagem que vincula a paz, os direitos humanos e a democracia. Quando se discute o florescimento do pacifismo no século XX, essa tríade precisa ser considerada. Notavelmente, ela mesma forma os pilares centrais do pensamento bobbiano.
A proposta de Kant sobre um tratado internacional pacifista permanece atual e oferece uma solução para o problema da guerra. A paz e a guerra são duas realidades interligadas. O belicismo é válido não somente entre grupos e estados, mas também entre indivíduos. Sempre que uma sociedade arma seus cidadãos, o belicismo individual parece emergir.
A beligerância na sociedade civil é amplificada a ponto de promover comandantes que disseminam a cultura da violência. Tal líder enxerga a guerra como um meio para atingir objetivos próprios, como podemos observar nos conflitos atuais. Aqueles que possuem um mínimo de discernimento devem estar muito preocupados com o conflito entre Rússia e Ucrânia, pois ele repercute em todo o Ocidente. A cada mês que passa, em vez de melhorar, parece que a situação se deteriora ainda mais.
A guerra em oposição com a paz
Os pacifistas consideram a paz como o valor máximo e absoluto. Essa perspectiva está presente nos escritos de Bobbio, que parte do conceito para discutir os impactos da guerra termonuclear. Ela envolve a destruição em massa, sem limites, incontrolável, que viola todos os princípios do direito e da ética.
Portanto, o direito de guerra viola tudo o que é verdadeiramente humano. É absoluto porque está isento de qualquer princípio jurídico ou controle. Considerar a paz um valor absoluto significa aceitar sua supremacia. A força etimológica do termo absoluto reside no fato de que ele é livre e completamente incondicionado.
É importante salientar que não apenas a segunda metade do século XX foi pacífica. A Guerra Fria, por exemplo, mostra como o interesse por armas poderosas continuava vivo apesar de tudo. Basta uma rápida pesquisa na internet para perceber o potencial destrutivo e assustador desse processo. É por essa razão que os esforços pacifistas se estendem para diversas áreas de atuação. Se todos estiverem unidos, a tentativa de alcançar o desarmamento pode ser efetiva.
No século XXI, acreditávamos que o risco nuclear é coisa do passado. No entanto, a Rússia parece disposta a invadir, a guerrear e a ameaçar a Ucrânia com o uso de armas nucleares. É interessante observar que os eventos do início do século XXI, especialmente a partir do ano passado, fizeram ressurgir todos os motivos pacifistas. O extremo belicismo nos alerta para algo simples, mas muito profundo: a possibilidade de extermínio da vida na Terra. Diante dessa ameaça, surge o claro imperativo de proteger a vida. E a paz é o primeiro passo para isso.
É necessário salientar que a busca pela paz não implica eliminar a força. Bobbio considera que ela é parte necessária e seu uso legítimo é fundamental tanto para a aplicação do Direito quanto para assegurar o cumprimento das suas determinações. Quando você não segue as regras do jogo, o Direito pode usar a força para obrigar a conduta pretendida. Esse aspecto é essencial, mas o verdadeiro desafio é a violência.
INB: O século XX é considerado por muitos um dos momentos mais interessantes da história moderna. Marcado por inúmeras inovações e revoluções, também foi palco de inúmeras guerras. Diante desse cenário, como o avanço das novas tecnologias impactou o pensamento pacifista?
O avanço das novas tecnologias permite eliminar um inimigo que se encontra a milhares de quilômetros de distância, sem sair do lugar. Apenas com um celular na mão, é possível determinar com precisão a proximidade necessária para explodir um artefato e matar o oponente. A situação é extremamente problemática, não apenas devido à identificação precisa da localização, mas também porque as armas cada vez mais se assemelham às mostradas em filmes. Drones e pequenos dispositivos podem parecer insignificantes, mas são capazes de causar danos irreparáveis.
Além disso, a tecnologia de comunicação também desempenha um papel importante. Vivemos imersos em redes sociais, o que muitas vezes dificulta nossa percepção sobre o que é verdade e o que é mentira. E há uma frase interessante, atribuída a Júlio César, que diz: “A primeira vítima da guerra é a verdade.” Ambos os lados mentem porque, ao dizerem a verdade, forneceriam munição à parte contrária. Portanto, ela morre quando há um conflito violento.
Notícias falsas e imagens manipuladas são comuns nesse cenário. Não é possível confiar apenas na moral, porque ela não possui força suficiente. A moral precisa se alinhar ao Direito para garantir uma base sólida, como ensina Norberto Bobbio. Assim, percebo que existe a possibilidade de um pacifismo sério, que busca não apenas eficácia, mas também atualidade e viabilidade.
Não basta garantir a eficácia se não houver meios para a realização. Sobre esse assunto, Bobbio oferece o exemplo do “pacifismo medicinal moral”, usado por muitas religiões que investem na educação para transformar a “natureza má” das crianças e torná-las boas. Eu sou educador, mas não tenho ilusões de que a educação sozinha possa resolver tudo.
Se fosse possível realmente mudar a natureza belicista do ser humano, o problema estaria resolvido. No entanto, ninguém possui essa capacidade. O que é realista é utilizar os instrumentos jurídicos, como evidenciado por Kant. Em nível internacional, é necessário dispor de instrumentos legais cada vez mais sólidos e eficazes para regular o uso de tecnologias letais de espionagem, informação e comunicação.
Sobre a internet, embora já existam regulamentações sobre o assunto, ela ainda representa um universo à parte em relação ao Direito convencional. Ao navegar por seus ambientes, frequentemente nos deparamos com indivíduos que buscam o poder de expressar o que desejarem uns contra os outros, ameaçar de qualquer maneira e enganar sem sofrer punição.É verdadeiramente alarmante que o Estado não possua os instrumentos jurídicos necessários para lidar com essa situação e que sua autoridade não consiga agir com eficácia para coibir as ações criminosas.
Urge a necessidade de desenvolver uma regulamentação jurídica abordando as novas tecnologias. Elas avançam a uma velocidade impressionante, enquanto a capacidade de regulamentar aspectos da vida humana nesse setor ainda progride lentamente. Isso se torna evidente quando consideramos que as publicações mais relevantes raramente são registradas em livros ou documentos impressos, mas sim em códigos digitais. No entanto, o Direito ainda está predominantemente codificado em formato físico. Se tentássemos acompanhar as inovações diárias, teríamos que atualizar nossos instrumentos jurídicos semanalmente ou até mesmo diariamente, a fim de garantir uma regulação efetiva.
É neste ponto que entra o papel da moral. Eu defendo a tese de que a educação como meio de transmitir às novas gerações os valores fundamentais que as auxilia a discernir entre o certo e o errado, entre o conteúdo relevante e o supérfluo. Contudo, enfrentar esse desafio não é uma tarefa simples.
INB: Qual é a relação entre pacifismo, democracia e direito?
José: Norberto Bobbio, logo após a Segunda Guerra Mundial, passou a abordar o tema da paz e da democracia, uma vez que havia a necessidade de reconstruir os Estados europeus e estabelecer uma inter-relação entre os conceitos. Para o autor, a democracia é, de fato, o melhor método de solução pacífica dos conflitos.
Bobbio, de certa forma, depositava grande confiança nessa ideia. No entanto, outros filósofos também compartilhavam dessa visão, como por exemplo Kant. A aposta fundamental reside na crença de que, quando as pessoas têm a opção entre paz e guerra, a maioria escolherá a paz. Isso porque a guerra está associada à morte, à perturbação da vida cotidiana e à escassez de recursos. Quando uma nação se envolve em conflitos dessa natureza, seus recursos são desviados para um propósito destrutivo, em vez de serem usados para avanços médicos, pesquisas, indústria e melhorias na qualidade de vida. Pelo contrário, a guerra destrói infraestruturas e causa retrocessos em todos os aspectos.
Bobbio não era ingênuo ao pensar que a democracia era a forma perfeita de organização da sociedade. Ela é apenas a melhor forma de organização diante da incapacidade de alterar a natureza humana. Portanto, é necessário garantir que a maioria das pessoas possua o discernimento necessário para tomar decisões sensatas. A democracia pressupõe dois princípios fundamentais: a liberdade de expressar opiniões individuais e a possibilidade de tomar decisões equivocadas. Assim, após um determinado período, a sociedade deve permitir a alternância de lideranças. Esse mecanismo de rotação é essencial para uma vida social saudável.
Falar sobre sociedade democrática e Estado de Direito significa adotar o método pacifista de resolução de conflitos. Incorporar a força do Direito revela-o como o conjunto de regras de um povo. É interessante notar que não é suficiente ter um sistema jurídico orientado para a paz. Esse ordenamento jurídico pacifista é, no entanto, apenas uma estrutura teórica.
Frequentemente, a guerra se disfarça de paz e a ação militar é justificada como intervenção para restaurar a justiça. Termos como “missão de paz” são usados para encobrir operações violentas. Portanto, a prática revela discrepâncias entre a letra da lei e sua aplicação. Bobbio enumera diversas terminologias para conflitos como forma de contornar as restrições do pacifismo jurídico, mas de fato há um questionamento sobre sua eficácia em escala universal.
Não basta ser pacifista em um contexto isolado. Se o país vizinho não seguir o mesmo princípio, pode invadir outros estados e ameaçar a paz. Isso leva à necessidade de adaptação de interpretações e ações. É uma constatação prática que o pacifismo jurídico, se não for adotado universalmente, não pode ser eficaz.
A relação entre direitos humanos, democracia e paz forma uma tríade que fundamenta todo o pensamento de Bobbio. Ele argumenta que sem democracia não há paz, e sem paz não há respeito e promoção dos direitos humanos. Um direito humano em particular, o direito à vida, possui uma dupla face: o direito a não ser morto e o direito a viver. Essa distinção é crucial. Ao exigir a vida diante do Estado ou de outro indivíduo, pede-se para não ser assassinado. No entanto, isso não significa que não seja possível morrer de outras formas.
A vida é um valor primordial e serve como base para todos os outros valores, sejam eles jurídicos, morais ou religiosos. A partir disso, a escolha pela paz torna-se uma necessidade. A preservação da vida, por sua vez, permite que os regimes democráticos promovam e protejam os direitos humanos. O direito a viver não se limita a “não matar alguém”, mas também abrange “promover a vida”. Ela é o alicerce de todos os valores, e a paz é uma maneira de garantir e proteger esse valor fundamental.
No entanto, nem todos os órgãos do Estado compartilham dessa perspectiva. Muitos cruzam os braços e permitem que pessoas morram por outras causas, como a fome ou a falta de cuidados médicos devido a um sistema de saúde precário. Esse é um ponto crucial a ser considerado. O Estado deve garantir não apenas que as pessoas não sejam mortas, mas também que suas vidas sejam protegidas e que sua dignidade como seres humanos seja respeitada. Isso implica em proporcionar habitação adequada, segurança, assistência médica de qualidade e oportunidades educacionais para todos os cidadãos.
As ideias de Bobbio sobre essas questões são impactantes. Suas contribuições têm um significado profundo e são relevantes para nosso entendimento dos direitos humanos, da democracia e da paz. Por exemplo, sua afirmação de que a vida é o valor primordial ressoa intensamente e destaca a importância de proteger e promover a vida humana em todas as suas dimensões.
Para o autor, a democracia, a paz e os direitos humanos estão intrinsecamente interligados. Um não pode existir sem o outro. A democracia não pode florescer verdadeiramente sem a paz e o respeito pelos direitos humanos. Da mesma forma, os direitos humanos não podem ser garantidos sem a paz e uma estrutura democrática sólida. É um sistema interdependente, no qual cada componente fortalece e apoia os outros.
Porém, não se deve afirmar que um sistema de governo é democrático se ele não respeita os direitos humanos de todos os cidadãos, independentemente de sua categoria ou status na sociedade. A presença de democracia e paz está intrinsecamente ligada à construção de uma sociedade justa e igualitária. Sem um desses elementos, os outros perdem significado e eficácia. Portanto, a busca por um equilíbrio entre tais pilares é essencial para promover uma sociedade que valorize a vida e a dignidade de cada indivíduo.
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