A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu no dia 7 de fevereiro com a professora Flávia Piovesan para discutir os desafios globais dos direitos humanos.
INB: Norberto Bobbio escreveu importantes ensaios publicados no livro A era dos direitos e que tratam de temas relacionados aos direitos humanos, sob diversas perspectivas. Em seus escritos póstumos, há indícios que sugerem que Bobbio pretendia escrever um livro sobre uma possível “Era dos deveres”. Na sua opinião, qual é a relação entre direitos humanos e deveres?
Flávia: Pessoalmente, tenho muito apreço pelo livro A era dos direitos. Esta é uma referência que utilizo com frequência em minhas aulas de graduação, pós-graduação e, mesmo nas conferências.
Para mim, os direitos são reivindicações morais que surgem em momentos diferentes – nem todos nascem de uma vez só. No âmbito dos deveres, existem duas dimensões. Por exemplo, na qualidade de membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, eu sempre dizia que se há o direito de viver livre da violência, então há o dever do Estado de tomar todas as medidas para prevenir, punir e erradicá-la. Na mesma medida, se há o direito de não ser submetido à tortura, logo deve haver as obrigações estatais para evitar esse cenário.
Sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos
Por outro lado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece em seu penúltimo artigo que toda a pessoa tem deveres para com a comunidade, ao passo que é livre e pleno o desenvolvimento da personalidade. Esse quadro mostrou-se evidente com a pandemia da COVID-19. Eu me lembro de ter participado de um evento em Harvard com Kathryn Sikking no qual ela dizia que não adiantava só o Estado fazer a parte dele, a sociedade também precisa colaborar. Todos nós tínhamos que usar máscaras e praticar o distanciamento social. É uma questão de solidariedade.
Essa situação também me despertou outra lembrança, sobre o sistema africano de direitos humanos. Esse sistema trabalha muito com a ótica coletivista, que centraliza os deveres do indivíduo para com sua família, comunidade e sociedade.
Na visão tradicional, a ideia de dever está muito atrelada ao Estado, à justiça e à obrigação legal. Toda a doutrina clássica dos direitos humanos estabelece as obrigações estatais de respeitar, proteger, cumprir e implementar. E esse é um ponto importante para iniciar reflexões.
Direitos humanos, trabalho e as novas tecnologia
INB: O desenvolvimento das novas tecnologias, em um contexto de globalização, alterou as dinâmicas de trabalho ao redor do mundo. Como os direitos humanos podem ser mobilizados para garantir uma vida digna em um contexto transnacional?
Flávia: Eu sempre digo que a agenda dos direitos humanos precisa incorporar os temas emergentes, uma vez que eles estão sujeitos a processos de evolução constante. Só assim será possível construir espaços de luta e dignidade humana.
Há pouco tempo, ofereci uma palestra no Boston College intitulada Shadows and Lights onde discuti como a dinâmica da luta pelos direitos humanos está sujeita aos avanços e recuos. Tais progressos (e retrocessos) mobilizam o surgimento de novos temas, por exemplo, a opinião consultiva da Corte Interamericana em matéria ambiental. Inclusive, a Corte trata dos direitos humanos das gerações futuras. Houve decisões recentes de tribunais alemães e colombianos que preservaram os direitos das futuras gerações como sujeitos ambientais e estabeleceram um pacto intergeracional.
Portanto, é uma tarefa coletiva garantir que o planeta seja habitável para as gerações presentes e futuras. Isso envolve um acordo climático. Minha última semana como membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi em Washington, em dezembro de 2020. Naquela ocasião, aprovamos uma resolução da Relatoria Especial para Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), sobre diversos temas, incluindo o câmbio climático. Também articulamos um diálogo regional sobre direitos digitais. Sobre esse assunto, em dezembro de 2023, participei de um evento na Sorbonne em que apresentei uma conferência sobre direitos humanos no ciberespaço.
O ambiente virtual e seus impasses
Tenho um amigo querido que leciona na Universidade de Frankfurt e ele sempre enfatiza como o Direito se desloca cada vez mais para uma perspectiva transnacional, envolvendo principalmente atores não estatais. Durante nossos debates, notei que no caso dos Direitos Digitais, uma primeira onda determinava que esse campo deveria
estar imune a qualquer regulação. Já foi proposta até mesmo uma Declaração de Independência do Ciberespaço.
No entanto, existem abusos, violências e discursos de ódio no espaço virtual. De forma gradual, novas diretrizes na União Europeia passaram a ser desenvolvidas, assim como jurisprudências e os Princípios de Guiding da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos. Todas essas formulações devem alcançar o Vale do Silício.
Uma grande amiga minha foi relatora da Comissão Comissão Interamericana para o Tema da Liberdade de Expressão. Em nossos diálogos, tornou-se evidente que se o Estado não intervir, a justiça será “privada”, isto é, haverá uma autorregulação por parte dos atores privados transnacionais. E isso é muito preocupante, como revela o Dia das Plataformas e as discussões sobre discriminação algorítimica e neurodireitos. Até onde a tecnologia vai e qual é o seu impacto na integridade mental?
A questão da inteligência artificial e os direitos humanos
Os temas da inteligência artificial e do Big Data também são desafiadores e nos impõem desafios relevantes. A questão da uberização é um reflexo de como o conceito de trabalho tem se transformado. Para exemplificar, faço um retrato do meu dia de hoje: pela manhã, lecionei em uma conferência no Boston College; em seguida participei de um curso de capacitação organizado pelo CNJ, em colaboração com o Conectas, com lideranças indígenas que estavam, em sua maioria, na Amazônia.
É interessante observar o quão poderosa pode ser a virtualidade, mas ela pode trazer precariedade e outros desafios. Sempre lembro à Corte de que a Convenção é um instrumento vivo, embora tenha sido formulada em 1969. Assim, ela terá que lidar com os direitos digitais, com as demandas da comunidade LGBTQUIAP+ e enfrentar as questões relacionadas às mudanças climáticas. Acredito que esse seja o desafio atual do Direito. Existem muitos temas emergentes, difíceis e complexos, mas o ponto central é a influência das novas tecnologias.
Quais os desafios atuais do Sistema de Proteção Internacional de direitos humanos?
INB: Os direitos humanos encontram-se em um processo de constante evolução. Quais são os principais desafios que o Sistema de Proteção Internacional de direitos humanos deve enfrentar atualmente?
Flávia: Na minha opinião, os desafios globais demandam respostas globais. Eu entendo que a doutrina clássica dos deveres estatais, em matéria de direitos humanos, é pautada na tríade respect, protection and fulfill (respeito, proteção e cumprimento). Portanto, o Estado não pode deixar de cumprir essas três demandas e deve adotar medidas para evitar que os demais atores não as violem.
É dever do Estado adotar todas as medidas para implementá-los. Ainda há uma quarta demanda que é a cooperação. Temas como o câmbio climático, direitos digitais, inteligência artificial e refúgio possuem cada vez mais importância transnacional e por isso necessitam de respostas articuladas e alinhadas. Isso representa um marco na cooperação internacional.
Eu observo que o tema ambiental é clássico, ou seja, não há como assegurar o respeito ao meio ambiente sem que haja respostas comuns. Do meu ponto de vista, a solidariedade internacional é crucial para os nossos tempos. Isso se tornou evidente durante a pandemia da COVID-19, por exemplo.
E os desafios na América Latina?
INB: Quais são os principais desafios relacionados à proteção dos direitos no contexto latino americano?
Flávia: Essa pergunta trata de um tema extenso, mas eu diria que existem três desafios estruturais e três desafios emergentes na América Latina. Em relação aos desafios estruturais, o primeiro aspecto importante é que esta é uma das regiões mais desiguais do mundo. A desigualdade afeta, especialmente, os povos indígenas e afrodescendentes. Se considerarmos a perspectiva interseccional, as mulheres e meninas indígenas e afrodescendentes sofrem ainda com uma discriminação sobreposta.
Há um padrão histórico estruturante de discriminação, violência e hostilidade em relação a essa parcela da população. O cenário se agrava na medida em que enfrentamos uma epidemia da violência e desigualdade. Embora os latino americanos representem apenas 8% da população mundial, correspondem a 38% dos homicídios no âmbito mundial. E ainda ocorrem diversas fragilidades institucionais que podem ser verificadas em rankings como o Índice de Transparência Internacional. Um dado significativo, por exemplo, revela que países localizados na América Latina possuem médias muito baixas quando comparados aos outros países.
As veias abertas dos direitos humanos
Tratando-se dos desafios emergentes destaca-se, em primeiro lugar, o populismo autoritário crescente na região. O segundo é o aumento da militarização, especialmente no que se refere à expansão do protagonismo e jurisdição militar nos governos civis. Por fim, o terceiro desafio é o fortalecimento dos grupos mais conservadores, que atacam os direitos LGBTQIAP + em nome das religiões e assim por diante.
Para mim, a grande pergunta é como desmantelar esses desafios estruturais e emergentes. Acredito que cada um tem um papel a desempenhar. Um ator potente é a própria sociedade civil, que luta pelos direitos e pela justiça. Mas isso não é o suficiente. Os Estados, os organismos internacionais, os três poderes, as federações, a mídia livre e independente, a academia e os centros de conhecimento devem reunir suas críticas e estabelecer propostas de melhoria. Portanto, observo que é necessário haver um mosaico de atores que interajam para impulsionar essa agenda no esforço de superar os desafios. Além disso, é fundamental que contribuam para o fortalecimento da tríade indissociável da democracia, Estado de Direito e direitos humanos, como nos ensinou o professor Norberto Bobbio.
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