A pesquisadora Lívia Lino participou do Especial PRMF para contar sua trajetória de pesquisa de conclusão de curso os caminhos para o mestrado.
Lívia Lino é graduada em Direito e em Ciências Sociais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro(Dez/2021) e mestranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RIO.

No dia 28 de fevereiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com a pesquisadora Lívia Lino, para contar sua história de formação, apresentando como marcos referenciais os livros mais fundamentais de sua vida.

Lívia ganhou o terceiro lugar da categoria “graduação” da 1.º edição do Prêmio Raymundo Magliano Filho pelo trabalho “ Palavras importam: o silêncio sobre a população LGBTI+ no texto da Constituição de 1988 e uma análise das tentativas de inclusão”.

Motivações e problemáticas da pesquisa

INB: Qual é o problema discutido no seu projeto de pesquisa e o que te motivou a pesquisar sobre o assunto?

Lívia: O meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) discute a falta de termos literais relacionados à população LGBTI+ na Constituição de 1988, como por exemplo, aqueles relacionados à orientação sexual. O meu principal objetivo foi analisar as diversas consequências simbólicas dessas ausências, bem como as tentativas de inclusão e os métodos utilizados para contornar o problema durante a Assembleia Constituinte. Ao longo do projeto, examinei todas as cartas enviadas pela população aos Constituintes que discutiam o tema. Dentre elas, haviam cartas positivas, que pediam a inclusão dos direitos LGBTI+ na Constituição e cartas negativas, que clamavam pelas mais diversas criminalizações. Também investiguei como se formou e atuou o movimento político que mobilizou esses assuntos na Constituinte.  No âmbito das competências do Supremo Tribunal Federal (STF), analisei duas decisões recentes para compreender como os ministros contornaram esse problema.

Dessa forma, meu trabalho  revela uma trajetória que parte do problema teórico até chegar à sua aplicação mais empírica. Dentre minhas pretensões, busquei avaliar se os ministros enfrentaram os desafios impostos pela adoção das palavras em si. Esse é um aspecto bastante comum para aqueles que pesquisam sobre os direitos LGBTI+ na teoria constitucional. Acredito que a característica distintiva do meu trabalho seja o enfoque na questão terminológica  e no simbolismo que as palavras  carregam, bem como na regulação social que decorre da linguagem.

A primeira decisão do STF que analisei trata da decisão da requalificação civil para pessoas trans. O seu conteúdo estabelecia que seria possível alterar o nome e o gênero nos registros públicos sem a necessidade de apresentar comprovação de cirurgia de redesignação sexual ou qualquer modificação física. A segunda decisão é sobre o casamento  entre pessoas do mesmo gênero.

As razões centrais

Foram duas razões que me motivaram a escolher essas duas decisões. Em primeiro lugar,  desejava abordar as diferenças entre sexualidade e identidade de gênero. Além disso, considerei sua relevância pública. O casamento entre pessoas do mesmo gênero foi muito comentado na época, enquanto a requalificação civil foi uma das primeiras pautas relacionadas às pessoas trans para o STF.

Quanto à minha motivação, gostaria de compartilhar uma história que exemplifica o que aconteceu. Durante o primeiro período da faculdade, fiz um trabalho sobre o que me incomodava na Constituição Federal de 1988. Na época, eu tinha pouco conhecimento sobre o STF, pois tinha iniciado a pouco meus estudos constitucionais. Fiquei frustrada ao perceber que não encontrava nada relacionado à população LGBTI+ e percebi que não me via representada na Constituição. Esse episódio ocorreu em um momento de enfrentamento intenso com o  bolsonarismo. O governo de Jair Bolsonaro simbolizou um período em que a pauta da violência contra a população LGBTI+ foi amplamente discutida.

 Ao longo da minha graduação, fiquei cada vez mais envolvida nos debates sobre linguagem, palavras e terminologia, que já me interessavam desde a escola. Próximo ao quinto período, escrevi um trabalho que inicialmente era um esboço do meu TCC, com apenas duas páginas, na aula de Teoria da Justiça. Enquanto estudava filósofos como Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau, a maior discussão era sobre como os governantes daquela época utilizavam a linguagem como forma de controle social.

Outros assuntos que me chamavam atenção na faculdade estavam  relacionados à teoria feminista e à teoria queer. Essas eram as áreas que mais me interessavam, e eu avançava nos estudos tanto no contexto acadêmico quanto fora dele. Portanto, acabei unindo todas essas experiências e interesses na minha pesquisa. Mas não posso esquecer que meu orientador também desempenhou um papel fundamental ao me auxiliar na sua estruturação.

Especial PRMF: A linguagem e o signos na população LGBTI+

INB: O que você concluiu com o seu projeto de pesquisa?

Lívia: A primeira conclusão que tive  é que há, de fato, um impacto simbólico e social no fato da Constituição não possuir essas terminologias. Quando falamos na população LGBTI+, as palavras têm uma relevância diferente de outros contextos.

Por muito tempo na história,  o movimento político foi uma luta por nomeação. Por exemplo, a palavra homossexualismo foi substituída por homossexualidade, em razão da importância de retirar o radical “ismo”. O jogo político do movimento LGBTI+, ocorre constantemente na arena da linguagem. Até hoje isso é evidente, como ilustra a disputa da linguagem neutra.

Portanto, as palavras são ferramentas de controle cotidiano das pessoas. É algo que acontece diariamente e as situações de violência podem ocorrer de diversas formas: como alguém te chama no ônibus, como o seu professor fala com você em sala de aula, como o seu nome está escrito no documento. Para mim, o caráter simbólico das palavras é muito claro no contexto da população LGBTI+.

A Constituição não possui importância apenas para o Direito, ela também é um documento político e histórico que representa um pacto sobre a nossa própria sociedade. Mas pensando no aspecto programático, é importante que a Constituição contenha palavras para impulsionar os direitos da população LGBTI+.  Ao analisar as decisões do STF, o ônus argumentativo que os ministros tiveram para conseguir os resultados  foi enorme, o que gera uma fragilidade no próprio direito adquirido, até mesmo em termos de legitimidade. Nesse sentido, as chances de êxito dependem muito da configuração política e social daquele momento histórico. Porém, caso houvesse palavras favoráveis ao tema no texto constitucional, a construção argumentativa dos próprios ministros seria muito mais facilitada.

Tempos de perda de direitos e repressão

Inclusive hoje em dia o cenário de tensão se mantém. Durante o governo Bolsonaro, para rebater o casamento homossexual, com frequência retoma-se o  argumento de que o texto constitucional é expresso ao apontar que somente homens  e mulheres podem se casar, porque não há menção explícita aos direitos da população LGBTI+. O texto literal da Constituição é frequentemente manipulado pelos grupos conservadores como argumento para tentar retirar esses direitos.

Além disso, do ponto de vista jurídico, há fragilidade de ter direitos garantidos apenas por meio de decisões judiciais, que podem ser modificadas a qualquer momento. Também existem impactos nas políticas públicas, como mencionei brevemente em meu trabalho. O fato de não termos um amplo banco de dados sobre a população LGBTI+ também está relacionado às palavras presentes na Constituição.

Quando a expectativa é desenvolver políticas públicas para compreender a dimensão quantitativa dessa população, é necessário extrair metodologias e informações de diversas maneiras. A Constituição pode ser uma das fontes para obter informações. Por exemplo, existem dados sobre a população indígena, negra e com deficiência. Esses grupos podem ser  mais facilmente reconhecidos como sujeitos políticos e sociais. Portanto, o fato de a Constituição não fornecer uma base explícita para fundamentar a necessidade de coletar dados sobre sujeitos LGBTI+ também influencia nesse aspecto.

Falar em dados sobre a população LGBTI+ tornou-se um debate político de anos, a tal ponto que o IBGE incluiu a orientação sexual como uma das perguntas cabíveis em seus questionários recentemente. Eu acredito que isso é não só simbólico, mas também prático. Ultrapassa o campo teórico e pode ser observado no dia a dia, principalmente na construção do Estado democrático brasileiro e sobre os assuntos que ele considera importantes em termos de direitos sociais, política e alocação de orçamento público.

 Portanto existe um jogo entre as normas, no qual as palavras não servem apenas para a extração da norma do texto, mas também para interpretação questionável. A interpretação constitucional garantiu muitos dos direitos que existem hoje, o que é muito importante. No entanto,  abordar o outro lado também é fundamental. Na minha opinião, ter direitos na prática não resolve completamente o problema.

Contribuições sociais e acadêmicas

INB: Como você analisa a contribuição da sua pesquisa para a nossa sociedade?

Lívia: Eu acredito que a primeira contribuição da minha pesquisa relaciona-se ao próprio Direito. Até hoje prevalece um estigma, até mesmo no ambiente acadêmico, em relação as questões da sexualidade, identidade de gênero e discriminação de grupos marginalizados. Por vezes, esses assuntos são tratados unicamente como questões identitárias.       É  importante demonstrar como o Direito e o Estado não são neutros.

É comum assumir que o Estado é um ente separado do mundo, algo que flutua no ar. No entanto, ele foi construído como uma forma de regular as pessoas, a sociedade e organizar toda nossa vida. Portanto, cada vírgula presente na Constituição é uma escolha política que resultou de debates. Na Assembleia Constituinte, houve discussões sobre orientação sexual, mas sua incorporação no texto constitucional acabou sendo vetada. Um dos motivos do veto foi o receio de associar a questão à prostituição e também à AIDS, que era uma questão crítica de saúde pública  naquela época. Acreditava-se que isso poderia estigmatizar outras pautas de minorias. A população LGBTI+ conseguiu falar sobre sua situação apenas no grupo de trabalho relacionado a pessoas negras, indígenas, etc.

Portanto, acredito que seja importante mostrar que a Constituição é o resultado de uma história política de exercício de poder. E se hoje entendemos as coisas da maneira como são, é porque alguém decidiu assim lá atrás. E isso se relaciona com a segunda contribuição da minha pesquisa, que é compreender que os termos e palavras utilizados não são simples sinônimos, nem aleatórios.

 Não é indiferente usar “orientação sexual” ou “opção sexual”. As palavras, especialmente aquelas amplamente utilizadas na arena política, carregam consigo uma história e um significado de poder. Portanto, é importante mostrar que não se trata apenas de questões jurídicas, mas que afetam e devem ser consideradas pelo Direito. As palavras presentes na Constituição e utilizadas pelo STF, por exemplo, possuem um impacto que supera o próprio Direito. São questões sociais e políticas reais.

 É possível observar esse fenômeno no dia a dia. São as palavras que os tribunais utilizam e são reproduzidas nos jornais matutinos de todas as cidades do Brasil. São as palavras que chegam até a população em geral e que começam a se incorporar no vocabulário de todos. Assim, penso que elas também podem imprimir respeito. As palavras têm o poder de regular a sociedade e de impulsioná-la a pensar em novas formas de regular os comportamentos humanos, a sexualidade, as identidades de gênero e as maneiras de ser no mundo.

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