No dia 17 de fevereiro de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a pesquisadora Vanessa Guimarães dos Santos sobre sua pesquisa intitulada “Estudo de caso: Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros (Favela Nova Brasília) vs. Brasil”. Pelo êxito de seu projeto, Vanessa conquistou o primeiro lugar na categoria Pós-graduação lato sensu na 1ª edição do Prêmio Raymundo Magliano Filho.
INB: Qual é o problema discutido no seu projeto de pesquisa e o que te motivou a pesquisar sobre o assunto?
Vanessa: O caráter multidisciplinar do meu projeto de pesquisa deve-se ao fato de eu possuir formação em diversas áreas. Sou graduada em Pedagogia e atuo como professora na rede pública de ensino há 13 anos. Além disso, possuo formação em Dança Contemporânea e Direito. A escolha por essas áreas reflete o meu interesse tanto nas artes quanto nas questões sociais. Durante o período em que atuei como docente em escolas municipais, enfatizei para os meus alunos a importância dos direitos humanos. Dessa forma, já tinha em mente, desde o início do meu curso na Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), que desejava desenvolver um projeto de pesquisa centrado neste tema.
Minhas experiências profissionais me levaram a identificar lacunas que eram negligenciadas no campo do direito. Isso me motivou a direcionar o olhar para os problemas que mais me interessavam. Uma das minhas primeiras indagações estava relacionada à necessidade de grupos socialmente vulneráveis disporem de mecanismos especiais e garantias de direitos, os quais frequentemente são negligenciados.
Minha segunda questão consistiu em explorar o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que muitas vezes é obscurecido em comparação com organizações globais como a Organização das Nações Unidas (ONU) ou a União Europeia. No entanto, a América Latina possui um sistema que trata diretamente de nossas problemáticas, embora seja frequentemente desconhecido. Ao participar de bancas e congressos, pude constatar que muitas pessoas não estão cientes da existência de casos e medidas diretas relacionados ao nosso contexto latino-americano.
Diante desse cenário, identifiquei que meus dois problemas principais eram a vulnerabilidade social, especialmente a de negros e pobres, e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Na verdade, eu almejava compreender como esse sistema impacta nossas práticas jurídicas e contribui para o nosso ordenamento jurídico interno.
Optei por abordar o problema sob a perspectiva da segurança pública, pois esse tema, que pode parecer improvável dentro da EMERJ, é inovador. Durante minhas pesquisas, descobri que nos últimos dez anos ninguém havia se debruçado sobre essa questão.
Nesse processo, dois pontos me chamaram a atenção. Em primeiro lugar, no Rio de Janeiro, a violência e as chacinas são eventos que infelizmente fazem parte do cotidiano dos moradores, o que me causava indignação. Além disso, as frequentes operações policiais que resultam no fechamento de escolas é um problema recorrente. Apesar do cenário extremamente preocupante, tudo isso estava lamentavelmente naturalizado na sociedade carioca. Dessa forma, minhas motivações estão profundamente relacionadas às questões sociais e à urgência de trazer à tona problemas que impactam significativamente a sociedade brasileira.
Sobre a estrutura do projeto de pesquisa, em cada um dos capítulos, analisei um documento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. No primeiro capítulo, examinei um relatório de mérito da Comissão Interamericana e apresentei uma viagem histórica sobre a supressão dos direitos do povo negro no Brasil. Portanto, a primeira parte do trabalho possui uma abordagem histórica significativa. O relatório da Comissão é particularmente relevante nesse aspecto, pois aborda grupos de extermínio e eventos como a Chacina da Candelária, destacando a continuidade desses problemas desde os tempos da escravidão.
No segundo capítulo, estudei o conteúdo de uma sentença da Corte Interamericana. Nesse momento, abordei suas lacunas e suas implicações no ordenamento jurídico brasileiro. Uma das principais lacunas identificadas na sentença refere-se à abordagem em relação à questão racial. Apresentei contribuições de várias autoras negras, por exemplo, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Ochy Curiel, sobre a situação da mulher negra e pobre nas favelas, bem como as ações do Estado nesse contexto. Esse capítulo se concentrou nas questões de gênero, com uma atenção especial aos crimes sexuais, classificados pela Corte IDH como tortura, que frequentemente não recebem a devida atenção no ordenamento jurídico interno.
No terceiro capítulo, discuti a execução da sentença, ou seja, o cumprimento das medidas determinadas pela Corte IDH. O sistema possui documentos que são produzidos em intervalos de tempo variados, como dois em dois anos ou um em um ano. A Comissão e membros da Corte visitam o Brasil, recebem informações sobre o progresso das medidas e avaliam o que foi cumprido e o que não foi. Nesse contexto, examinei tais documentos e destaquei as áreas em que as instituições brasileiras enfrentam desafios mais complexos. Ainda no terceiro capítulo, abordei a participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Supremo Tribunal Federal, especialmente em relação à ADPF n. 635 .
INB: O que você concluiu com o seu projeto de pesquisa?
Vanessa: É difícil utilizar a palavra “concluir” porque, do meu ponto de vista, o trabalho científico nunca chega a um fim definitivo. No entanto, com base nas minhas observações, acredito que existe uma carência significativa de participação da sociedade civil nas questões relacionadas à segurança pública. É fundamental salientar que a segurança pública é um direito social garantido pela Constituição, porém, há escassez de espaços e oportunidades para o envolvimento dos cidadãos. De fato, alguns movimentos sociais estão empenhados em construir espaços para o debate coletivo e a tomada de decisões. Não podemos permitir que políticos ajam de forma centralizada, proferindo discursos e tomando decisões sem levar em consideração dados científicos.
No Rio de Janeiro, várias universidades e movimentos sociais produzem dados que o Estado não coleta ou não disponibiliza. No entanto, essas informações muitas vezes não são consideradas nas políticas públicas, já que os pesquisadores não são convidados a participar das discussões. Portanto, o primeiro aspecto que destaco é a necessidade de estabelecer uma rede formal de diálogo, envolvendo a Defensoria Pública, o Ministério Público, representantes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como a polícia. Eles devem tomar decisões embasadas em dados científicos, em vez de depender de opiniões pessoais de políticos ou discursos eleitorais.
Além disso, há uma questão de gestão democrática que precisa ser revista, especialmente no que diz respeito aos procedimentos policiais. É fundamental compreender quais procedimentos a polícia deve seguir para enfrentar os desafios da segurança pública. A colaboração interinstitucional também é crucial. Não podemos esperar que uma única instituição ou poder resolva todos os problemas. Um exemplo disso é a ADPF n. 635 em tramitação no STF.
É necessário que várias instituições colaborem de maneira conjunta, não como uma escolha, mas como uma obrigação, a fim de abordar os desafios da segurança pública de uma forma eficaz. Por fim, a importância dos dados científicos para a tomada de decisões qualificadas não deve ser subestimada. Infelizmente, essa questão tem sido negligenciada, o que resultou em mais mortes no estado do Rio de Janeiro.
INB: Como você analisa a contribuição da sua pesquisa para a nossa sociedade?
Vanessa: Eu considero o meu projeto apenas um elemento dentro de uma rede mais ampla. Com o passar do tempo, tive a oportunidade de conhecer diversos trabalhos excelentes e diferenciados relacionados à produção de dados, o que é fundamental para fomentar o debate social e impulsionar mudanças.
Projetos como o GENI da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Instituto Fogo Cruzado e o Fórum de Segurança Pública estão gerando dados que o Estado não coleta. Essas iniciativas têm se unido para mobilizar a sociedade, criar debates e exercer pressão social. Isso é fundamental porque é impossível resolver o problema de forma isolada. É necessário um esforço conjunto. A sociedade precisa se educar em conjunto e mudar a maneira como encara determinados temas.
O meu trabalho representa apenas uma pequena parte dessa rede, que aborda o tema especificamente na área do Direito. Durante a graduação e pós-graduação, nunca presenciei uma abordagem profunda do problema da segurança pública. Muitas vezes, outras questões são consideradas mais relevantes. Portanto, acredito que esse debate também precisa ser promovido nos espaços do Direito, nas faculdades, nos cursos preparatórios para concursos, nas escolas de magistratura e nas escolas do Ministério Público, que estão espalhados pelo Brasil. Curiosamente, muitas vezes o tema é mais estudado em cursos de administração pública do que no âmbito jurídico.
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