Especial Equipe INB por Lévio Oscar Scattolini

No dia 15 de junho, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, se reuniu com Lévio Scattolini para contar sua história de formação. Para contar essa história, ele apresentou como marcos referenciais os livros mais fundamentais de sua vida.
Lévio Scattolini é coordenador científico do Instituto Norberto Bobbio e doutorando em Sociologia pela UNICAMP. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2021). Advogado e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2015).

No dia 15 de junho, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com Lévio Scattolini para contar sua história de formação. Para contar essa história, ele apresentou como marcos referenciais os livros mais fundamentais de sua vida.

O gosto pela leitura

Acredito que o interesse pela leitura se deu para mim mais como um processo do que uma epifania, quero dizer, não aconteceu de forma arrebatadora a partir de um encontro ou ocasião específica, mas sim ao longo do tempo. A leitura e o conhecimento foram crescendo em mim à medida que se desenvolviam também minha consciência e capacidade de compreender o mundo. Devo isso, certamente, ao esforço e trabalho de professores excepcionais que tive a sorte de conhecer durante minha formação e também ao encontro de pessoas especiais que compartilharam comigo algumas de suas próprias descobertas.

Em casa, meu pai gostava(e gosta ainda) muito de ler jornal e acompanhar as notícias, ele sempre ouvia, por exemplo, a CBN, desde às 6 horas da manhã, quando me levava ao colégio. Minha mãe, por sua vez, prefere um tipo de literatura mais popular, do tipo “best seller”. A minha família, portanto, não tem o hábito de ler literatura, poesia e teoria, mas meus pais sempre me incentivaram a manter o costume da leitura. 

No ensino fundamental, como um bom paulistano criado em apartamento, eu gostava de ler quadrinhos, mangá, essas coisas. Amava Dragon Ball, Calvin e Haroldo, As aventuras de Tintim e Turma da Mônica também. Além disso, gostava muito de algumas revistas como a Galileu e Superinteressante, que falavam bastante de desenho animado, games etc., mas que vinham acompanhadas de brindes, desses para crianças.

As leituras “obrigatórias”

Com o tempo, os professores do colégio começaram a indicar leituras obrigatórias. Naquela época, eu não compreendia totalmente o potencial dessas leituras, mas desde o primeiro momento fiquei impactado por elas. Na quinta série, por exemplo, minha turma trabalhou com uma edição de Dom Quixote de la Mancha para realizar uma apresentação na Semana Cultural. Apesar de ainda não compreender a dimensão da obra, foi uma experiência interessante para mim, porque os alunos tinham autonomia para montar, dirigir, idealizar o cenário e o figurino da peça. Todo esse trabalho foi realizado pela coordenação pedagógica, pelos professores de artes e literatura e por profissionais que nos incentivaram a conhecer e mergulhar nessas histórias.

No ensino médio, outros livros marcantes foram Os Miseráveis de Victor Hugo e Vidas Secas de Graciliano Ramos. Já no terceiro ano, enquanto me preparava para o vestibular, li O Cortiço de Aluísio Azevedo, cuja densidade me impactou profundamente. As leituras obrigatórias, mesmo que impostas, me apresentaram outras referências e abriram caminho para novas descobertas. Acredito que essa seja a função social do colégio, da universidade e de outros espaços onde temos a oportunidade de aprender com pessoas de diferentes trajetórias. 

Também me lembro de diversas indicações de amigas e amigos que foram muito importantes: O mundo de Sofia, Ensaio sobre a cegueira, O existencialismo como humanismo de Sartre, O livro dos abraços de Eduardo Galeano, Uma temporada no Inferno de Rimbaud, A insustentável leveza do ser de Milan Kundera, entre outras, foram todas obras que mexeram bastante comigo e começaram a despertar em mim tanto uma curiosidade pela filosofia quanto uma sensibilidade maior às artes e outras formas de expressão humanas.  

Do meu pai, peguei o hábito de ler jornal, que hoje considero fundamental. Comecei pelas seções de esportes, tiras e quadrinhos etc., mas com o tempo aprendi a gostar e dar muito valor ao trabalho jornalístico. Tem muita coisa que eu só aprendo ou fico sabendo por conta do jornal. Fora que hoje, em tempos de desinformação em massa, considero essencial apoiar financeiramente o trabalho de jornais e revistas que contribuem qualitativamente para a formação da opinião pública.  

Escolhas 

Como fui parar no Direito? Bom, essa é uma boa pergunta. Hoje acredito que o mais adequado para mim à época teria sido cursar Economia, pois seria uma opção intermediária para quem gosta tanto de humanidades quanto de matemática. Agora, caso eu pudesse voltar no tempo com o conhecimento e a experiência que tenho hoje, se eu pudesse, por assim dizer, escolher “uma outra vida”, eu certamente seguiria na área da Psicologia. 

Brincadeiras à parte, isso não significa que eu despreze o Direito ou me sinta frustrado, muito pelo contrário. Houve sim um período de rebeldia e negação em relação ao Direito, mas reconheço que a formação jurídica me proporcionou uma base fundamental para pensar criticamente a sociedade e a realidade em que vivemos. Se tivesse optado por Economia, Psicologia ou Sociologia, poderia ter perdido muito do que aprendi com o Direito, sobretudo no que diz respeito ao funcionamento do Estado e à estruturação das relações hierárquicas de poder. Hoje tenho um apreço mais maduro pela formação jurídica e sou grato pela escolha que fiz. Mesmo que por caminhos tortuosos, acabei encontrando meu propósito pessoal por meio dele. 

O momento mais difícil da faculdade foi por volta do terceiro ano, pensava com frequência em desistir do curso. Cheguei a iniciar a graduação em Pedagogia na USP, mas logo entendi que o que eu queria mesmo não era a Pedagogia em si, mas sim ser professor, dar aula, trabalhar com educação e produção de conhecimento. Para tanto, eu não precisava desistir do Direito, pelo contrário; poderia encerrar a graduação e partir para o mestrado, iniciando minha formação como pesquisador e professor.

As camadas do Direito

A dogmática jurídica sempre foi um problema para mim. Para além dos manuais e códigos, as próprias Teorias e Filosofias do direito que tive acesso nos primeiros anos da faculdade faziam pouco sentido e não davam conta de explicar os problemas e contradições que eu enxergava no Direito e na Sociedade. Agora eu sei que uma parte dessa incompreensão foi de minha responsabilidade, principalmente em relação a grandes autores como Kelsen, Bobbio, Schmitt e tantos outros; por outro lado, sei também que parte do meu descontentamento e frustração é sim responsabilidade de tantos outros ditos “pensadores” do Direito que distorcem, reduzem ou simplesmente falseiam os grandes problemas, seja por ignorância, por fingirem saber o que não sabem ou, o que é muito pior, por mentir ou calar sobre o que sabem.

Para ser justo, participei de diversas aulas que me estimulavam a refletir com mais profundidade, como as de Sociologia, Filosofia, Fundamentos do Direito Público e Introdução ao Estudo do Direito. Porém, essas matérias chamadas de “propedêuticas”  vão desaparecendo do currículo após o primeiro ano e praticamente não existem mais após o quarto semestre. Mais uma vez, foram as grandes professoras e professores que me ajudaram a enxergar um caminho possível de descobertas e conhecimentos. Neste caso, principalmente a partir de reflexões das aulas de Direito Penal, de Constitucional e de Direitos Humanos, assim acabei conhecendo a Criminologia. 

Desde mais ou menos a metade da graduação passei a me dedicar muito à compreensão da “questão criminal” e do sistema penal, especialmente por meio da criminologia crítica e do direito penal. Nesse campo, várias referências foram essenciais, como os livros Penas Perdidas: O Sistema Penal em Questão de Louk Hulsman e Jacqueline Bernat de Celis, Em busca das penas perdidas de Zaffaroni, Quem são os criminosos de Augusto Thompson, Difíceis ganhos fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro de Vera Malaguti Batista, Punição e Estrutura Social de Rusche e Kirchheimer, Punir os pobres de Luïc Wacquant, Golden Gulag de Ruth Gilmore e tantos outros. 

O sistema penal escancara, revela para quem quiser ver, as fissuras profundas da sociedade brasileira. Para compreender a questão criminal no Brasil, por exemplo, é impossível não olhar para o sistema escravocrata e para a lei de terras como estruturantes tanto da formação social quanto da República brasileira. Aqui clássicos da sociologia são basilares, como Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre, mas também intelectuais como Lélia Gonzalez, Clóvis Moura, entre outros.

Agora, há também diferenças na forma como essas fissuras e relações se apresentam hoje. A sociedade brasileira permanece estruturalmente desigual, contudo, a produção dessa desigualdade se constitui numa formação econômica financeirizada e, principalmente, por meio da implementação do modelo neoliberal de gestão macroeconômica. Isso se deu tanto em governos mais progressistas, como de Lula e Dilma, quanto em governos mais conservadores. Para compreensão dessas especificidades da sociedade brasileira contemporânea, leituras como Brasil delivery da professora Leda Paulani e O Ornitorrinco Crítica da razão dualista do professor Chico de Oliveira foram seminais.

Teorias econômicas e Capitalismo 

Avançando nesses estudos, percebi que eu precisava aprofundar meu entendimento sobre o capitalismo, seu funcionamento, suas formas, sua história e determinações. Recorri então aos textos clássicos da economia política, como Adam Smith e David Ricardo, assim como seus intérpretes, e também para leituras críticas a eles, especialmente a de Karl Marx. Algumas obras que me influenciaram muito neste momento foram: Capitalismo e Escravidão de Eric Williams, O novo imperialismo de David Harvey, Mulheres, Raça e Classe de Ângela Davis, O valor de Marx de Alfredo Saad Filho e História do pensamento econômico de Isaak Illich Rubin.

Na verdade, hoje percebo que eu já estava num processo gradual de deslocamento intelectual, migrando minha agenda de pesquisa da Criminologia e Direito Penal para a economia política, apesar de ter seguido com os estudos criminológicos até quase dois anos após a conclusão da graduação. Mas, naquele momento, meu objetivo era entender como o sistema penal se encaixa e qual é a sua função nessa forma de organização social. 

O mestrado e as Criptomoedas

Em meados de 2017 passei a tomar contato e conhecer mais a fundo o fenômeno das Criptomoedas. Já tinha ouvido falar de Bitcoin antes, especialmente por conta da deep web (agora se fala “dark web” parece), mas achava que era alguma forma de golpe ou fraude para tomar dinheiro das pessoas. 

Foi o fascínio de meu irmão mais velho pela tecnologia que primeiro chamou minha atenção. Nessa época eu ainda tinha rede social, então entrei em alguns grupos e comunidades do Facebook, do Reddit também, que discutiam o assunto e notei que não era só meu irmão, realmente havia todo um imaginário – uma construção coletiva de ideias, promessas, sonhos e possibilidades – em torno daquelas tecnologias. 

O nível de entusiasmo e comprometimento das pessoas com as criptomoedas e o blockchain, bem como com seus benefícios, me impactou muito. Assim, quando fui aprovado no mestrado no final de 2017, e como eu também já vinha me direcionando mais a estudos sociais e econômicos, não tive dúvidas, sabia que iria trabalhar com o tema das Criptomoedas e Blockchain, mais especificamente sobre as promessas e benefícios a elas atribuídas.  

Esse entusiasmo com as tecnologias contrastava com tudo o que eu estava estudando naquele momento, ou seja, as contradições, limitações e violências do capitalismo. Por isso quis investigar se o blockchain e as criptomoedas tinham efetivamente o potencial de transformar as dinâmicas e estruturas sociais capitalistas. 

Havia um grande movimento que clamava por uma sociedade sem Estado, bancos e grandes corporações, que se organizaria a partir de redes distribuídas p2p (pessoa a pessoa), sem qualquer “intermediário”. Assim, supõe-se, seria possível criar redes e instituições mais confiáveis, menos centralizadas e hierárquicas e mais democráticas no sentido da participação direta das pessoas. 

Para mim, havia claramente um estranhamento em relação a esse discurso. Como uma tecnologia poderia solucionar problemas tão complexos, especialmente quando condicionada aos imperativos da acumulação capitalista? Decidi, pois, me aprofundar no arranjo, na composição e no modo de funcionamento dessas tecnologias. 

Na dissertação, procurei demonstrar os limites e contradições do potencial disruptivo das tecnologias relacionadas à internet do valor, categoria que à época eu utilizei para sistematizá-las. Hoje (2023), agora no doutorado, sigo com a agenda de pesquisa semelhante, mas sintetizo essas tecnologias na categoria “criptoeconomia”. Meu enfoque em relação ao objeto também mudou, agora estou investigando como essas tecnologias produzem e são produzidas por um movimento, mais amplo e anterior a elas, de encriptação, autonomização e financeirização da economia.

Na cabeceira

Atualmente, estou terminando O Homem que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura, um livro que estava na minha lista há algum tempo e, logo em seguida, já quero começar a ler uma indicação sua Júlia (e aqui do blog também), que é K. Relato de uma busca, do Bernardo Kucinski. Além disso, no campo teórico, por um lado estou acompanhando os estudos sociais sobre ciência e tecnologia, agora mais precisamente de Bruno Latour, para escrever o artigo final de uma disciplina do doutorado, bem como, de outro lado, sigo num esforço contínuo de mapear o debate sobre a criptoeconomia e avançar na compreensão do capitalismo especialmente via crítica da economia política e Lei do valor. Desde o mestrado, tenho buscado entender melhor como ocorre o desenvolvimento tecnológico, em geral, quero dizer, ao longo de toda a história da vida humana, bem como suas determinações específicas sob a égide do modo de produção capitalista. 

Suporte e alento

Nos momentos difíceis, encontro apoio nas artes, especialmente na literatura, no teatro, no cinema e na poesia para seguir adiante. Além das referências já citadas, alguns subterfúgios para mim são sempre Hilda Hilst, Paulo Leminski e Raduan Nassar, os quais conheci por meio de pessoas especiais. Além desses, tenho gostado muito também de acompanhar os lançamentos dos contemporâneos, como Conceição Evaristo, Alejandro Zambra, Carla Madeira, Itamar Vieira Junior, entre tantos outros. É muito legal poder testemunhar o nascimento de obras tão potentes.

Quer saber mais sobre esses e outros temas? Acesse a página do Diálogos INB e confira todas as entrevistas realizadas com profissionais e professores de diversas áreas do conhecimento!