O que é Bioética e qual é o seu papel para os estudantes de saúde por Mário de Barros Filho. 

Mario Thadeu Leme de Barros Filho é professor do Eixo de Humanidades do Curso de Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE). Coordena o curso de Especialização em Bioética na mesma instituição. É membro do Comitê de Bioética e do Centro de Bioética Guido Faiwichow do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). É professor convidado no curso de Especialização de Ações Terapêuticas para o Luto do COGEAE-PUC/SP. Além da docência, é sócio fundador do BFAP Advogados.
Mario Thadeu Leme de Barros Filho é professor do Eixo de Humanidades do Curso de Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE). Coordena o curso de Especialização em Bioética na mesma instituição. É membro do Comitê de Bioética e do Centro de Bioética Guido Faiwichow do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). É professor convidado no curso de Especialização de Ações Terapêuticas para o Luto do COGEAE-PUC/SP. Além da docência, é sócio fundador do BFAP Advogados.

No dia 30 de janeiro de 2023, o professor Mário de Barros Filho conversou com a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio sobre a bioética, um dos temas mais importantes da área da saúde.

INB: A bioética é uma disciplina que tem sido cada vez mais abordada por diversos campos do saber. Na sua opinião, qual é o significado de sua interdisciplinaridade e quais são as suas principais características?

Mário: É possível abordar a Bioética de múltiplas maneiras, dada a variedade de autores e referências que exploram o tema. Nesse sentido, a origem do meu conhecimento e o que aprendi ao longo da jornada profissional influenciam a minha própria perspectiva conceitual sobre a Bioética.

Sou graduado em Direito e atualmente atuo tanto na advocacia prática quanto na esfera acadêmica. Realizei a pós graduação no campo da propedêutica jurídica e optei por uma abordagem de análise mais filosófica do que dogmática. Desde o início da formação, concentrei-me nos estudos da Filosofia do Direito e da Constituição, o que me levou a adotar uma perspectiva jurídica fundamentada nos direitos humanos e no constitucionalismo. Portanto, minhas observações, reflexões e entendimentos são moldados por tais recortes.

Naturalmente, ao tratar da interdisciplinaridade e do tema da bioética, procuro integrar essa dimensão valorativa de forma significativa. Isso me permite expressar emoções, compreensões e compartilhar mais da minha trajetória. Esmiuçar o conceito de bioética e, por extensão, a sua interdisciplinaridade, envolve ir além das questões meramente éticas.

Diante da incompletude do conhecimento

Há cerca de oito anos, passei por uma mudança de carreira e adentrei o campo das ciências biológicas. Tudo começou quando fui convidado a participar da concepção e implementação de uma disciplina sobre humanidades no curso de medicina do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Essa iniciativa visa destacar a importância das questões que envolvem o cotidiano dos profissionais de saúde. Em minha perspectiva, todas essas indagações têm como base um pressuposto crucial: a multiplicidade e a diversidade. Reconhecer a intrínseca incompletude dos nossos conhecimentos é fundamental.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos sustenta que é fundamental estabelecer um diálogo multicultural para superar nossas próprias limitações ao perceber o mundo. Essas considerações conduzem à conclusão de que a abordagem interdisciplinar é a mais apropriada para analisar a complexidade da bioética. Em resumo, a segmentação do conhecimento é insuficiente para enfrentar todos os desafios contemporâneos, especialmente os que derivam da influência das novas tecnologias.

As (muitas) definições de bioética

Como campo de estudo, a bioética é relativamente jovem. Surgiu na década de 1970, o que significa que muitos de seus autores fundadores ainda estão vivos e presentes nos debates. É interessante como suas contribuições ainda ampliam constantemente as reflexões do campo. O cerne da bioética é, precisamente, examinar as relações possíveis entre a ética e as descobertas científicas e tecnológicas contemporâneas. Dado que é um conhecimento multidisciplinar, sua definição não é estática e, portanto, pode ser influenciada pelas circunstâncias atuais. Essa afirmação é de extrema relevância e é aconselhável manter uma dose de ceticismo em relação a quem proclama que a bioética está definitivamente delimitada.

Não há um único conceito ou definição. A bioética se reconfigura organicamente, conforme as pesquisas e o contexto vigente. Ela busca uma convergência de perspectivas entre os participantes e sua essência está enraizada no diálogo. Na realidade, trata-se de um campo em constante construção, que abraça e valoriza a diversidade.

Uma breve análise histórica revela alguns autores significativos, cujas reflexões fundamentam essa disciplina. Entre eles, destacam-se o bioeticista brasileiro Leo Pessini e Van Rensselaer Potter, um visionário oncologista norte-americano que utilizou a expressão “bioética” pela primeira vez na década de 1970, para se referir a uma “ciência da sobrevivência humana”. Sua obra Bioética: Ponte para o Futuro é uma referência indispensável para os estudantes da área. Isso porque ela explora como a interconexão entre o desenvolvimento científico e as humanidades contribui para a construção de um futuro orientado pela necessidade de sobrevivência ecológica e melhoria da qualidade de vida.

Outro autor norte-americano de fundamental importância é André Hellegers, pois foi ele quem efetivamente estruturou a bioética como uma disciplina do conhecimento passível de investigações institucionalizadas. Historicamente, a Universidade de Georgetown, em Washington, desempenha um papel essencial no surgimento da bioética, abrigando o Kennedy Institute of Ethics onde Hellegers atuava. Foi ele quem de fato sistematizou um estudo interdisciplinar entre as ciências biológicas, ciências da saúde, filosofia, entre outras. 

Adicionalmente, um elo importante se estabeleceu entre a bioética e o Direito, que para muitos se concretizou na figura do Biodireito. No entanto, o mais significativo é que as reflexões bioeticistas buscam explorar as condições necessárias para uma gestão responsável da vida humana e animal.Na minha perspectiva, a Bioética é uma ferramenta essencial para o exercício da cidadania e requer que seus participantes acreditem na lógica de auto sustentação, desenvolvimento e progresso da ciência, que ocorre por meio dos avanços tecnológicos. 

Portanto, é imperativo assegurar que, nesse processo, o respeito à dignidade da pessoa seja garantido. Os direitos humanos desempenham um papel crucial na promoção de um diálogo bioético, ao lado do respeito pela diversidade cultural. Contudo, para além dessas interpretações de natureza abstrata, deve-se enfatizar que a bioética possui um propósito prático e tangível. Ela não é meramente uma disciplina teórica; na verdade, ela se materializa e deve orientar diariamente os profissionais da saúde. Através dessa abordagem, é possível afirmar que a bioética é uma ferramenta que viabiliza o exercício pleno da cidadania.

INB: Quais foram os eventos históricos que motivaram a sistematização da Bioética?

Mário: Esse é um dos tópicos que mais me agrada abordar em sala de aula e está intrinsecamente relacionado com a noção de uma “micro-história da bioética” elaborada pelo filosofo e bioeticista Albert R. Jansen.

De acordo com esse autor, o interesse da sociedade pela bioética emergiu nos anos 1960 e 1970 motivada por eventos específicos que ocorreram nos Estados Unidos e no mundo naquele período. Segundo ele propõe, três acontecimetnos exerceram um papel relevante para a consolidação da bioética como uma disciplina de estudo. O primeiro desses eventos ocorreu devido à publicação em 1962 de um artigo na revista Life sobre um hospital em Seattle dedicado ao tratamento de pacientes com doença renal crônica, que enfrentava uma situação de superlotação. A demanda por tratamento excedia a disponibilidade de equipamentos de diálise na instituição e o artigo narrava a história da criação de um comitê de ética hospitalar formado para definir prioridades para a aloação de recursos em saúde naquela instituição. Os membros selecionados, todos leigos em medicina, tinham que decidir sobre quem receberia a hemodiálise. Essa questão é delicada, visto que, essencialmente, recusar a diálise a um paciente necessitado poderia impactar na sua própria sobrevivência. A reportagem colocou luz no fato de que o processo de decisão médica saiu do domínio exclusivo dos médicos e demais profissionais de saúde. Para Jonsen, esse evento, mais do que qualquer outro, marcou a distinção entre a bioética e a ética médica tradicional.

Enfrentando dilemas

Esse episódio suscita também outras questões relevantes: como foi feita tal escolha? Quais eram os profissionais integrantes do Comitê? Qual foi o impacto das decisões nos pacientes que não puderam ser tratados? A sociedade norte-americana passou a ponderar sobre esse fato e cresceu o desconforto em relação ao ocorrido. Afinal, por que essa decisão foi tomada? Ela deveria ser exclusivamente médica ou outros representantes da diversidade social deveriam participar? Eventos similares ocorreram recentemente no Brasil, durante a pandemia de COVID-19. Isso aconteceu em algumas regiões do país, em que os profissionais de saúde precisaram determinar quais pacientes teriam acesso aos ventiladores artificiais. Se essa situação se repete, não é mera coincidência.

Alguns anos após a publicação do artigo na Life, um outro evento chamou atenção de Josen: a publicação do artigo “Ética e investigação clínica” de Henry Beecher, professor de Harvard, na New England Journal of Medicine. Ele reuniu a informação de artigos científicos de pesquisas com seres humanos publicados na própria New England Journal of Medicine e em outras revistas médicas, que foram realizadas em condições éticas questionáveis, inclusive com financiamento do governo estadunidense. Ele chamou atenção que estas não aderiram aos protocolos científicos convencionados. Além disso, tais atividades foram conduzidas com cidadãos tratados como de “segunda classe”, incluindo pessoas em situação de rua, com deficiência, em situação de encarceramento, crianças, entre outros.

Outras histórias e o início da Bioética

O terceiro caso relatado por J. Jansen teve ampla repercussão global e se refere ao primeiro transplante de coração na história, realizado pelo cirurgião sul-africano Dr. Christiaan Barnard em 1967 na África do Sul. Barnard retirou o coração de uma vítima de acidente (que estava quase morta) para transplantá-lo em outra pessoa que necessitava da substituição cardíaca. Entretanto, devemos nos questionar: como ele determinou que o óbito havia ocorrido? Naquela época, não existia uma definição científica precisa do que era morte encefálica.

Esse tema gerou debates profundos na faculdade de medicina de Harvard, uma vez que havia um grande interesse em realizar transplantes desse tipo. Como resultado, dois anos após o primeiro transplante cardíaco, estabeleceram-se os critérios para identificar a morte encefálica, a fim de permitir os procedimentos. Vejam como era socialmente relevante refletir a respeito de perguntas e problemas de difícil resposta.

É importante destacar que todos os casos citados por Jonsen ocorreram após um período de grande atrocidade na história da humanidade, durante a Segunda Guerra Mundial e a disseminação do nazismo, inclusive por parte da comunidade médica. Vale ressaltar que diversos profissionais da saúde  que apoiaram e auxiliaram no desenvolvimento das práticas nazistas foram formados nas melhores faculdades da Europa. Além disso, os cientistas da época já tinham conhecimento das terríveis “experiências” realizadas nas vítimas do regime.

A bioética surge como uma resposta para evitar esse tipo de ação e renovar os valores dos direitos humanos. Conforme observado por Hellegers, é crucial dar maior atenção às questões biomédicas sob a perspectiva da ética filosófica ocidental e dos dilemas do cotidiano, como a morte, interrupção da gestação, transplantes, etc. Essa reflexão seria conduzida por meio da linguagem filosófica tradicional em um contexto institucional para evitar que os médicos ajam baseados unicamente em seus próprios critérios éticos. Na minha opinião, a ética é o comportamento considerado correto, enquanto a moral refere-se ao conjunto de valores estabelecidos socialmente.

Essa pergunta é verdadeiramente relevante, pois evidencia que todos nós nos deparamos com situações que pensávamos não poderiam se repetir. Portanto, não é apenas o progresso tecnológico que influencia o avanço da ciência, mas também a atitude dos profissionais desempenha um papel fundamental.

Existem diversos outros casos que também merecem ser lembrados. Por exemplo, houve uma pesquisa sobre a evolução natural da sífilis não tratada realizada na cidade de Tuskegee, no Alabama, envolvendo uma comunidade extremamente desfavorecida a partir de 1932. Nesse cenário, o governo dos Estados Unidos conduziu um estudo sobre a progressão geracional da doença no grupo, que era majoritariamente composto por pessoas negras. Para incentivar a participação, ofereceram um pequeno auxílio financeiro e se comprometeram a cobrir os custos dos funerais na região. Os participantes nunca foram informados sobre o objetido da pesquisa, ou mesmo dos riscos que corriam. Embora a penicilina tenha surgido em 1946, eles nunca foram tratados e a pesquisa continuou. Foi apenas em 1972 que o caso veio a público por meio da imprensa. E este fato passou exercer pressão no Congresso dos EUA que em 1974 criou uma Comissão Nacional para a definição de parâmetros de ética em pesquisa. Somente nos governos de Bill Clinton e Barack Obama é que o país pediu desculpas e concedeu indenizações às vítimas relacionadas ao estudo.

O emblemático caso de Henrietta Lacks

Existem muitos outros incidentes semelhantes, como é o caso das células de Henrietta Lacks, que até mesmo viraram tema de um livro e um documentário intrigante. Lacks sofria de câncer e suas células, consideradas robustas, foram coletadas e mantidas por um cientista sem o seu consentimento. No entanto, até hoje, esse material é utilizado em pesquisas. Somente em agosto de 2023 a família de Henrietta chegou  a um acordo com o laboratório e seus descendentes receberam compensações pela utilização das células que tiveram um impacto significativo na história e contribuíram para a cura de milhares de pessoas.

Esses casos revelam que a bioética emergiu para suscitar discussões sobre integridade, honestidade, compreensão, cuidado e sensibilidade cultural na condução da relação médico-paciente. Assim como em diversas áreas do conhecimento, há diversas interpretações e abordagens sobre como deve ser o comportamento bioético.

Os princípios da bioética

Uma das escolas bioéticas mais conhecidas e que se propõe pragmática é o principialismo, que foi sistematizado no livro Principles of Biomedical Ethics de Tom Beauchamp e James Childress. Essa obra também explora os quatro pilares fundamentais da disciplina: i) autonomia; iii) beneficência; iii) não-maleficência; e iv) justiça. Estes são os alicerces orientadores que devem ser considerados em todas as práticas médicas voltadas para fornecer um cuidado singular e adequado ao paciente. 

Desse modo, o princípio da autonomia se revela como a capacidade do indivíduo de agir de acordo com sua própria vontade. A verdadeira autonomia consiste em proporcionar as bases e o suporte para que o paciente tome suas próprias decisões e participe do tratamento de forma livre de coerção e influência. 

A beneficência visa promover o bem-estar do paciente, enquanto a não-maleficência enfatiza a importância de evitar danos. Para muitos, este o princípio mais significativo(o da não-maleficência), vez que é uma obrigação de extrema relevância, especialmente no campo da saúde.Outro princípio crucial é o da justiça, relacionado ao compromisso com a distribuição equitativa de benefícios, riscos e custos, alocando de maneira coerente dos recursos na área de saúde. 

Assim, no âmago de tudo isso, reside a ideia de que os recursos de saúde são limitados e necessitam de escolhas. Daí surgem muitas discussões bioéticas, como quando sistemas de saúde pública adquirem medicamentos a preços exorbitantes para tratar doenças raras. 

Juntos, esses princípios orientam decisões éticas em medicina e pesquisa, promovendo a dignidade e os direitos dos indivíduos. O  “principialismo” – essa teoria embasada nos quatro pilares – é objeto de muitas polêmicas. Ele é amplamente debatido e, frequentemente, alvo de críticas por outras teorias igualmente relevantes, como a bioética de inspiração feminista e o utilitarismo.

INB: Qual é a importância da bioética para o profissional do Direito?

Mário: A importância é extremamente significativa. Vivemos um momento histórico e social complexo, no qual os desafios são cada vez mais exigentes, seja diante das implicações da inteligência artificial ou das questões de verdade e disseminação de informações. A bioética possui um elemento de relevância crucial, muitas vezes erroneamente julgada como dogmática. No entanto, essa impressão é enganosa, uma vez que a disciplina é profundamente propedêutica. Ou seja, ela pode ser utilizada como uma ferramenta de compreensão aparentemente dogmática, mas é essencialmente interpretativa e estimula o raciocínio, o pensamento crítico e o diálogo. O direito segue uma lógica semelhante à da dogmática.

O Direito e a bioética enquanto instrumentos

Como professor de Filosofia do Direito, tenho observado o fenômeno jurídico como uma ferramenta de transformação, regulação e emancipação, que proporciona estabilidade, segurança e mudança. Para mim, a bioética também é um instrumento: assim como um médico utiliza um estetoscópio, um profissional de bioética necessita de recursos efetivos para discussão e reflexão.

A importância se intensifica ainda mais porque os profissionais do Direito precisam participar do diálogo bioético. A bioética não está isolada das outras áreas do conhecimento e nem é formada apenas por um conjunto de valores da saúde. Limitar o diálogo bioético apenas entre médicos resultará em vieses e restrições da reflexão. Um comitê de bioética apropriado deve contar com profissionais de diversas especialidades, como terapia ocupacional, psicologia, nutrição, sociologia, filosofia, advocacia, teologia, entre outras. Essa diversidade é essencial para abordar os problemas complexos da sociedade.

Norberto Bobbio e a bioética

Ao mencionar aqueles que contribuíram para a compreensão dos valores regulatórios do Direito que repercutem na bioética, é crucial lembrar de Norberto Bobbio e sua obra A Era dos Direitos. Nesse livro, que explora as diversas dimensões do fenômeno jurídico, o autor também aborda uma quarta dimensão que envolve tecnologia, democracia e o biodireito, apesar de não apreciar totalmente essa expressão. Do meu ponto de vista, o Direito define os limites toleráveis na sociedade, sendo simultaneamente uma forma de institucionalização e um campo de estudo consolidado. 

Portanto, penso que a bioética, para um profissional do Direito, tem o dever de encontrar sua materialização na categoria dos direitos humanos. É ali que o operador compreenderá quando e como manejar os valores dos direitos humanos. 

INB: Como a bioética  e o biodireito contribuem para a promoção dos Direitos Humanos?

Mário: Acredito que uma abordagem contemporânea da bioética deve levar em consideração um dos desafios atuais que Flávia Piovesan identifica como enfrentados pelos direitos humanos. Refiro-me à discussão entre universalismo e relativismo cultural. 

Em última análise, a bioética busca um mínimo universal e, ao mesmo tempo, procura compreender até onde se pode avançar considerando as particularidades culturais. Ao lidar com a noção de bem e direito, ela redefine o significado da dignidade humana. Daí surge a pergunta: por que falar de direito e não simplesmente de direitos humanos?

Eu diria que o Direito sempre vai além, pois busca a criação de um conjunto normativo. Assim, se a normatização pretende regular relações entre seres humanos diante dos avanços científicos, especialmente os biológicos, sua importância é evidente. No entanto, há um notável descompasso temporal, pois o tempo necessário para a elaboração de normas e regulamentos não acompanha a velocidade e o progresso dos desenvolvimentos biológicos, e muito menos o avanço tecnológico. O Direito enfrenta o desafio da adaptação temporal. É nesse contexto que os direitos humanos surgem, trazendo para a bioética a preocupação de compreender o que efetivamente fundamenta a dignidade humana.

Outros princípios norteadores do biodireito

Na Enciclopédia Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), há um verbete sobre Biodireito que explora seus princípios orientadores. Entre eles, destaca-se o princípio da precaução, que é familiar para os especialistas em direito ambiental. Essa ideia enfatiza que é preferível ser cauteloso no momento apropriado do que estar completamente equivocado no final. Assim, a necessidade de precaução no cuidado transindividual e metaindividual é uma salvaguarda contra riscos potenciais que, com base no nosso atual nível de conhecimento, não podem ser identificados.

A precaução se torna ainda mais poderosa quando é coletivamente definida por meio do diálogo. Outro aspecto relevante é a autonomia privada, que defende a ideia de da permissão de tudo aquilo que não é proibido. A responsabilidade também merece destaque, pois na bioética é fundamental agir para que suas ações não comprometam a existência de uma vida humana autêntica. Por fim, destaca-se o princípio da dignidade da pessoa humana, pois é um consenso que, mesmo diante das dificuldades, a pessoa deve ser respeitada em sua universalidade e abstração.

O biodireito não tem como objetivo exercer uma função repressiva, pois sua principal preocupação é estabelecer limites éticos. Portanto, seu valor principal não está fortemente conectado e consciente dos parâmetros que regem o direito positivo. Sua natureza, na verdade, está intrinsecamente ligada aos direitos humanos. 

O Direito e a bioética

Para mim, a relação entre bioética e Direito é fundamental. A bioética não pode ser plenamente compreendida sem respeitar o que o Direito tem de mais sólido: sua estrutura normativa e autoridade. Ela precisa reconhecer a existência desses limites concretos e respeitá-los. Contudo, também existe uma relação de troca essencial na evolução da bioética, pois ela é uma força criativa tanto para o biodireito quanto para o Direito em si. 

De fato, a bioética se torna uma fonte de legislação pois revela-se como uma ferramenta essencial para adaptar as leis às necessidades da sociedade contemporânea. Por outro lado, o Direito é um pilar fundamental e um limite crucial no qual a bioética deve se ancorar. Há teóricos no campo que propõem metodologias para a tomada de decisões, como Diego Gracia, um médico filósofo espanhol que desenvolveu o método deliberativo. Segundo o autor, um dos requisitos para a tomada de decisão é verificar se a escolha desejada é lícita. Por exemplo, é legítimo debater a possibilidade de eutanásia no Brasil? Uma vez que essa prática é proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro, sabemos que não é possível. No entanto, uma situação diferente ocorre na Espanha, onde é permitido adotar tal conduta para lidar com a terminalidade da vida.

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