O autoritarismo é um fenômeno que se manifesta em diversos momentos da história da humanidade. Contudo, em cada uma das épocas que se apresenta, as características do autoritarismo são apresentadas de formas distintas. Atualmente, diversos intelectuais têm se dedicado a estudar os processos e elementos que caracterizam os levantes de líderes autoritários. A partir de perspectivas distintas, as conclusões que chegam são diferentes umas das outras.
O professor Pedro Estevam Alves Pinto Serrano é uma referência importante no estudo desse tema e a categoria do Autoritarismo Líquido, por ele utilizada, é uma abordagem inovadora. Por essa razão, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com o professor Pedro a respeito dos significados do Autoritarismo Líquido, bem como a sua importância na ampliação do horizonte de pesquisas.
Autoritarismo líquido no século XX
INB: No século XX, as contribuições do filósofo Zygmunt Bauman são notórias. Não à toa, a utilização da categoria “liquidez”, inventada por ele, é utilizada para compreender diversos fenômenos. Qual é a importância deste referencial teórico para o diagnóstico dos desafios contemporâneos?
Pedro Serrano: Eu creio que o Autoritarismo Líquido é uma categoria ultra relevante. Eu gosto muito do pensamento de Bauman, mas quando utilizo a expressão Autoritarismo Líquido é mais um empréstimo, uma espécie de figura de linguagem, do que propriamente a utilização do conceito “liquidez” formulado por ele. Sou o responsável por utilizar pela primeira vez a expressão Autoritarismo Líquido mas não sou o único que trabalha com essa categoria. No grupo de estudo Sistema de Justiça e Estado de Exceção, o pesquisador Luis Manuel Fonseca Pires, assim como diversos doutorandos e mestrandos, também se valem do “Autoritarismo Líquido”.
Contudo, o sentido que dou para a palavra “líquido” está relacionado com algo fractal e fragmentário. Isto é, atualmente não há mais um autoritarismo que siga os mesmos parâmetros do autoritarismo do século XX. Neste momento havia ditaduras, bonapartismos, a ascendência e consolidação do nazifascismo. Ou seja, o estado de exceção se manifestava por governos de exceção. Agora, o Estado de Exceção se manifesta por medidas de exceção fragmentárias no interior do sistema.
Cheguei à essa conclusão a partir da leitura de textos produzidos por diversos autores, inclusive Norberto Bobbio. Quando fiz o meu primeiro pós-doutorado no tema, o meu orientador, um pensador conservador português interessantíssimo, fez a seguinte observação: “Pedro parte de categorias de Norberto Bobbio e não de categorias marxianas”. Isso é real. Inclusive, um dos trabalhos que iniciou minha reflexão há muitos anos atrás foi o Contra os Novos Despotismos: escritos sobre o berlusconismo – fui o primeiro no Brasil a trazer o tema -, quando essa obra era apenas um conjunto de artigos que ainda não haviam sido editados em um livro. Outro trabalho que eu tive acesso, ainda em forma de artigos, foi Os poderes Selvagens: a crise da democracia italiana de Luigi Ferrajoli. É interessante como ambos os autores identificaram uma nova forma de autoritarismo crescendo na Itália, embora Bobbio caracterize o fenômeno como novos despotismos e Ferrajoli como poderes selvagens ou processo desconstituinte. Também é notável como Bobbio entendia o berlusconismo como uma experiência universalizada, não restrita ao contexto italiano.
Também fui muito influenciado pelo pensamento de Giorgio Agamben, um outro autor italiano que escreveu sobre Estado de Exceção. Pensadores posteriores como Marie Goupy e Carpentier foram outros intelectuais que me impactaram. Posteriormente aos meus primeiros estudos, tive contato com a obra de Gunther Frankenberg, professor de Direito Público, Filosofia do Direito e Direito Comparado na Universidade Johann Wolfgang Goethe em Frankfurt. Um ponto de destaque em suas reflexões consiste em tratar a exceção como técnica, o que eu acho muito intrigante. Ronald Dworkin também observa esse fenômeno em seu trabalho, Is Democracy possible here?, no qual o conceito utilizado é o de perda do common ground.
Um fato curioso é que o meu primeiro artigo sobre “Autoritarismo Líquido” é de 2006 e naquela época Dworkin publicou Is Democracy possible here?”. Vários juristas e filósofos políticos observavam um fenômeno que resultaria em uma possível crise da democracia constitucional no pós-guerra. Este é o elemento jurídico mais relevante: uma crise na democracia constitucional, uma crise nos direitos humanos, etc.
Para aprofundar mais o marco teórico, gostaria de citar Ernst Fraenkel. Este é o autor do melhor livro que eu conheço que discute, no plano instrumental da teoria do estado e da teoria do direito, como eram as ditaduras e regimes autoritários no século XX. Trata-se do livro The Dual State: A Contribution to the Theory of Dictatorship uma contribuição à sua teoria das ditaduras, em que Fraenkel demonstra como há uma tendência de achar que as ditaduras são revivals dos Estados absolutistas ou de polícia. Ele discute como essa tendência é, na verdade, fruto de um equívoco. Existem autores do campo da teoria geral do Estado e da teoria do direito que tratam as ditaduras como estado de polícia, pura e simplesmente. Na realidade, não é assim.
O Estado absolutista se caracterizava pela total anomia, pela ausência de norma reguladora do exercício do poder político. Talvez essa seja uma definição possível, nos limites de uma perspectiva liberal, do que é autoritarismo na modernidade. Isso porque, o autoritarismo opera na lógica de sobrepor o poder político aos direitos. Em contrapartida, a noção de que os direitos devem ser superiores ao poder soberano está presente na escola ibérica da paz, no começo do século XVI, no pensamento dos huguenotes franceses – depois, objeto de consolidação por John Locke – no decorrer do século XVI, nas guerras religiosas quando praticamente lançava-se a ideia de constituição e constitucionalismo.
Nesse contexto, surge uma definição válida até hoje, que também é adotada por Bobbio em seus trabalhos sobre política: autoritário é o regime no qual o poder político se sobrepõe aos direitos. No entanto, quando as ditaduras começaram a surgir no século XX, ocorreu uma espécie de revival desse mecanismo de poder. No plano instrumental não foi assim e é isso que Fraenkel esclarece. No momento pós revoluções liberais, os mecanismos autoritários são mais complexos. Nesse contexto, o autoritarismo se caracteriza como um Estado duplo. Há também um Estado que não é anômico e sim normativo, essencial para a manutenção e reprodução do capitalismo e das relações econômicas. Por exemplo, este Estado regula as relações de direito civil, as relações comerciais, as relações de família, o direito penal comum que protege a propriedade e a liberdade, etc. Liberdade e segurança no sentido físico. Em todas as ditaduras do século XX, desde o nazifascismo até a ditadura militar brasileira, este mesmo Estado esteve presente.
É notável como todas essas ditaduras tinham a característica de ter um Estado normativo que convivia com o que Fraenkel chama de um Estado de prerrogativa. Contudo, eu prefiro utilizar a tradição jurídica europeia e denominar esse quadro como Estado de exceção, que convive em diferentes campos – como o do direito público, dos direitos humanos, da constituição e da instrumentalização dos direitos fundamentais – com uma suspensão do direito e dos direitos. Assim cria-se uma zona de anomia. Inclusive esse é um déficit, ao meu ver, na análise de Agamben. Ele não alcança essa complexidade instrumental do estado de exceção. O estado de exceção não é mera anomia, ele é convivência de um Estado normativo com anomia.
INB: É como se houvesse uma simultaneidade, não é?
Pedro Serrano: Exatamente. E isso é um elemento importante, entendermos o porquê temos esse autoritarismo hoje em dia. Mas de fato, nota-se que havia uma anomia declarada. Um exemplo ocorre na ascensão do nazismo. O Estado de exceção é declarado primeiro por Hitler. Mas logo depois o Parlamento aprova a Lei de Concessão de Plenos Poderes de 1933 que efetivamente instaura a ditadura hitlerista. No Brasil há o caso emblemático da ditadura militar, com a edição dos Atos Institucionais AI-1, AI-2, AI-3, AI-4, AI-5. Isso demonstra que havia uma declaração formal da suspensão da constituição e dos direitos.
A presença dessas duas características – a duplicidade/convivência e a declaração – pode ser observada nas ditaduras do século XX. Porém, quando iniciei minhas pesquisas, comecei a observar que essa declaração não havia mais na atualidade, ainda que o autoritarismo estivesse presente. E ele está presente no interior do regime democrático. No plano instrumental, se manifesta por meio de medidas de exceção e não por meio de um governo de exceção. É por essa razão que digo que o “Autoritarismo Líquido” é fragmentário: não há mais concentração, não há mais a declaração de uma suspensão de direitos da Constituição, não há mais a figura do ditador e a figura da ditadura, embora a nova forma de autoritarismo seja tão nefasta quanto a que existia no século XX.
Esse autoritarismo hoje opera por uma suspensão de direitos de forma muito mais cirúrgica, eficiente e dirigida. O caso Lula é um grande exemplo, pois houve um direcionamento da suspensão de direitos ao líder político da esquerda brasileira, impossibilitando uma eleição realmente livre em 2018. Na Hungria, na Turquia e em todos os lugares que essa forma de autoritarismo líquido se apresentou, prevalece essa característica – a produção cada vez mais intensa de medidas de exceção que vão erodindo os direitos, a Constituição e a democracia. Mas não é uma suspensão direta como havia nos governos de exceção. É uma erosão paulatina.
O autoritarismo líquido na atualidade
INB: É possível identificar em grande parte da literatura nacional e internacional esforços para caracterizar o autoritarismo nos tempos atuais. Nesse sentido, ele têm comumente aparecido sobre a égide da opacidade e da camuflagem, como se fosse uma espécie de autoritarismo velado e menos explícito. O senhor considera esse raciocínio apto a descrever a situação política brasileira dos últimos anos?
Pedro Serrano: Eu acho que sim. Os graus de intensidade são diversos, uma vez que a democracia tem graus diferentes de intensidade em cada país que utiliza de seu sistema. Isso é interessante quando utilizamos a categoria do Autoritarismo Líquido, pois uma das consequências da liquidez é justamente a modificação rápida e intensa do estado de coisas. A figura do soberano e do inimigo mudam com facilidade e rapidez.
Como disse anteriormente, trata-se de uma prática muito mais cirúrgica; não há uma suspensão geral de direitos de toda sociedade. Suspende-se o direito daquele indivíduo ou grupo tido como inconveniente em determinadas circunstâncias. Às vezes, esses grupos nem são inconvenientes, mas tal prática é útil para estabelecer a ideia autoritária do “inimigo comum”.
A opacidade a que você se refere realmente existe, mas eu prefiro chamar de liquidez. Porque ela sempre está no plano instrumental e o que me interessa é o plano instrumental, como a coisa funciona. Às vezes o mesmo órgão que produz a medida de exceção também pode produzir, na semana seguinte, uma medida democrática. Isso mostra como as medidas de exceção convivem no interior da democracia. Em um país como o Brasil, houveram certos momentos em que tinha-se uma produção intensa de medidas de exceção, o que leva a um governo mais autoritário do que outros modelos de autoritarismo líquido ao redor do mundo. Porém, em outros momentos isso não ocorreu. É por isso que é difícil utilizar essa figura fluída, que reconhece que o autoritarismo não é mais condensado.
Não é fácil classificar e apontar “aqui tem uma ditadura, aqui não”. Essa forma autoritária opera liquefazendo as fronteiras entre o que é democracia e o que é ditadura. Existem outros nomes para esse fenômeno que eu não adotei, mas eu podia ter adotado. Um exemplo é o conceito de democracia iliberal, mas para mim isso precisa ser problematizado. Este é um termo meio contraditório e que dialoga pouco com a teoria da tradição do direito oriunda da europa continental, que mais nos influencia. Por isso, achei que dialogar com a tradição do Estado de exceção e observar as suas mudanças no século XXI era mais interessante. Chamar de Autoritarismo Líquido é uma consequência desse processo. Mas o fato é que o nome não é muito relevante, podemos até chamar de autoritarismo fragmentário.
Também seria possível dar outros nomes. Ainda assim, não uso a categoria bonapartista. Marx talvez tenha sido o primeiro a identificar o Estado de exceção na modernidade, embora não utilize a palavra, o conceito. É evidente que há um diálogo com ele, mas não se trata de um pensamento marxista ou marxiano. Então usar a categoria do bonapartismo não seria adequado. Até porque eu acho que é possível haver Autoritarismo Líquido de esquerda, como eu classifico a Venezuela, por exemplo.
Comunicação, tecnologia e tendências autoritárias
INB: A sociedade hoje é atravessada por novas tecnologias de comunicação em massa. Esse fenômeno coexiste com o aumento de tendências autoritárias. Na sua opinião, qual é a relação do autoritarismo líquido com o surgimento de novas tecnologias?
Pedro Serrano: Eu ainda não tenho um orientando que tope investigar essa questão, sabe? É através dos nossos alunos que conhecemos as novidades e na orientação acabamos aprendendo com eles. Mas eu posso dizer alguns pontos que refleti sobre isso, embora sejam genéricos e não tenham sido objeto de um estudo sistematizado.
Eu diria que toda a forma de existência humana possui linguagem. Nesse sentido é sempre possível relacionar uma forma política à linguagem que ela pertence e as suas características. Veja como as redes sociais, que na minha opinião compõem o maior fenômeno que temos de comunicação contemporânea, também têm uma característica fragmentária. As redes não são formas comunicativas que atingem um todo na sociedade, elas atingem bolhas, grupos sociais. Então, por exemplo, um Bolsonaro, um Hitler ou um general latino americano, normalmente eram acompanhados de dois ou três personagens que faziam parte da sua atuação comunicativa. O mais comum era comunicar um caráter dual, era ser situação e oposição e, ao mesmo tempo, transgressão. Então esse sujeito tanto era do sistema, uma vez que era o governante, quanto era anti-sistema. O discurso de Hitler, é exemplificativo: o seu inimigo era um mix de judeu, comunista, misturado com o capitalismo financeiro. Portanto ao mesmo tempo que era o sistema ele se direcionava contra o sistema.
Esses elementos estão presentes em Bolsonaro. Ele foi um governante, o maior líder do país, que proferia discursos anti sistema. Então, nessa dualidade sempre há a figura do populista autoritário. Mas hoje, o que a gente tem é uma fragmentação disso. A extrema direita se adaptou por suas próprias características muito facilmente a essa linguagem fragmentária das redes sociais. Se o sujeito pertence ao agrobusiness, ele se apresenta como empreendedor rural, um homem do campo que come pastel, churrasco e gosta de música sertaneja; se ele opera no mercado, ele se apresenta como alguém que defende o capitalismo liberal; se ele faz parte de algum grupo religioso, ele se apresenta como um sujeito que defende uma moralidade religiosa etc.
Eu acabo de ler um livro interesantíssimo do ativista antifascista Joe Mulhall chamado Tambores à distância: viagem ao centro da extrema direita mundial, no qual ele observa como a extrema direita se vale da mentira. Em uma democracia, se você quer saber se uma pessoa é comunista, basta perguntar que ele vai dizer “sou comunista”. Agora, se você quer saber se alguém é facista, a pessoa não vai dizer. A extrema direita utiliza mecanismos que trazem opacidade aos seus pontos de vista, principalmente quando é observada. Ela esconde seus pontos de vista e muitas vezes mente a respeito deles. Mulhall, ao observar essa característica, adota como método de pesquisa a infiltração. Ele se infiltra em grupos de extrema direita e narra essa experiência com uma linguagem mais jornalística do que academicista.
Assim, a extrema direita se adapta bem aos contextos criados pelas novas tecnologias. A função da mentira é reduzir os efeitos sociais da sua posição. Quem é de esquerda no Brasil ou progressista de centro-esquerda, sabe muito bem do que eu estou falando. Assumir posições sempre traz um ônus social. Se você for favorável ao governo Lula, há um ônus social, se você for bolsonarista, também. A internet possibilita reduzir esse ônus, porque permite uma atuação anônima, sem identidade estabelecida: as pessoas não estão presentes fisicamente. A linguagem fragmentária também contribui para a complexidade da situação.
Na internet é possível estabelecer mecanismos de comunicação fragmentários, que tornam mais difíceis a percepção dessa contradição. O militante de extrema direita, nesse ambiente, consegue mais opacidade, reduz ou até elimina o ônus social de assumir posições de ódio ou posições contrárias à qualquer visão humanista. Então, esses mecanismos de comunicação se adaptaram excepcionalmente bem à extrema direita, que sempre teve como característica a mentira no sentido amplo da palavra. Promove-se uma perda da referência comum. Para quem é humanista é mais difícil, porque produz-se um tipo de mensagem que é muito mais difícil de ser fragmentada. Assim, a expansão do autoritarismo líquido é facilitada, pois as formas de comunicação são líquidas e fragmentárias.