História e Autoritarismo por Lilia Moritz Schwarcz

História e autoritarismo com Lilia Schwarcz
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da  Universidade de São Paulo (USP). É autora de Retrato em branco e negro (1987. prêmio APCA), O espetáculo das raças (Companhia das Letras, 1993 e  Farrar Strauss & Giroux, 1999), Racismo no Brasil (Publifolha 2001), As barbas do Imperador (1998, Prêmio Jabuti/ Livro do Ano e New York, Farrar Strauss & Giroux, 2004), A longa viagem da biblioteca dos reis (2002),  O sol do Brasil (2008, Prêmio Jabuti categoria biografia 2009), Brasil: uma biografia (com Heloisa Murgel Starling; Companhia das Letras, 2015, indicado dentre os dez melhores livros prêmio Jabuti Ciências Sociais) e Lima Barreto triste visionário (São Paulo, Companhia das Letras, 2017). Coordenou, entre outros, o volume 4 da História da Vida Privada no Brasil (1998, Prêmio Jabuti categoria Ciências Humanas 1999) e a História do Brasil Nação, entre outros inúmeros trabalhos. 

Com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação, o debate sobre a insurgência de movimentos autoritários que atentam contra o estado de direito brasileiro tem ganhado corpo no país. No entanto, é preciso notar que esse movimento não ocorre de maneira isolada e, de fato, parece que diversos países do mundo enfrentam problemas semelhantes relacionados ao desenvolvimento do autoritarismo. Diante desse cenário, a pesquisadora Júlia Albergaria, do Instituto Norberto Bobbio, conversou com a professora  Lilia Moritz Schwarcz para compreender como a História se relaciona com esse processo. 

História e Autoritarismo: processos e estruturas sociais

INB: Quando falamos em autoritarismo, muitas vezes tendemos a associá-lo a figuras de líderes políticos. Como a História contribui para revelar processos e estruturas sociais mais complexas que servem de base para o autoritarismo?

Lilia:  Essa questão é excelente. Geralmente associamos o autoritarismo à figura dos líderes políticos. Mas a história contribui para revelar processos e estruturas sociais mais complexas que servem de base para o autoritarismo. Ainda assim, não é raro associá-lo a uma pessoa. É o que eu costumo chamar de personalismos, uma história mais positiva. Não por coincidência, a história do século XIX tinha a biografia como um dos gêneros literários mais valorizados. Assim, a história era produzida a partir das figuras individualizadas de personagens que eram, na maioria das vezes, homens brancos com atitudes e atividades bastante coloniais, no sentido de trabalharem sempre para o poder. 

Cada vez mais interessa a nós, historiadores e antropólogos, pensar em processos. Isso significa explicar o surgimento de um líder totalitário – muitas vezes de extrema direita e ditatorial – não apenas a partir da conjuntura política imediata, mas sim de estruturas mais antigas. Se lembrarmos da Alemanha de Adolf Hitler, por exemplo, o país tinha feito um pacto de guerra, conhecido como o Acordo de Versalhes.

Isso era algo muito vexaminoso para os alemães, que já cultivavam há muito tempo essa ideia do arianismo, a ideia de uma raça forte que tem tudo a ver com as teorias do supremacismo e do supremacismo branco. Então, é possível explicar  a emergência de Hitler a partir das condições estruturais da Alemanha no período do entre guerras. Tratava-se de um país falido, no qual ocorreram muitos processos interessantes, como a própria República de Weimar.

 É evidente que  o surgimento de um líder carismático importa entender, pois é ele quem vai galvanizar as atenções. Mas isso não é o único fator explicativo. Em maio de 2019 eu publiquei um livro chamado Sobre o autoritarismo brasileiro, no qual eu mencionei, de propósito, o nome de Jair Bolsonaro apenas uma vez.  Eu o mencionei apenas no momento em que discuto a prática do familismo na política brasileira, que significa o ato de indicar pessoas da mesma família para o governo. Ou seja, pensar no Estado como a casa própria.

Por que citei Jair Bolsonaro apenas uma vez? Na minha opnião ele é um sintoma e não a causa – ele é uma consequência da estrutura. Nesse livro eu pretendia trazer duas máximas: a primeira é que o nosso presente está cheio de passado; a segunda é que os brasileiros sempre foram autoritários, para a surpresa daqueles que, diante das eleições, notaram um presidente de perfil tão autoritário e retrógrado. 

Então eu acredito que a história nos ajuda a pensar não apenas no que muda, mas também nas permanências e constâncias. No caso brasileiro, ela ajuda a refletir sobre as consequências do Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão e tê-la feito de uma maneira tão conservadora, na medida em que haviam escravos por todo o território. Mais ainda, foi a última nação a ter abolido a escravidão e recebeu quase metade dos africanos e africanas que saíram forçosamente e foram sequestrados de seus países na África. Portanto, essa é uma condicionante importante. Uma outra condicionante é o fato de termos sido criados como uma colônia de exploração, colonizada por uma metrópole Além disso, havia uma população muito baixa que colonizou um território muito extenso (e mal sabiam disso). Com isso cria-se um problema: muita terra, poucas pessoas e necessidade de muita obediência. Então, o que significa a construção desses mandonismos locais, dessas estruturas oligárquicas e essa riqueza pautada na grande propriedade, na propriedade latifundiária? Não dá para dizer que o presente é um contínuo do passado. Mas é possível pensar que o passado nos legou estruturas muito fortes e que precisam ser avaliadas, analisadas e compreendidas  para que, também, possam ser superadas.

Análises de conjunturas políticas

INB: Atualmente, diversos diagnósticos políticos se valem dos conceitos de “Autoritarismo” e ” Populismo” para explicar a conjuntura nacional. Como a senhora observa os significados e relações entre tais conceitos?

Lilia:   O populismo é um fenômeno que ficou mais tradicionalmente conhecido na América do Sul entre as décadas de 1950 e 1960. Nesse período, observou-se o surgimento de líderes como Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón e tantos outros que tinham grande poder carismático e diziam governar em nome do povo. O populismo também se pautava na ideia de que esses líderes destacados performaram muito bem publicamente, pois sabiam acionar a eficácia política do poder simbólico. Isso significa que utilizavam muitos símbolos para inflamar o nacionalismo e o povo em torno deles. 

O populismo é uma estrutura que abole os partidos e esse é, justamente, o auge do personalismo. Os partidos passam a não ter grande significância porque orbitam em torno de uma pessoa, do líder acostumado a proclamar frases de efeito.  Nesse sentido, esse sujeito tende a resolver  problemas complicados, que  demandam respostas complexas,  com frases carregadas de carga emotiva e que, na verdade, simplificam as situações demasiadamente delicadas. Então, essa é uma característica importante.

Muitas vezes, embora não sempre, o populismo vincula-se aos governos autoritários. Isso porque o líder se considera acima do Estado, dos partidos e dos demais políticos. Tal situação dá a ele quilometragem e temperatura para querer não apenas permanecer acima, mas ser o Estado propriamente dito. Esta é a experiência nas Américas naquele contexto passado. Mas nós vimos crescer no mundo todo, a partir de 2016, o fenômeno do novo populismo. 

Estou falando de um contexto no qual há muita recessão, – inclusive recessão internacional – desemprego e desigualdade. O aguçamento da desigualdade pelo mundo afora é o berço para o surgimento de uma série de novos protagonistas masculinos. Os protagonistas a quem me refiro são, geralmente, homens brancos com perfil populista e que começaram a se utilizar de novas redes de comunicação. Aqui, eu me refiro às redes sociais. 

Se utilizarmos a figura de Donald Trump como exemplo, percebemos que ele se valeu das redes sociais para conseguir ser eleito presidente dos Estados Unidos. E as redes sociais são uma grande novidade para os historiadores. Mas isso também aconteceu no Brasil: Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente eleito pelas mídias.

Certamente, sua eleição foi um processo, uma estratégia que os políticos brasileiros mais tradicionais não notaram a tempo. Mas o fato é que Bolsonaro se utilizava de suas próprias mídias e por isso não precisava mais do apoio da mídia tradicional e jornalística. Ele mesmo produzia suas próprias verdades. 

Portanto, se os populistas dos anos 1950 e 1960 também manipulam a realidade para facilitá-la e condicioná-la a favor deles mesmos, os novos populistas digitais vivem da produção de Fake News. Isto é, vivem de verdades paralelas que não eram, de forma alguma, verdades. Há um grande vínculo entre esses conceitos, mas é preciso defini-los temporalmente para não cair em anacronismos vazios. Nenhum conceito sobrevive da mesma maneira. Em diversos momentos, os conceitos são criados e recriados para ganhar novos significados. Se a cultura é pública, os seus significados estão sempre deslizando e estão sempre em perigo. 

História e Autoritarismo: novas tecnologias e crises econômicas

INB: Hoje em dia o autoritarismo voltou a ser um tema do momento e, usualmente, é analisado em um contexto de novas tecnologias e crises econômicas. Como o estudo da história brasileira influencia a avaliação desse diagnóstico? 

Lilia: A questão das novas tecnologias é um assunto que eu penso já ter explorado anteriormente. Ela tem a ver com a forma com a qual  governos  venceram as eleições com base nas redes sociais e na proliferação de fake news. Mas eu gostaria de indicar que os populismos têm muitos aspectos em comum  com os populismos digitais contemporâneos. No entanto, eles têm processos que precisam ser distinguidos. É importante lembrar que cada país é, em si, um continente – essa é uma expressão que eu acabo usando muitas vezes. 

No caso brasileiro, é preciso pensar primeiro qual é a penetração do populismo em um país profundamente marcado pela desigualdade e por uma população muito iletrada. Existem uma série de pesquisas que demonstram como o iletramento é favorável à adoção de medidas radicais, bem como a recepção de líderes que prometem aquilo que não têm condições de entregar. Assim, a pauta da  informação – da boa informação, da informação consistente e embasada – é fundamental. Estes são traços fundamentais para o combate ao autoritarismo. 

Contudo, há que se pensar também no fator religioso, muito presente no Brasil. Mais especificamente na influência das Igrejas evangélicas.  Mas de maneira nenhuma me refiro a todas as Igrejas evangélicas. O meu ponto é: de que maneira elas aderem ao projeto autoritário de Jair Bolsonaro? Repito: não são todas as Igrejas Evangélicas. Vamos falar aqui da Universal, por exemplo, que viceja por sobre uma população bastante pobre, muitas vezes iletrada ou com baixo nível de letramento. 

Um outro elemento para se pensar é a questão das Forças Armadas. Esta é uma especificidade que nós comparamos mais uma vez com os Estados Unidos. Jair Bolsonaro, ele próprio um militar de reserva com uma carreira sem sucesso – é bom que isso fique claro – exerceu um governo no qual fez uma aliança. Nós nunca tivemos ministérios tão cheios de militares. Os ministérios de Bolsonaro contaram com mais militares do que os ministérios da ditadura militar. 

Também sabemos agora que Bolsonaro empregou 6000 militares em postos da sociedade civil e que há uma crescente politização das Forças Armadas. Elas fazem uma má leitura, uma leitura intelectualmente comprometidada Constituição de 1988. Elas se arvoram do direito de serem uma espécie de poder moderador da República, mas os militares  nunca tiveram esse poder. Esse discurso militar é um discurso golpista e se junta ao perfil autoritário de Bolsonaro. 

Um outro elemento importante e que é bastante comum a esses populismos é a crise econômica. Nós sabemos que,  em momentos de recessão, os nervos ficam à flor da pele, se agudizam as expressões e se agudizam as reações. E esse foi o caso do surgimento de tais líderes populistas, que navegaram nessa onda de recessão econômica e criaram bodes expiatórios. Quem seriam os culpados? Muitas vezes, culpabilizam novos agentes sociais como mulheres, negros, indígenas, a população LGBTQIA+, etc. cobrando-os sobre a falta de empregos em razão das cotas. 

De um lado,  há uma manipulação do discurso a partir dos bodes expiatórios. Do outro lado, há construção de saídas milagrosas, o que sabemos não existir. Não é assim que se governa. Mas o populismo viceja neste discurso meio encantatório e milagroso.

Para mais entrevistas e debates, acesse a página de diálogos do Instituto Norberto Bobbio.