Theodor W. Adorno por Virgínia Helena Costa

Theodor W. Adorno por Virgina Helena Ferreira.
Virgínia Helena Ferreira da Costa é tradutora e pesquisadora. Pós-doutoranda em Filosofia pela  Universidade Federal do Espírito Santo e doutora em filosofia pela Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas relativas à psicanálise, filosofia, teorias feministas e Teoria Crítica. Organizou e traduziu, entre outros, o Livro Estudos sobre a personalidade autoritária de Theodor W. Adorno, publicado pela Editora Unesp.

A Estante INB é uma iniciativa que busca apresentar ao leitor explicações introdutórias e indicações de referências bibliográficas sobre autores e temas de interesse nacional.

Theodor W. Adorno foi um pensador cuja formação ampla lhe permitiu estudar inúmeros temas. Ele é conhecido por suas contribuições nas áreas de sociologia, filosofia, crítica musical, estética, etc. Nascido na cidade de Frankfurt, na Alemanha em 1903, é considerado um precursor da primeira geração da escola sociológica de Frankfurt. 

Os textos adornianos despertaram inúmeras polêmicas e por vezes são compreendidos de maneira equivocada por muitos de seus leitores. Buscando aprofundar o entendimento de suas ideias, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou com a pesquisadora Virgínia Helena Ferreira da Costa no dia 6 de fevereiro de 2023. 

Virgínia Helena Ferreira da Costa é tradutora e pesquisadora. Pós-doutoranda em Filosofia pela  Universidade Federal do Espírito Santo e doutora em filosofia pela Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas relativas à psicanálise, filosofia, teorias feministas e Teoria Crítica. Organizou e traduziu, entre outros, o Livro Estudos sobre a personalidade autoritária de Theodor W. Adorno, publicado pela Editora Unesp.

Theodor W. Adorno e a atualidade do pensamento

INB: Theodor W. Adorno é uma referência comumente lembrada nos estudos sobre comunicação de massa, um tema amplamente debatido na contemporaneidade. Quais outros temas adornianos são atuais para a senhora?

Virgínia: Em primeiro lugar, agradeço ao Instituto Norberto Bobbio pelo convite. Eu gosto muito de falar sobre Adorno para um público não especializado. Eu venho da filosofia, e discutir suas ideias apenas entre filósofos e especialistas da academia passa a ideia de que seu pensamento é inacessível para o público em geral. E é verdade, seus textos são mesmo difíceis. Por isso, uma das grandes questões que levo a sério neste autor é a tentativa de traduzi-lo para uma forma mais palpável de compreensão. 

No geral, eu acredito que Adorno é um excelente intérprete da modernidade. Mas o que isso significa? Quer dizer que ele compreende aspectos da cultura para além do âmbito das artes, música ou cinema. Para ele a cultura é, de certa maneira, a vivência formativa do ser humano em sociedade. Assim, na filosofia costumamos nos referir à possibilidade de modos de pensar, que é a epistemologia. Adorno sempre reflete sobre o modo de se pensar e como podemos compreender e construir uma visão de mundo. Isto é, ele aborda o formato do nosso pensamento  – ou seja, como pensamos nós mesmos, os outros e como nos portamos socialmente – e os conteúdos, imagens e valores preponderantes em nossa sociedade.

Contribuições de Theodor W. Adorno

É possível dizer que ele trata de dois assuntos fundamentais: a cultura de forma ampla e o pensamento social. Ele relaciona constantemente o indivíduo à sociedade. Adorno contribui para temas filosóficos, econômicos, etc. É, de fato, uma gama muito grande de temáticas abordadas por ele. 

Um exemplo de reflexões que podemos realizar a partir de suas ideias é sobre o que forma um líder político. Ou, o que forma massas de pessoas seguidoras de um líder? E ainda, por que o jornal é escrito do modo que ele é escrito? Qual é o significado da psicanálise para além do próprio consultório ou da teoria psicanalítica? Como age o nosso consciente e inconsciente diante das imposições da sociedade? Tudo isso está imbricado no pensamento amplo de Adorno.

Dessa forma, para entender um pouco melhor sobre cultura e a sua descartabilidade, leia o artigo completo de Considerações sobre a cultura descartável com Isleide Arruda Fontenelle.

Theodor W. Adorno e as estruturas fundamentais do capital

INB: Costuma-se dizer que Adorno é um intelectual conhecido por analisar fenômenos do cotidiano aparentemente simples e desprovidos de conteúdo social, como os sinais de pontuação, os signos e o riso. Qual é a importância dessa sociologia do concreto, cujo objeto são as “pequenas coisas”? De que maneira o método da crítica imanente  revela,  nos objetos mais banais e cotidianos, as estruturas fundamentais do capital? 

Virgínia: Para responder a essa questão, vou tratar de dois conceitos que você mencionou na sua pergunta: o método e a imanência. É importante tentar traduzir isso. Inicialmente, cabe ressaltar que Adorno é um filósofo anti metodológico, ele é completamente contrário à ideia de método. 

Por que isso acontece? Principalmente em razão de sua briga com os positivistas, teóricos anteriores ao Adorno. Para eles, antes de se pensar, já havia uma estrutura metódica de se conhecer pronta. Essa é a noção do método que é aplicável ao objeto de conhecimento. Enquanto autor da modernidade, Adorno questiona justamente estes aspectos lógicos e formais envolvidos no conhecimento moderno. Isto é, ele contesta as noções implicadas no conhecimento do sujeito e objeto – naquilo que somos e naquilo que conhecemos. 

Sujeito conhecedor e sujeito empírico em Theodor W. Adorno

Quando Adorno critica Karl Popper, ele afirma que não há possibilidade de nos desvincularmos eticamente daquilo que construímos e estudamos. Isso porque  nós também somos socialmente construídos, por isso não existe conhecimento isento de valores. É considerando o sujeito que conhece como empírico e localizado em um contexto que isso influenciará na compreensão do objeto.

Atualmente, existem muitas autoras que falam de conhecimentos localizáveis que, de uma certa forma, vinculam a corporalidade do sujeito na sua aproximação e experiência com o objeto. Um exemplo é Donna Haraway. Mas existem vários outros autores que desconstroem a ideia de um conhecimento supostamente isento de valores e universal. Nesse sentido, eles criticam a compreensão do pensamento abstrato como algo desvinculado à realidade e neutro em relação a ela.

Para Adorno, o sujeito parte daquilo que conhece, de quem ele é, de sua vinculação com a sociedade e com o próprio objeto. É isso que Adorno chama de imanência, em oposição a uma suposta abstração impossível de se alcançar. Portanto, esse processo será dado de uma forma específica, conhecida apenas daquele jeito, entre aquele sujeito e aquele objeto. Não existe um método de conhecimento anterior ao objeto, mas cada conhecimento se desenvolve de forma específica em relação ao próprio sujeito e ao objeto. É daí que vem o interesse de Adorno pelas “pequenas coisas”. No entanto, elas não são nada pequenas: são microcosmos ou espécies de modelos, como ele mesmo chama.

Nesse microcosmos e em cada objeto delimitado para conhecimento, há vários aspectos da sociedade. Um exemplo está nas colunas astrológicas publicadas no jornal. Ele escreveu textos abordando o assunto nos anos 1950 nos Estados Unidos. Nesses textos, o autor pressupõe quem está lendo e quem é o sujeito por trás de tais colunas. Os leitores são membros da classe média norte-americana recém inaugurada no pós guerra, moram em subúrbios e têm cor, classe e gêneros específicos. Nesse sentido, lembremos do retrato da mulher dona de casa que espera o marido quando ele sai para trabalhar em grandes centros comerciais. 

Nas colunas de astrologia, há uma visão de mundo que indica aos leitores quem eles deveriam ser ou quem eles deveriam querer ser e se espelhar. Adotando uma perspectiva brasileira, é como se fosse uma versão das novelas do Manoel Carlos: aquela Zona Sul carioca que é ideologicamente colocada como um padrão – de ser, de falar, de vestir e de consumir – mas, que corresponde à realidade de uma parcela muito pequena da população. Por mais ideológico que isso seja, é completamente distante da realidade social brasileira como um todo.

Existe uma gama de valores, comportamentos e pensamentos que estão por trás daquele suposto leitor. Essa perspectiva de uniformização proporcionada pela Indústria Cultural opera para atender interesses de lucro e tentar hierarquizar a sociedade a partir da propaganda ideológica. 

Autoritarismo e movimentos sociais da direita

INB: A relação entre autoritarismo, movimentos sociais de direita e técnica é explorada por Adorno em diversos momentos de sua trajetória. Qual é a atualidade e os limites desta reflexão? 

Virgínia: Para responder a essa pergunta, precisamos pensar em quem é o Adorno. Eu considero que a primeira geração de teóricos críticos da Escola de Frankfurt escreveu entre os anos 1920 e 1960, período no qual começaram a vivenciar os primeiros populismos de direita, próprios de sociedades de capitalismo avançado. É justamente por essa razão que é interessante voltar aos textos de tais pensadores. Hoje em dia, acessamos as ideias de autores importantes que se dedicam a estudar os populismos, pois esses teóricos da primeira geração frankfurtiana se depararam com massas conservadoras já naquela época. 

A partir do capitalismo avançado, que se desenvolveu não apenas daquele liberalismo menor (uso a palavra “menor” no sentido de amplitude), inicia-se a estratificação e burocratização do mando e obediência. Isso porque há um centro de produção consolidado e as indústrias ficam cada vez maiores. Surge a necessidade de impessoalizar as esferas de mando e obediência. O resultado? Simplesmente não é possível saber quem é o chefe. Tudo se torna mais massificado e abstrato na cadeia burocrática de poder. 

Na década de 1940, a sociedade estava sob a égide do capitalismo monopolista que começava a ter grandes trustes e empresas maiores. Embora este cenário também seja considerado capitalismo avançado, hoje este modo de produção se tornou financeirizado e neoliberal. E, no geral, o que acontece nessa época também acontecia há cem anos atrás: as visões de mundo, valores e hierarquização de pessoas, formação corporal e mental permanecem similares às do passado. E a situação geral de exploração prevalece, por mais que o capitalismo tenha mudado em diferentes questões históricas. 

Então, pensando na atualidade e nos limites do seu pensamento, o livro Estudos sobre a personalidade autoritária apresenta os discursos dos entrevistados, proferidos nos anos 1940 nos Estados Unidos, que informam uma realidade distinta da do Brasil. No entanto, apesar de ser de outra época, basta trocar o discurso feito contra o Franklin D. Roosevelt pelo feito contra o Lula para verificar que a ideologia de fundo é a mesma. É difícil olhar estes textos, escritos há oitenta, cem anos atrás e não sentir uma imobilidade histórica. É como se a situação não avançasse. 

As ideologias são recicladas, mas como isso continua? Como a mesma visão fantasiosa do comunismo e formação de quadrilhas, algo verdadeiramente purista e infantil que retoma a imagem do vilão onipotente, adquire a proporção de um esquema de fraude e perseguição pseudoparanóica tão grande? Como isso se mantém em um contexto amplo, que abarca diversos países e tempos históricos diferentes? Esse sistema social e econômico – o capitalismo avançado – aprimora a estrutura de exploração mantendo o mesmo princípio. É isso que une esses esquemas há mais de cem anos, cuja base exploradora é violenta, hierarquizadora e que não precisa, no fundo, nem reciclar as narrativas ideológicas.

As continuidades da relação entre autoritarismo, movimentos sociais de direita e técnicas de propaganda ideológica são, então, inúmeras. Contudo, eu observo dois limites importantes nesta atualização. Em primeiro lugar, hoje vivemos em uma época neoliberal, um cenário que altera certos mecanismos de exploração. De fato, o tipo de dominação capitalista não é mais a mesma, por mais que as finalidades permaneçam iguais. Hoje, a figura do self-made man, um empreendedor que não precisa mais do seu patrão para trabalhar, é ideologicamente predominante no mundo do trabalho.

Ao longo das décadas, foi possível perceber que a “autodominação” é muito mais bem sucedida do que culpar o chefe. Nesse sentido, elimina-se o intermediário e a produção de riqueza é transmitida diretamente para o capital. Esse processo muda o que eu chamo de tipo antropológico de pessoa. Antes do capitalismo monopolizado, havia uma massa de pessoas que simplesmente se adequavam. Mas o que acontece agora é que nós permanecemos igualmente adequados, porém passou a ser necessário adotar o auto-empreendedorismo que promove o destaque pessoal. É por essa razão que surge a necessidade de ser flexível, para sobreviver a vários empregos distintos. Com o lema da flexibilidade, a remuneração é cada vez menor. Mas o raciocínio coletivo se conforma com esse cenário. Afinal, o que se aparenta é que ganhamos dinheiro para nós mesmos e não para o outro. 

No entanto, este panorama é mentiroso. O valor é sempre transferido para o outro, por mais que ele seja menos localizável. São estes aspectos que precisam de ajustes e atualização no pensamento de Adorno. 

Um segundo limite que gostaria de apontar, diz respeito a quem era Adorno. Ele era um europeu, branco, cis, heterossexual, de classe média alta e judeu. Nota-se: apesar de branco, ele era judeu. E o fato de fazer parte de uma minoria na Europa e nos Estados Unidos faz muita diferença. Mas o fato de ele ser um judeu branco (e não mouro, por exemplo) o impediu de enfrentar certos problemas. Ou seja, apesar do seu ponto de vista extremamente crítico, ele não deixou de ter financiamento para suas pesquisas. Adorno não deixou de analisar, a partir de uma perspectiva  cultural, o cinema e a rádio. Inclusive, ele retornou diversas vezes aos Estados Unidos para continuar seus estudos. 

Por isso, do ponto de vista do colonizado brasileiro, Adorno é branco, apesar de judeu. Mas é importante nos perguntarmos: o que essa localização e corporificação sugere a ele? Em suas obras não há muitas referências e reflexões sobre as condições dos negros, indígenas ou até mesmo sobre a comunidade LGBTQIA+. Também não há quase nada sobre mulheres. 

É possível compreender que o pensamento de Adorno em si é pós-moderno, no sentido de criticar a modernidade. Por mais que ele nunca tenha deixado de ter ambições modernas, iluministas e racionais, ainda assim é um crítico da modernidade. Entretanto, ele é um crítico localizado na Europa e por isso seu pensamento não é descolonizador. Pessoas colonizadas por pensamentos europeus, como os dele, podem apresentar uma outra perspectiva da modernidade que é inacessível para Adorno. Para pensar este autor no contexto brasileiro, é necessário levar em conta uma série de aspectos importantes, como a nossa colonização extremamente escravocrata, que exterminou negros e indígenas. Além de nosso passado ditatorial recente. No Brasil, o valor do militarismo nacional é algo relevante. O tipo de ditadura que vivemos, e que toda a América Latina experienciou, foi bastante militarizada. Esse fenômeno não foi visto na Europa e nos Estados Unidos. Assim o pensamento dele precisa sofrer algumas modificações para se adequar ao nosso contexto nacional. 

O personagem autoritário em Theodor W. Adorno

INB: Em Estudos sobre a personalidade autoritária, publicado pela Editora Unesp, a categoria do “tipo autoritário” é uma ideia central do autor. De que modo essa categoria pode nos auxiliar a entender a força do autoritarismo na sociedade brasileira?

Virgínia:  Além das questões da ideologia e dos estereótipos que já citei anteriormente, autores da primeira geração da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, discutem a questão familiar. Isto cai como uma luva no Brasil, por mais que seja necessário fazer certos ajustes, e está presente no livro Estudos sobre a personalidade autoritária no momento em que  é abordado o tipo autoritário.

Neste livro, Adorno parte de uma perspectiva da psicologia social inspirada nas contribuições de Sigmund Freud, especialmente em suas obras mais ortodoxas. Isso quer dizer que a família é vista como o núcleo que vincula o indivíduo e a sociedade na primeira infância. É a família que forma os indivíduos e ela pode atuar contra ou a favor do autoritarismo.

Nesta obra, os pesquisadores partem do pressuposto de que o preconceito e o autoritarismo – ou o fascismo, no limite – são produzidos pelo capitalismo e pela economia. A pergunta é: por que algumas pessoas são mais e outras menos autoritárias? Do ponto de vista adorniano, o que está em jogo é uma disputa pela formação dos indivíduos. 

A figura autoritária

Havia, na época, uma moralidade familiar que perdia terreno para uma adequação excessiva ao social. O tipo autoritário retratado no livro é muito conservador, uma vez que ele era socialmente adaptável a um clima capitalista conservador que pretende manter o status quo. 

Acontece que cada vez mais nos adequamos justamente porque os nossos pais trabalham e passam mais tempo fora de casa. Por isso, os valores capitalistas ganham ideologicamente mais espaço, como por exemplo: hierarquização social, disputa, segregação de diferenças e interesses, etc. 

Portanto, ensina-se a não se julgar uma pessoa pelo que ela é, mas pelo o que ela pode fornecer. E com a ausência dos pais em casa, em razão da necessidade de maior tempo de trabalho, as crianças passam mais tempo no computador, na televisão, nas escolas e creches que aceitam bebês de quatro meses – porque este é o tempo da licença maternidade no nosso país. Ou seja, tudo aquilo que os pais ensinam à criança ganha uma preponderância menor diante dos colegas, das professoras, da TV etc.

É importante salientar que não é só sobre ensinar o que se fala, mas também como se age e como explicar algo que está certo ou errado. Mais especificamente, é sobre o que permite uma obediência, compreensão e questionamento de normas. Este formato de educação familiar está em disputa constante no capitalismo.

Mas, no ambiente social, não encontramos somente aspectos capitalistas dominadores: há também disputas pela inserção e reconhecimento democrático de grupos hegemonicamente excluídos. Por isso, evidentemente, essas afirmações devem ser compreendidas a partir de uma contextualização. 

No Brasil atual, por exemplo, o cenário muda: a figura da Damares Regina Alvares demonstra este tipo de coisa e não é à toa que ela foi alçada no governo Bolsonaro a um lugar de destaque. De fato, ela inaugurou uma Secretaria da Família e uma de suas grandes questões era um projeto de educação domiciliar em detrimento da escolar. Em um primeiro momento, podemos até pensar que isso parece positivo, porque de alguma maneira a educação infantil voltaria para o seio familiar. Contudo, não é esse o caso. 

O familismo nas entradas do público-privado

Existem autoras contemporâneas, como a norte-americana Wendy Brown, que pensam como historicamente a família passou de instituição de proteção moral anticapitalista para um agente perpetuador e promovedor do capitalismo. Assim, o capitalismo vai se expandindo para esferas que antes eram protegidas contra esse sistema. Um exemplo disso ocorreu com a redemocratização. Assim, ambientes sociais, em momentos de progressão democrática, mantinham a aparência de diminuição do autoritarismo. Mas o que Brown percebe é que, nesse período, os preconceitos e conservadorismos se retiraram da esfera pública e se alojaram nas esferas privadas. Quanto mais tradicional ideologicamente, mais a família contribui para a sobrevivência e perpetuação de autoritarismos.

Esse familismo privado se expande para a esfera pública na medida em que se consolida um ambiente social favorável, tal qual ocorreu com o governo Bolsonaro. Da tutela democrática, retira-se aquilo que deveria ser o ambiente escolar: um local que respeita a diversidade e socialização das crianças. Então a instituição escolar pode sim servir para ampliar os valores capitalistas, mas ela pode ser um fator importantíssimo para a manutenção de ambientes democráticos de convívio. A retirada deste elemento é acompanhada por um deslocamento das crianças para bolhas familiares patriarcais, tradicionais, nepotistas e que limitam a laicidade do Estado e a própria democracia.

 É justamente este familismo conservador, cristão, hétero e patriarcal que enfrentamos nos dias atuais. Portanto, existem vários modos de manifestação contemporânea do tipo autoritário previstos nos Estudos sobre a personalidade autoritária. Mas é necessário fazer pequenos ajustes, como mencionei anteriormente, para compreender o fenômeno no nosso país. Esses ingredientes escravagistas, genocidas e militaristas nacionais existem, mas não anulam a importância de voltar ao livro. Eles só mostram como aspectos levantados pelo livro e que permanecem vivos podem adquirir historicamente outros formatos e interações entre instituição a fim de se chegar ao mesmo objetivo: exploração e dominação. 

Leia esses e outros artigos na seção de Diálogos do INB.