A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou, no dia 26 de fevereiro de 2023, com a professora Mara sobre a relação entre Direito e Cinema.
Arte e representações jurídicas
INB: A representação jurídica na obra de arte é um tema pouco explorado nos cursos de direito no Brasil. Como a senhora avalia a importância do estudo do “direito no cinema” para a formação dos estudantes?
Mara: Essa é uma questão que aborda uma problemática metodológica presente nos cursos de Direito. No contexto brasileiro, uma das dificuldades enfrentadas pelos professores está relacionada à existência de dois diferentes enfoques narrativos que se entrelaçam.
Inicialmente, é possível estudar o universo jurídico a partir de uma perspectiva prática e predominante, conhecida como dogmática. Nesse tipo de estudo, desenvolvem-se linhas de raciocínio que se alinham a uma idealidade teórica. Por outro lado, há também uma abordagem crítica e mais ampla do Direito que não se restringe apenas ao âmbito operacional e prático.
Muitas vezes, os ideais presentes em uma perspectiva teórica dominante, prática e dogmática, não se concretizam efetivamente na realidade social, política e econômica. No entanto, explicar essa complexidade para um aluno do primeiro ano de graduação pode ser desafiador. Particularmente, tenho experiência em abordar essas questões com aqueles que iniciaram sua jornada de formação, mas reconheço a dificuldade de demonstrar que nem tudo o que é determinado pelas teorias práticas como ideal se concretiza de verdade.
Existe uma perspectiva tradicional da crítica do Direito que observa uma divisão entre a realidade e o que ela revela sobre o fenômeno jurídico a normativamente ideal. Inclusive, existem disciplinas extremamente relevantes voltadas para essa formação crítica logo no início do curso. Aliás, costumo dizer aos meus alunos que, ao exercer a prática jurídica, não é possível extrair o Direito da realidade sem levar em consideração todos os recortes estratégicos realizados.
O direito como fator principal da realidade
Dessa forma, o Direito continua integrado à realidade e é afetado pelas questões sociais, econômicas, políticas, bem como pelos grandes temas da justiça, da liberdade e do poder. Tais aspectos encontram-se exatamente na intersecção entre a idealidade normativa, o binômio da teoria/prática e uma visão crítica mais abrangente.
Desde o início da minha carreira, integrei as artes, ao ensino pedagógico do Direito, devido à sua ampla disponibilidade narrativa. O cinema possui uma qualidade extraordinária pois, diferentemente de outras formas de expressão artística, sua narrativa não é afetada quando reproduzida em série. Por exemplo, uma foto de uma pintura não é a pintura e o teatro não pode ser levado para dentro da sala de aula com facilidade. No entanto, eu consigo trazer o cinema para as aulas de um modo mais acessível.
O cinema poderia ser uma excelente ferramenta didática para superar essa barreira. Por meio de sua linguagem, que não se limita apenas ao aspecto visual, mas que carrega um relevante componente imagético, é possível abordar situações humanas concretas. Simbolicamente, o cinema pode tratar dos mesmos temas desenvolvidos pelas teorias mais abstratas. Dessa forma, ao utilizar o cinema como recurso pedagógico, mostro aos alunos como essa linguagem audiovisual pode proporcionar uma compreensão mais concreta e acessível dos conceitos abstratos discutidos nas disciplinas jurídicas.
O Cinema e o Direito
Em um primeiro momento, comecei a trabalhar com o cinema por uma razão específica: as teorias que privilegiam o estudo interdisciplinar se beneficiam de uma visão crítica mais ampla, ou seja, misturam a sociologia com o Direito para formar a Sociologia do Direito, a Filosofia com o Direito para formar a Filosofia do Direito, e a História com o Direito para formar a História do Direito, etc. Essas áreas geralmente possuem vieses mais abstratos, o que pode causar certa estranheza nos estudantes. Às vezes, a dificuldade em abstrair conceitos cria barreiras para o aprendizado.
Utilizar o cinema como ferramenta pedagógica surgiu, para mim, como uma forma de facilitar o ensino. No entanto, ao longo dos anos, essa abordagem se expandiu de forma significativa, levando ao desenvolvimento de artigos científicos e à criação de disciplinas tanto na graduação quanto na pós-graduação. Introduzi a investigação cinematográfica em matérias que normalmente ela não era explorada, como a Filosofia do Direito, a Introdução ao Estudo do Direito, Hermenêutica e a Lógica Jurídica. De maneira geral, os resultados têm sido extraordinários.
Além do componente intelectual e racional, o cinema, por causa de sua complexa natureza narrativa, engloba diversas linguagens, como a imagética, sonora, musical e a dos próprios movimentos de câmera. Em outras palavras, ele exige que os alunos desenvolvam habilidades interpretativas profundas. Portanto, as minhas experiências com esse trabalho me desenvolveram como professora. É importante ressaltar que quando um educador adota essa metodologia, é necessário que haja um envolvimento total, já que se trata de um processo de aprendizado contínuo para ele.
Desse modo, o professor não pode simplesmente aplicar um texto pronto. Por exemplo, um artigo de minha autoria, que eventualmente pode ser referenciado por um colega, exige que ele assista ao filme mencionado pelo artigo e reflita sobre as temáticas abordadas. Além disso, a articulação entre os elementos mais racionais, estruturais e os elementos de sensibilidade é extraordinária por duas razões. A primeira é a possibilidade de compreender mais didaticamente os textos e a segunda é perceber que a nossa visão teórica pode ser expandida pela nossa capacidade de “sentir” os temas.
Teorias do Direito no Cinema
Se inicialmente pensávamos o cinema como uma forma sofisticada de exemplificar certas noções teóricas e críticas do Direito, aos poucos percebemos que ele pode trazer outras questões, mesmo que não estejam integralmente presentes no começo, na leitura estrutural dos textos. Com o passar dos anos, noto a importância de não abrir mão de uma formação teórica preliminar, mesmo diante da complexidade do cinema. Ele aborda diversos temas que não foram estruturados, como Direito e Justiça, Direito e Verdade, Direito e Violência, Direito e Moral, etc.
Talvez, as ciências mais presentes nos filmes sejam a Psicologia e a Psicanálise mas existem muitos filmes, de qualidade artística, que tratam de temas da ciência do Direito. No entanto, é preciso realizar um recorte narrativo específico para que esse tipo de trabalho tenha relevância acadêmica. Em outras palavras, não se trata apenas de trazer uma sinopse do filme para ilustrar uma determinada ideia, mas sim escolher temas capazes de serem explorados com significância teórica.
A partir desse recorte, estabelece-se uma aproximação interdisciplinar, um diálogo entre diferentes disciplinas e os filmes. Contudo, saliento a importância de realizar uma leitura rigorosa dos filmes e textos. É claro que o componente racional nunca pode ser dispensado, pois ele está presente em todas as discussões acadêmicas.
Como mencionei anteriormente, a própria natureza complexa e rica da linguagem cinematográfica nos leva a determinadas percepções singulares. A sensibilidade desempenha um papel importante na ampliação do conhecimento. Um exemplo é o estudo da relação entre Direito e Poder, que quando associada a um filme, possibilita o espectador de sentir seus efeitos em situações concretas humanas.
Ao falar sobre a vivência humana no cinema, é importante mencionar a questão da imagem. Alguns estudiosos acreditam que ela tem um poder de penetração significativo, até mesmo superior à literatura. Isso não significa que eles desprezam o valor cognitivo literário, mas reconhecem a capacidade da imagem cinematográfica de impactar profundamente nosso imaginário.
Nesse sentido, justamente essa característica que levou o cinema a seguir um caminho ambíguo. Uma grande parte da indústria cinematográfica se concentra na produção de entretenimento comercial. No entanto, ainda há uma quantidade considerável de filmes que permanecem como arte, conhecimento e reflexão. É nessa linha que concentro meus trabalhos.
Imagem, gênero e direito
Para ilustrar o poder de penetração da imagem, um dos gêneros cinematográficos mais populares é o terror. Sabemos que muitos elementos abordados em filmes de terror não são reais, mas ainda assim são capazes de provocar medo. Essa força de penetração do cinema ainda precisa ser estudada com mais profundidade pelos pesquisadores.
No entanto, há um tipo de cinema que tende a afastar o pensamento crítico, conhecido como de “entretenimento” no sentido estrito. Trata-se dos filmes que servem para evitar reflexões mais profundas. No curso de Direito e Cinema, a premissa é oposta, pois a intenção é estimular cada vez mais o pensamento crítico.
Sempre enfatizo para meus alunos que existe um tipo de entretenimento que não é restrito e que está presente nos nossos estudos interdisciplinares. Acho extremamente prazeroso estudar a crítica do Direito por meio do cinema. Para mim, isso é uma forma muito agradável de prazer intelectual. Portanto, penso que perceber como o cinema trabalha com conceitos e imagens é essencial. Essa capacidade de interligação proporciona aos estudantes uma compreensão mais impactante da realidade jurídica do que limitar o ensino puramente a uma teoria crítica.
Como professora, desde o início da minha experiência, observo que os alunos tentam memorizar as teorias sem compreendê-las profundamente. Depois, tentam decorar a dogmática e se perdem em um processo de mecanização. Acredito que a abordagem interdisciplinar amplia a capacidade de raciocínio e estimula a conexão entre diferentes linguagens. Há, ainda, uma consideração importante: não se trata apenas de um problema intelectual, mas também existe uma relevância prática significativa. A formação crítica, potencializada pelo diálogo interdisciplinar com o cinema, promove uma base mais sólida para atuação profissional futura.
Sempre digo que, para exercer uma prática jurídica eficaz, é necessário conhecer a realidade. Caso contrário, dificilmente entenderemos a realidade política do Poder Judiciário. Nesse sentido, faço a seguinte pergunta: como realizar recortes estratégicos necessários para interpretar os fenômenos jurídicos? Do ponto de vista acadêmico, o cinema é uma ferramenta interessante para ampliar a capacidade interpretativa.
Esse é o principal desafio dos estudantes de Direito, principalmente para aqueles que exercem a prática jurídica: a habilidade de interpretar. Eu insisto nesse poder de criação porque muitos afirmam que o âmbito jurídico não requer criatividade. Para mim isso não é verdade, porque, mesmo a falta de habilidade para articular linguagens pode ser prejudicial à prática jurídica efetiva. Na verdade, a percepção de uma palavra, em razão de seu sentido semântico vago ou ambíguo, pode ser determinante no caso concreto.
Os profissionais do direito precisam ser capazes de perceber a imagem do ambiente, seja em uma audiência, reunião, consultoria, etc. Em resumo, o mundo jurídico não é composto apenas por textos escritos, mas também pelo diálogo e pela percepção imagética. Além disso, existe um componente interativo relevante, na medida que a tendência das pessoas atualmente é digitar textos em seus celulares e não observar o ambiente ao seu redor. É essencial, para a prática do Direito, aprender a ler rostos, expressões e tons de voz.
Na minha opinião, a disciplina Direito e Cinema não deveria ser apenas optativa, mas sim integrada à grade curricular regular. Como professora, tenho observado que ninguém mais estuda teoria apenas pela teoria. Recentemente, surgiram novas tecnologias, como o Chat GPT, que fazem muito bem a parte protocolar do processo de aprendizado, como a elaboração de resumos. Mas, por enquanto, é difícil acreditar que as ferramentas realizam trabalhos de relacionamento interdisciplinar.
Esse é o caminho trilhado pelo ensino jurídico contemporâneo, e se focar apenas nas teorias críticas, das quais os alunos não compreendem e apenas reproduzem na prova, pode levar à deterioração do aprendizado. Mais do que nunca, é necessário repensar esse cenário.
Narrativa e argumentação; o cinema e o direito
INB: Quando pensamos na relação entre direito e cinema, por vezes lembramos de filmes como 12 homens e uma Sentença, Kramer vs Kramer, O Tribunal de Nuremberg e Testemunha de acusação. Como o cinema se vale de seus aparatos técnicos para promover uma forma de argumentação jurídica convincente?
Mara: Falar sobre esse alargamento interpretativo implica reconhecer que o Direito é permeado pela complexidade humana, algo que as teorias dogmáticas tradicionais não conseguem alcançar. Isso porque elas possuem uma finalidade prática que se manifesta em uma série de recortes artificiais. É importante destacar que, do ponto de vista dogmático, a prática é primordialmente argumentativa, interpretativa e se desenvolve a partir de recortes persuasivos. Os recortes dogmáticos são estratégicos, mas essa abordagem pode fazer com que a visão do todo se perca, uma vez que o objetivo é defender interesses específicos.
O professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior utiliza uma expressão que aprecio e utilizo nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito e Filosofia do Direito, que é o “caráter tecnológico do direito”. Isso significa que o Direito possui um caráter persuasivo/prático para cumprir com a sua função de solucionar conflitos. Entretanto, é necessário considerar que a perspectiva humana da tecnologia argumentativa insere-se em um contexto social e político mais amplo.
Demonstrar essa realidade é uma tarefa muito difícil, especialmente hoje em dia, o que me faz refletir sobre o caráter persuasivo da política e como ela afeta a vida de todos nós. A interação atual é feita por meio de recortes narrativos. Por exemplo, todos se posicionam a favor ou contra algo, seja sob um ponto de vista moral ou não. Podem se inserir em grupos segmentados que concordem com elas ou, caso discordem, procurem nichos com linhas de pensamento semelhantes.
Parece que o fenômeno da persuasão, característico da política, do marketing e do Direito, alcançou de maneira significativa a vida social. Por isso, é difícil estimular a aceitação de um ponto de vista distinto do seu próprio recorte. Além disso, a capacidade de compreensão não pode ser negligenciada, o que ocorre na contemporaneidade. O fenômeno das Fake News é impactante porque criou narrativas que alcançam uma certa noção de verdade subjetiva, diluindo a visão da complexidade humana.
Doze Homens e Uma Sentença
Na perspectiva do cinema, filmes como Doze Homens e uma Sentença, Kramer vs. Kramer e Julgamento de Nuremberg proporcionam uma experiência de imersão externa em uma argumentação jurídica. É possível observar diferentes pontos de vista e outras possibilidades de argumentação, mas nenhuma isenta de elementos valorativos e políticos. Essa é uma grande questão com a qual a dogmática tradicional tem dificuldade em lidar. Quando interpretamos uma palavra ou imagem, é basicamente impossível separar completamente os aspectos valorativos. Eles estão intrinsecamente ligados.
O filme Doze Homens e uma Sentença é uma verdadeira aula de Filosofia do Direito. Ele retrata as dificuldades de verificar concretamente o caso em um contexto mais amplo. O espectador é imerso em um panorama de interpretações e argumentações diferentes. Por isso, esse filme é um dos meus favoritos para trabalhar em sala de aula, já que simula uma situação real. No mundo jurídico, a realidade nunca se apresenta como ela é, mas sim naquilo que o Direito entende como realidade. Isso se manifesta no fenômeno da prova jurídica.
Costumo tratar nas aulas o filme Julgamento de Nuremberg. Ele é interessante porque mostra uma espécie de conexão argumentativa com a própria noção de validade jurídica das leis que organizavam o governo nazista. Isso se evidencia quando defendemos ou acusamos autoridades que atuaram durante o período da Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, apresenta uma visão ampliada da argumentação e das abordagens de pontos de vista distintos.
Kramer vc. Kramer
Em relação ao filme Kramer vs. Kramer, a parte do julgamento não ocupa muito espaço na trama, mas a discussão sobre o papel da paternidade é central e prende a atenção do espectador. É interessante os momentos de sensibilidade que aparecem ao longo da narrativa. Na cena do julgamento sobre a definição da guarda do filho, diante da emocionada argumentação do ex-marido sobre o seu papel de pai, a mãe percebe a sua humanização paterna, para além do que o próprio direito é capaz de captar. Nós espectadores percebemos a comoção desta mãe, ao perceber o significativo amor do pai ao seu filho, que o direito não consegue ver. Por isso a decisão jurídica é favoravel a ela e sua justiça passa a ser problematizada. Outro filme extraordinário é Testemunha de Acusação cuja vivência narrativa extrapola qualquer aula teórica. É o verdadeiro poder do cinema que se consuma: uma experiência envolvente no mecanismo persuasivo. Diferente dos outros filmes, Testemunha de Acusação não apresenta uma visão externa das possibilidades de argumentação. O espectador é imerso na narrativa e participa da persuasão, sendo surpreendido no final.
O tema da argumentação é o ponto fraco dos estudantes de Direito. A questão é como promover uma visão ampliada. Mesmo que a função do promotor de justiça seja aplicar a lei, isso não o impede de ter uma visão humana do processo. E o mesmo ocorre com o advogado de defesa, pois nada impede que ele tenha uma visão menos normativa do Estado.
Em outras palavras, realizam-se recortes persuasivos e práticos para ampliar o entendimento. Esse é o problema de estudar o Direito exclusivamente com base nas teorias dogmáticas, uma vez que os recortes não podem ser feitos sem essa perspectiva ampliada. Consequentemente, uma visão restrita leva a recortes inadequados.
Portanto, um bom profissional possui uma formação cultural mais dilatada, além da capacitação técnica necessária. Nesse sentido, destaca-se também o universo artístico porque não é suficiente ter apenas uma educação filosófica e sociológica. Dependendo de como as teorias são estudadas, elas nunca terão o mesmo impacto humano e cognitivo. Necessitamos do diálogo interdisciplinar das teorias jurídicas críticas com a arte do cinema.
O filósofo Edgar Morin dizia que toda a vivência humana concreta não substitui o contato com a arte, porque esse mostra a dimensão subjetiva humana. Ao assistir um julgamento, muitas vezes não é possível notar a própria consciência humana. No entanto, assistir um bom filme pode eventualmente revelar detalhes dessa complexidade que nem mesmo a vivência mais concreta seria capaz. Como por exemplo, um filme que retrata uma dinâmica familiar, pode permitir ao telespectador entender melhor o que ocorre em sua própria família, mas que não é perceptível no cotidiano. A dimensão subjetiva é raramente explícita e ela só se torna mais evidente por meio de um trabalho de reflexão aprofundado.
Quando assistimos a um filme e o relacionamos com nossa própria realidade, há prazer e satisfação. Particularmente, não abro mão do cinema como um espaço físico, apesar de reconhecer as boas alternativas do streaming. Mesmo que o preço do ingresso não seja muito acessível, é um empenho que vale a pena. Na minha opinião, é gratificante porque o entretenimento alargado proporcionado pelo cinema de arte abrange diversos aspectos, ao contrário de apenas assistir algo sem necessidade de reflexão. De qualquer forma, não devemos descartar a possibilidade de apreciar bons filmes, pois qualquer pessoa tem condições de fazê-lo, desde que tenha a oportunidade de conhecê-los. Infelizmente, muitos não têm acesso e estão familiarizados apenas com o cinema comercial, em sentido estrito.
Do meu ponto de vista, a contribuição mais relevante do cinema é aprender a articular diferentes pontos de vista. Acredito que essa seja uma formação pedagógica interessante. No Direito, o debate central é sobre narrativas e o cinema, quando eficiente, nos proporciona a percepção desse embate.
Cinema como uma ferramenta de compreensão da realidade?
INB: O tema da “Justiça” é central nos debates jurídicos e é retratado com certa frequência na história do cinema. De que forma o cinema serve como instrumento de compreensão da realidade, sobretudo na forma de se fazer Justiça?
Mara: Em uma perspectiva crítica e jurídico-prática, o tema da justiça é um dos mais difíceis de serem compreendidos. Isso ocorre porque várias teorias dogmáticas falam sobre a justiça, mas muitas vezes elas são construídas a partir de uma idealização humana. É muito comum afirmar que as decisões são sempre em prol da justiça, mas para mim esse é um dos temas mais complexos na Filosofia e na Teoria Geral do Direito e raramente chegamos a noções absolutas sobre essas ideias.
Uma das características do pensamento crítico é sua permanente abertura. Um filme bem executado geralmente deixa espaço para o espectador imaginar o que acontece depois. Walter Salles, um diretor brasileiro que admiro muito, expressa essa ideia de que um filme de qualidade começa quando termina a exibição e passa a permear os pensamentos do espectador.
Existem vários filmes de tribunais que abordam o tema da justiça, como O Mercador de Veneza, uma adaptação de uma peça do Shakespeare, que promove uma discussão extraordinária sobre os diferentes significados do do que seja justo. No cinema, é interessante observar a problematização narrativa que leva a associações teóricas enriquecedoras.
Central do Brasil
O filme Central do Brasil de Walter Salles, por exemplo, projetou o Brasil internacionalmente após um período de ostracismo. Essa obra cinematográfica aborda de maneira interessante a questão da justiça, mesmo não sendo um típico filme de tribunal. Ela discute a conexão entre justiça e moralidade de uma forma que nunca perde relevância. Ao acompanhar a trajetória da personagem Dora, percebe-se que ela enfrenta diversos problemas, incluindo alguns de natureza jurídica em razão de seus atos ilícitos.
Aos poucos, o filme mostra como Dora passou por um processo de aprendizado e de respeito pelos sentimentos humanos, mesmo diante de suas fragilidades. Isso é um ponto crucial: como estudar o humano a partir de suas complexidades e defeitos?O humanismo profundo que Walter Salles imprime é notável. A personagem não é uma mulher perfeita; inclusive, era uma ex-professora que se valia de sua suposta superioridade intelectual para fazer julgamentos morais. Ela não apenas cometia atos ilícitos, mas chega ao abuso moral de vender o menino Josué para comprar uma televisão.
Contudo, ao longo do filme, testemunhamos um processo de tomada de consciência humana. Aqui reside a complexidade do tema da justiça, pois essa personagem praticava ações abusivas. É difícil saber o que é justo, mas situações de abuso frequentemente despertam uma percepção da injustiça. O filme Abril Despedaçado também é maravilhoso para estudar o tema porque supera a noção de justiça como retribuição da violência. Muitas obras cinematográficas comerciais reafirmam esse modelo. No entanto, o Walter Salles oferece uma abordagem diferente que transcende essa realidade.
Tomando os dois filmes como exemplo, podemos refletir que o ciclo da violência é muito presente na vida humana até os dias de hoje: a prática de retribuir o mal com o mal ocorre tanto dentro quanto fora do Estado. No caso de Abril Despedaçado, a violência está fora e é muito marcante, mas isso não significa necessariamente algo positivo. Na nossa realidade, tanto dentro quanto fora do âmbito jurídico, ela está muito presente. Eu diria que o tema da violência está intrinsecamente ligado ao tema da justiça no Brasil.
Tomo a liberdade de recomendar dois filmes que assisti recentemente. O primeiro deles é nacional e se chama Carvão e aborda a violência e a justiça, de uma forma mais bruta e intensa do que Central do Brasil. O cinema possui essas possibilidades, com obras mais sutis e outras mais impactantes.
A segunda recomendação é o filme francês A Acusação, que trata da argumentação jurídica relacionada ao estupro. Assim como Doze Homens e uma Sentença, A Acusação é minucioso em sua exposição crítica e argumentativa. Em nenhum momento ele direciona o espectador a aderir a uma das versões. Na minha opinião, um bom filme não deve dar direcionamentos, mas sim abrir espaço para reflexão.
O Cinema como janela dos nossos olhos
Os filmes que tratam do tema da justiça precisam ser rigorosos, caso contrário, podem ser prejudiciais. Para mim, é fundamental que haja uma qualidade impactante e por isso sou criteriosa ao escolher os filmes com os quais trabalho. Quando se tem experiência intelectual e cinematográfica, nota-se que as fórmulas utilizadas pelo cinema podem ser mais ou menos mais tradicionais e muito repetitivas.
Nos meus cursos, não recomendo aos alunos que assistam a filmes ruins, mas sim os melhores. Nos filmes comerciais, é comum que o final seja fechado, com final feliz e não ofereça possibilidades de interpretação diversas. Por outro lado, existem finais inteligentes capazes de oferecer muitas interpretações, o que está presente no filme Carvão.
A trama do filme envolve uma família muito desfavorecida, que vive em uma carvoaria no interior do país e que aniquila pessoas da família, ou seja, condena, friamente, os idosos à morte visando obter benefício financeiro. Assim, há uma discussão contundente do ponto de vista moral, pois a família acredita que é justo obter um ganho ilícito. A violência explícita retratada é extremamente chocante e revela uma importante discussão sobre moral e justiça. Ao contrário de Central do Brasil, não há a possiblidade de redenção moral neste filme, tempos de brutalidade refletem a crueza moral de nossa realidade contemporânea. Como assumir esta banalização da violência no Brasil? O filme deixa esta questão em aberto. O cinema nacional é um espelho reflexivo de nossa cultura.
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