Os livros essenciais por Pedro Henrique M. da Silva

O pesquisador e especialista em Direitos Humanos, Pedro Henrique, conversou com o INB para dizer os livros essenciais que modificaram e traçaram a sua trajetória como pesquisador.
Pedro Monteiro da Silva é Servidor Público da Educação no município de Porto Seguro-Ba. Ativista negro e LGBTI+, é Especialista em Direitos Humanos e Contemporaneidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bacharel em Humanidades e em Direito pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Membro dos grupos de Pesquisa e Extensão Usos Emancipatórios do Direito e do Grupo Pensamento Negro Contemporâneo. Pesquisa direito e relações raciais; direitos sexuais e reprodutivos; feminismos negros; legislação sobre gênero, sexualidades e direitos humanos.

A sessão “Cabeceira INB” dedica-se a contar a trajetória de pesquisa dos professores e colaboradores do Instituto Norberto Bobbio a partir da recordação de suas leituras mais marcantes. Dessa forma, no dia 22 de fevereiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com o pesquisador Pedro Henrique Monteiro, para contar sua história de formação, — apresentando como marcos referenciais os livros mais fundamentais de sua vida. 

Pedro ganhou o primeiro lugar da categoria “graduação” da 1.º edição do Prêmio Raymundo Magliano Filho pelo trabalho “Políticas públicas municipais de saúde sexual e saúde reprodutiva para homens em Porto Seguro (2017-2020): uma análise interseccional”.

Os primeiros anos

Sou do interior da Bahia e venho de uma família muito humilde. Nunca passamos fome, mas eu, meu pai e minha mãe enfrentamos dificuldades. Foi ela quem investiu na minha educação, tanto que sempre me lembro de suas palavras: “a educação ninguém te tira”. Ou seja, a educação seria a única coisa que eu poderia ter sem que pudessem roubar de mim.

Talvez por isso que fui constantemente incentivado a ler. Durante os primeiros anos de alfabetização, minha mãe ganhou uma pilha de gibis  da Turma da Mônica de seus colegas de trabalho. Esses quadrinhos são de coleções bem antigas, verdadeiras relíquias que estão guardadas até hoje. 

E esse tipo de história também apareceu para mim de outras formas. Minha tia colecionava quadrinhos da Marvel, do X-Men e do Quarteto Fantástico. Tudo isso despertou uma paixão por esse tipo de narrativa. Por meio desse incentivo, logo desenvolvi o hábito da leitura. “Quem lê bem, fala bem e escreve bem” –  uma frase da minha mãe sempre presente, porque meus pais se preocupavam com a minha formação intelectual.

Da infância para a juventude

Durante a infância e juventude, um dos livros que mais me marcaram se chama Meu pé de laranja lima. Apesar de não lembrar bem da história, ela me causou grande comoção. Também gostei muito de ler a coleção completa do Harry Potter que eu ganhei da minha mãe. Foi minha primeira coleção e levei uma bronca porque a  li praticamente inteira com rapidez. Tanto é que  ela  dizia que esses livros eram mais propícios para os momentos de lazer, especialmente nas minhas férias. Mas eu não quis saber e li tudo que eu tinha direito, deixei apenas os dois últimos livros para o final.

Como vim de família pobre, consequentemente não tínhamos condições de comprar livros, revistas e afins. Por isso, me desconectei da leitura por um longo tempo. Não existiam meios para que eu pudesse ler. Eu tinha alguns amigos que compravam livros e sabiam que eu também gostava de manter esse hábito. Por isso, quando era possível, eles me davam ou emprestavam alguns livros. Na biblioteca da escola havia outros materiais, mas mesmo assim tudo era difícil.

As leituras essenciais na faculdade

Ao entrar na faculdade, passei a ter contato com um universo que antes era desconhecido. Aliás, comprei um Kindle, o que me permitiu ler muito mais do que eu jamais conseguiria com os poucos recursos que tinha. E isso só se aprofundou com a chegada da era dos PDFs. No início do curso, li textos recomendados nos encontros da militância do movimento negro em Teixeira de Freitas que tentamos organizar lá em 2016. 

Mas a autora que mudou a minha vida foi Lélia Gonzalez. Suas ideias modificaram completamente o modo como enxergo o mundo e a política. O seu texto Racismo e Sexismo na cultura brasileira, trata de quando ela recebeu um convite para falar em uma mesa. Logo me identifiquei com seu modo de escrita, especialmente considerando o contexto brasileiro. O Brasil é um dos países que mais possui um número considerável de analfabetos funcionais, ou seja, de pessoas que sabem ler, mas não conseguem interpretar. Por isso, de forma coletiva desenvolvemos autoestima para escrever e acreditar que eu também poderia fazer aquilo, já que nossas capacidades, enquanto pessoas negras são constantemente questionadas, acreditar em nós pode ser um desafio. 

Eu tenho muitos amigos que também desenvolvem pesquisa e é comum nos perguntarmos: não existem técnicas para melhorar nossa escrita? Esse é um questionamento e uma dificuldade presente para aqueles que pretendem  produzir ciência nas cidades interioranas do Brasil.

A pesquisa: grandes autoras

Uma das minhas grandes áreas de pesquisa é o estudo de políticas, em especial, os direitos LGBTQIAP+. Existe uma concentração massiva de produção de referências e eventos no eixo Rio-São Paulo, o que pode ser problemático para pesquisadores do interior que estão distantes desse meio. Especialmente porque, diante desse cenário, quem está mais afastado da região sudeste pode não receber o devido reconhecimento por suas pesquisas ou ter acesso a recursos financeiros, bibliografia e material de pesquisa.

Essa desigualdade geopolítica tensiona a política de citação e pretere o pensamento das e dos pesquisadores que vivem nos locais mais afastados dos grandes centros que realizam pesquisas e atividades de extensão de impacto e relevância social.

A socióloga Lélia González

O conceito de amefricanidade, desenvolvido por Lélia Gonzalez, nos faz refletir sobre essa situação e pensar em estratégias para superá-la. Trata-se de uma ideia inspiradora, assim como a interseccionalidade, que auxilia a identificar as opressões, a analisar criticamente o mundo e quais estratégias vamos mobilizar coletivamente. E isso é fundamental para pesquisar rigorosamente, para repensar nossas ações e buscar constantemente melhorias.

Na minha opinião, os textos de Lélia Gonzalez reunidos em de Por um feminismo afro-latino-americano, são leituras indispensáveis para estudar o Brasil, principalmente para os interessados nas contribuições das feministas negras. Esse livro influenciou significativamente o meu pensamento científico e minha forma de agir no mundo.
Outro livro importante para minha compreensão do feminismo não apenas como uma teoria, mas como uma prática e um corpo teórico denso e complexo, foi o Pensamento Feminista Negro de Patricia Hill Collins. Infelizmente, muitas pessoas vêem o feminismo de forma superficial, limitando-o apenas à emancipação das mulheres brancas, quando concordo com bell hooks que, na verdade, é um movimento que busca lutar contra todas as opressões, como machismo, racismo, LGBTfobia, etc.

bell hooks em “Ensinando a Transgredir”

Também fui bastante impactado pelo Ensinando a Transgredir, de bell hooks. Eu li este livro sem conhecer a autora, mas o título me chamou a atenção. Como participo de muitas oficinas, projetos de extensão e minicursos na área de direitos humanos, utilizei as estratégias apresentadas por ela em meu trabalho. bell hooks acredita na criação de uma comunidade de aprendizagem, além de promover um ambiente onde todas as pessoas são ouvidas e participam, dentro ou fora da sala de aula.

Essas referências foram fundamentais para que eu pudesse refletir sobre o Direito, tendo em vista seus jargões técnicos que muitas vezes não são inteligíveis e passam uma impressão elitista para a população. Inclusive porque, muitas vezes, as pessoas mal conhecem seus próprios direitos. 

Mara Viveros e “As Cores das Masculinidades”

Outra feminista que gostaria de citar é Mara Viveros e seu livro As Cores das Masculinidades, no qual ela estuda as masculinidades na América Latina. Ao mesmo tempo, a autora analisa as masculinidades brancas, especialmente aquelas consideradas hegemônicas no contexto colombiano. Ao meu ver, termos como masculinidade e branquitude são elementos que não podem se dissociar-se no debate de gênero.


O Direito constrói um ambiente muito embranquecido e, consequente, as profissões jurídicas também – sejam elas na promotoria, na defensoria, no magistério ou na advocacia. Durante a graduação, tive sorte de estar na primeira turma de Direito da Universidade, e que tinha duas professoras negras no curso, a presença e atuação delas foi importante para o nosso aprendizado, desde as diferentes bibliografias como visão crítica do Direito.  Na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) há uma política de ações afirmativas muito forte, isso porque, foi uma das primeiras universidades a criar cotas para pessoas transexuais e egressos do sistema prisional.

E essas professoras nos apresentaram outras referências bibliográficas que não são muito discutidas nesse contexto majoritariamente branco. Dois textos me marcaram muito na época, sendo que o primeiro é o Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro do professor Marco Lustosa Queiroz e o segundo é o Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro da Ana Flauzina. 

A leitura destes livros foi um sopro de autoestima, saber que “nossos passos vêm de longe”. Se dois pesquisadores negras e negros realizaram trabalhos tão bons, eu também poderia e queria fazer isso. Conhecer o pensamento de intelectuais negras e negros durante a minha formação foi essencial para o desejo de seguir uma carreira na pesquisa e docência. 

O que está por vir?

Eu gosto de escrever e colocar para fora o que está na minha cabeça. E o que me fez pensar muito sobre minha escrita, foi o livro Quarto de Despejo de Maria Carolina de Jesus. Ela foi uma mulher negra e moradora da favela que, apesar de todas as dificuldades, era uma intelectual negra que pensou o Brasil. A sua escrita não se concentrava apenas na fome e pobreza, embora essas mazelas sociais estivessem presentes. Maria Carolina de Jesus fez, sobretudo, uma análise de conjuntura do Brasil. No mesmo sentido, Casa de Alvenaria também possui essa mesma característica. Infelizmente, ela é vista como uma autora que “apenas” descreve a favela. Eu discordo disso completamente.

 Para a minha lista, ainda quero adicionar outros dois livros. O primeiro é o Olhos d`água de Conceição Evaristo, lembro de ter lido o conto que intitula o livro para minha mãe durante a pandemia. Esse livro me marcou pela escrita da autora, como ela consegue ser crua, direta e sensível descrevendo a realidade, as semelhanças e as singularidades das histórias de personagens negras e negros. 

Os livros de Lélia Gonzalez, de Conceição Evaristo e de Maria Carolina de Jesus são extremamente inspiradores para mim. É a intelectualidade dessas mulheres negras e sua forma de escrita, considerada não convencional, que lapidou minha coragem para escrever também.


 Enquanto fazia o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), li um livro de contos chamado Redemoinho em dia quente de Jarid Arraes, uma obra contemporânea de contos escrita por uma jovem escritora negra cearense que conseguiu criar histórias sobre o interior do Ceará, esses personagens me acompanharam durante a escrita. Eu gosto muito de ler ficção enquanto escrevo não-ficção, pois isso me auxilia a escrever, a construir parágrafos, pensar as soluções para o texto e organizar o conteúdo.

O mundo da ficção científica

Como vivemos em um mundo caótico, acredito que a ficção científica é uma escapatória para pensar sobre outras realidades, alternativas de sociedade, principalmente quando se trata da ficção com pessoas racializadas. Na minha opinião, dos livros mais importantes do gênero se chama Kindred, escrito por Octavia E. Butler

Quando falamos em ficção científica, automaticamente vem na nossa mente que os protagonistas são homens brancos e eles não encontrariam tantos problemas para eles no passado. E isto é o oposto do que ocorreria com uma pessoa negra, pois caso ela realize uma viagem no tempo, possivelmente encontrará o regime escravocrata. 

Há um outro livro muito bem construído e que o maior prêmio de ficção científica: a trilogia A terra partida de N.K. Jemisin. Eu já li o primeiro livro, A Quinta Estação, o primeiro livro da saga, uma fantasia que se passa em um mundo pós-apocalíptico, com várias castas e personagens de diferentes grupos étnico-raciais. É interessante ver como a imaginação radical negra, seja em textos ficcionais ou não, nos permite imaginar outras possibilidades, são esses outros futuros que nos impulsiona a lutar contra o genocídio negro em curso. 

O futuro

Eu sou formado em Bacharel Interdisciplinar em Humanidades e Bacharel em Direito, porém não pretendo seguir na área como advogado. Embora tenha tido uma ótima experiência no estágio por ter trabalhado com pessoas incríveis, meu currículo e trajetória apontam para uma carreira acadêmica. Foi na Universidade Federal do Sul da Bahia, (UFSB) descobri minha paixão pela pesquisa acadêmica e pela docência no Ensino Superior, gostaria de contribuir para a docência no Direito que necessita de vozes negras e críticas em sala de aula.   

Originalmente, planejava ingressar em um mestrado logo após concluir a graduação. Contudo, dada a conjuntura política do país, um estudante recém-formado e sem recursos, precisei ingressar no mercado de trabalho, adiando o planejamento inicial. 

No futuro, pretendo fazer um mestrado em Direito. Em 2019 fui aprovado em um concurso na minha cidade, mas só comecei a trabalhar em 2021. Esse trabalho é o que me sustenta no momento. Minha gratidão por ele é imensa, mas planejo alçar meus próximos voos na pós-graduação. Já fiz uma especialização em Direitos Humanos na UFBA, mas quero continuar pesquisando em um espectro mais amplo, não exatamente sobre a saúde do homem, e sim sobre políticas sexuais em geral. 

Enquanto aguardo a oportunidade do mestrado, exerço meu ativismo nos grupos de pesquisa, especialmente no Grupo de Pesquisa e Extensão Pensamento Negro Contemporâneo na UFSB, sendo convidado para palestras e oficinas na região. 

Na cabeceira, hoje

Na minha cabeceira, está o Hobbit de J.R.R Tolkien. Há mais de um mês que eu tento avançar na leitura, mas não obtive sucesso. Também, pretendo ler O avesso da pele do Jeferson Tenório, um livro que parece ser muito bom, mas com temáticas sensíveis para pessoas negras.