No dia 12 de abril de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a professora Vânia Carvalho sobre as relações entre museu e memória.
INB: De que forma os museus preservam e apresentam a memória coletiva de uma sociedade?
Vânia: Para discutirmos a relação entre memória, museu e história, é necessário retomarmos a trajetória de instituições ligadas ao patrimônio artístico e histórico, especialmente na França, uma das matrizes dos museus de história brasileiros, inclusive o Museu Paulista. A origem do museu de história como um tipo de museu remonta ao final do século XVIII e está relacionada aos efeitos da Revolução Francesa, que promoveu uma destruição devastadora dos objetos relacionados tanto à Igreja quanto ao Antigo Regime. Como reação, algumas pessoas e segmentos do governo francês coletaram objetos desse período e constituíram coleções reunidas em depósitos do governo e em acervos pessoais. Começam aí as criações de narrativas feitas de maneira tridimensional, ou seja, com a justaposição e cenografia feitas com objetos históricos.
Os museus de história se consolidaram no século XIX. Se acompanharmos as trajetórias de cada museu, em diferentes regiões do Ocidente, veremos que cada museu possui muitas peculiaridades. Contudo, embora diferentes, existem elementos comuns entre eles e que interessam para pensarmos as relações entre memória e história. São esses elementos que revelam a ligação dos museus com uma suposta preservação de memórias coletivas.
A primeira noção comum a estas instituições é a de territorialidade, que se recobre de conotações geopolíticas. Os museus de história geralmente estão associados a um espaço, e esses espaços estão associados a agentes sociais. Por isso a noção de território é uma noção geopolítica. Um exemplo claro dessa noção fundadora dos museus de história encontramos no edifício-monumento que chamamos de Museu do Ipiranga. Sua sede encontra-se no lugar onde Dom Pedro I proclamou a independência da República, às margens do riacho Ipiranga.
A expografia, idealizada por Afonso de E. Taunay na primeira metade do século XX, está profundamente relacionada à noção de território. É por essa razão que Taunay colocou as famosas ânforas na escadaria, que continham águas de rios do Brasil, para representar os territórios tomados pelos bandeirantes. Ao subir a escadaria, as paredes são altas e expõem várias pinturas e esculturas que promovem as ações dos bandeirantes em diferentes partes do país. Esta é uma forma muito recorrente de como o Museu de História operou no século XIX e em boa parte do século XX.
A segunda noção comum a estas instituições é a de classe. As elites políticas e econômicas se organizaram precocemente para se promoverem por meio dos museus de história, construindo uma área cinzenta entre o que é público e privado. As obras coletadas nos museus de história serviram para tornar hegemônicas as forças políticas e econômicas. Os territórios elevados à condição de partes do que se entende por nação foram uma maneira eficaz de dar concretude aos domínios classistas.
Portanto, as elites logo perceberam o valor de transformar seus objetos memoráveis em objetos de interesse público. Elas buscaram se apropriar desses espaços por meio de grandes doações de acervos que representam sua história. Ao inserir objetos privados no espaço público dos museus, estes grupos sociais elitizados transformaram histórias privadas em elementos constitutivos da identidade nacional. Por essa razão, os museus de história nasceram, em grande parte, como lugares de culto da nacionalidade, na medida em que grupos os utilizaram como um meio de construir hegemonia simbólica e ideológica, para além daquela política e econômica.
A expectativa geral desses grupos sociais foi projetar-se e promover-se no espaço público. Trabalho no Museu Paulista há mais de 30 anos e tenho visto como pessoas de diferentes extrações sociais acreditam que seus documentos pessoais, ao ingressarem no Museu, irão garantir que aspectos de suas vidas privadas se tornarão parte da experiência pública.
Essas duas noções – de territorialidade e de classe – permitem-nos entender a conexão entre memória e identidade. Os artefatos doados constroem cronologias que refletem anseios por hegemonia. Ao elevar determinados grupos sociais, geralmente as elites, a uma posição de hegemonia ideológica e simbólica, a identidade de classe torna-se parte da identidade nacional.
É possível concluir que o Museu de História como um local de memória é sempre excludente, na medida em que a experiência de um determinado grupo é elevada à condição nacional ela apaga ou desprestigia as trajetórias de outros segmentos sociais. A memória de uma classe silencia as demais e exclui a compreensão e a representação de processos históricos que poderiam questionar suas próprias narrativas.
Vejamos, novamente, o exemplo do Museu Paulista. A expografia de Taunay, produzida para o centenário da Independência do Brasil e hoje documento tridimensional tombado pelo IPHAM, representa uma visão das elites paulistas cafeicultoras, seus valores e suas ambições políticas em escala nacional. Nesse sentido, o museu como local de preservação da memória coletiva tende a ser excludente. De fato, existem outros segmentos representados – indígenas, escravizados negros e mulheres brancas – mas eles são minimizados e subalternizados para que a memória hegemônica prevaleça.
Além do próprio Museu Paulista, processos semelhantes podem ser observados na história do Museu Histórico Nacional, que remonta ao período imperial, bem como nos museus histórico-pedagógicos do Estado de São Paulo, que reproduzem práticas oriundas de grandes museus.
Reconhecer esse processo nos ajuda a compreender a memória como categoria social. A sociedade e seus grupos produzem memória. É por meio dela que se formam as identidades sociais amplas, nacionais, regionais, de grupos, de gênero, societárias e individuais.
Uma terceira noção que está na base da produção de memórias precisa se juntar àquelas da territorialidade e de classe. As coleções são as bases materiais de um museu, que, sob essa perspectiva, pode ser considerado um local de memória. No entanto, outra característica dos museus de história do século XIX é que as coleções são frequentemente descontextualizadas. Por exemplo, a blusa que você veste possui uma história ligada a você, com significados relacionados a como a adquiriu, por que a usa e qual é a sua função em seu contexto pessoal. Quando essa blusa é colocada em um museu, ela é retirada desse contexto de utilidade e passa a fazer parte, por exemplo, da história da moda de São Paulo. Tal descontextualização faz com que o objeto ressignificado possa se tornar um elemento das narrativas construídas no museu e atenda novamente a interesses privados que almejam ser públicos.
Esse processo de descontextualização transformaram itens das coleções de museus em fetiche. Quando os objetos são descontextualizados, eles facilmente tornam-se emblemáticos e adquirem uma aura quase religiosa. Não por acaso, o termo “fetiche” origina-se justamente das práticas religiosas. Trata-se de uma ideia que tem raízes antigas e remonta à tradição religiosa da Idade Média, período em que se promoviam peregrinações e a adoração de relíquias. Na religião católica, quando o padre, durante a consagração da hóstia e do vinho, diz: “Eis o corpo de Cristo e o sangue de Cristo”, acredita-se que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes ali, na hóstia e no vinho, não se trata de representação, mas de transmutação. O fetiche é a crença de que um objeto possui poderes para além do que ele realmente é, desconsiderando-se as relações sociais que a ele deram os sentidos que são agora vistos como imanentes ao objeto. No dia 7 de setembro é possível observarmos uma verdadeira peregrinação ao edifício-monumento Museu do Ipiranga. Os visitantes se reúnem no Salão Nobre, em frente ao quadro “Independência ou Morte” de Pedro Américo. Estão ali não para admirar uma obra de arte e sua história, mas de reverenciá-la como símbolo (mesmo testemunho) da formação do país. Mesmo em um contexto secular, ainda vemos práticas religiosas persistirem.
As práticas historiográficas têm uma parcela de responsabilidade na persistência dos fetiches nos museus de história, já que os historiadores frequentemente privilegiaram a documentação textual. Tal prática intelectual é conhecida como logocentrismo, na qual os textos são valorizados em detrimento de documentos imagéticos e tridimensionais. Estes últimos não eram considerados documentos, ou seja, não eram usados para produzir conhecimento, mas sim para ilustrar e complementar o conhecimento derivado da documentação textual. Sem o reconhecimento de suas capacidades documentais, curadores e diretores de museus se sentiram livres para produzir imagens e objetos que pudessem eventualmente preencher lacunas em suas narrativas museográficas.
Finalmente, começa a ficar evidente que que história e memória não são sinônimos. A história é uma disciplina do conhecimento, que possui métodos próprios, enquanto a memória é uma categoria social. Não é possível falar de uma memória coletiva única, pois aquela que geralmente se apresenta dessa forma é apenas hegemônica. Um caminho melhor é pensarmos que existem inúmeras memórias, e o papel do museu é não apenas preservá-las, mas mostrar suas dinâmicas. O museu deve refletir sobre o funcionamento da sociedade, e ela certamente não é um lugar de paz, mas sim de conflito, tensão, disputa e luta. O museu não deve ser apenas um local de memória, mas também um produtor de histórias que buscam entender os processos de formação das mais diversas memórias.
INB: Qual é o papel dos museus na construção e preservação da história de grupos minoritários e marginalizados?
Vânia: Essa questão é muito importante. Em primeiro lugar, é necessário desmistificar a ideia de que o museu é um lugar neutro. Nenhuma produção da ciência humana é neutra. Independentemente da área escolhida, o pesquisador vai se deparar com métodos que nascem no bojo da sociedade. Os historiadores também são pessoas e, por isso, estão imersos em seu meio social, político e cultural.
Os museus não estão desconectados das demandas sociais que surgem. Atualmente, a busca por representatividade de indígenas, de negros, de grupos LGBTQIAPN+, de feministas é muito forte e legítima. Os movimentos identitários levam instituições como os museus a se abrirem para as reivindicações desses grupos, embora o objetivo dos museus não seja apenas abrigar tais movimentos.
Do meu ponto de vista, não se trata de substituir memórias das elites por memórias das populações marginalizadas. Não adianta trocar uma hegemonia por outra, mas sim alargar o horizonte de representatividade. Podemos ver que isso acontece no Museu Histórico Nacional e no próprio Museu Paulista, nos quais a amplitude temática do acervo é promovida não só pela pressão das demandas dos movimentos identitários, mas também pela reformulação da disciplina que, a partir da segunda metade do século XX, começa a identificar novas problemáticas de pesquisa, novos métodos e novas fontes documentais.
Reconhecer a importância de novos temas históricos é fundamental. Os movimentos amplos de populações antes invisibilizadas começam a ser foco de interesse, lançam novos temas e problemas, e, com isso, identificam-se novos documentos. Ou seja, passamos a olhar para certas produções da sociedade, que antes não eram vistas como documentos porque não eram consideradas fontes de informação com interesse histórico. Quando tais fontes adquirem interesse histórico, grupos sociais que não tinham visibilidade passam a ser estudados com afinco, trata-se de um movimento de retroalimentação. Nos últimos trinta anos, o Museu Paulista investiu muito na serialização e diversificação de documentos. Por exemplo, o Museu continua reunindo retratos das elites, mas agora também coleciona retratos de outras populações. O Museu possui móveis das elites, mas também móveis de uso de massa. O mesmo podemos dizer sobre louças, objetos de decoração, ferramentas de trabalho manual, inclusive ferramentas de cozinha, e assim por diante.
Essas reflexões são importantes para afastar a ideia de neutralidade do museu. Na verdade, suas práticas são e devem ser objetos de pesquisa e reflexão. Isso significa enfrentar a tarefa de entender como o museu funciona, como faz suas seleções e como se apresenta ao público por meio de suas exposições. Apesar de ser um espaço de produção de conhecimento, a proveniência social alargada das coleções permite que diferentes grupos sociais se apropriem dessas coleções para construir ou fortalecer suas identidades.
No entanto, tal multiplicidade de funções não significa que o museu deva tomar o partido ideológico dos grupos sociais. O museu deve ser um espaço de reflexão para compreender as mais diversas memórias e identidades. Enquanto entende e observa a diversidade e os mecanismos de funcionamento das memórias, o visitante se situa dentro da dinâmica e constrói sua própria identidade. Esse processo deve ser feito de maneira crítica, qualificada, política e combativa.
INB: Como os museus podem se adaptar às mudanças sociais e tecnológicas para continuar a cumprir seu papel na preservação da memória e na educação das futuras gerações?
Vânia: No Museu Paulista, havia muita resistência em incorporar recursos digitais, uma vez que sempre foi um museu comprometido com a pesquisa. Isso significa que há um compromisso não apenas pedagógico, mas também de produzir conhecimento. Para produzir conhecimento, um museu de história jamais pode prescindir de sua documentação, dos objetos, das imagens e dos textos que compõem o acervo. Assim, a despeito de qualquer tecnologia, um museu com responsabilidades de pesquisa precisa conservar e preservar seu acervo.
Um museu de história deve criar condições para ser um laboratório de produção de conhecimento. O uso da palavra “laboratório” se contrapõe ao conceito de “teatro da memória”. O museu que abandona a memória como seu eixo organizador e se transforma em laboratório está interessado na pesquisa e precisa se alimentar de documentos. Assim, uma fotografia digital de um objeto jamais poderá substituir o objeto em si. Ela é um recurso, em primeiro lugar. Expor o acervo, colocar as pessoas em contato com os objetos e usar a tecnologia como um suporte para aprofundar questões, que podem ser muito difíceis de enfrentar, é a função que atribuímos aos recursos digitais.
O Museu Paulista investiu muito em acessibilidade, não apenas física, mas também cognitiva. Isso significa que as exposições ambicionam alcançar um público mais diverso. Ao dispor de recursos digitais, o objetivo é esclarecer, elucidar certas questões, criar contrapontos e aprofundar certos temas. Justamente por causa da acessibilidade os multimídias do Museu Paulista são muito simples e fáceis de acessar.
Internamente, passamos muito tempo discutindo as formas de acesso aos multimídias. Por exemplo, os botões giratórios criam dificuldades para pessoas que possuem alguma limitação para fazer o movimento de giro. Portanto, optamos por usar apenas botões grandes que funcionam por pressão. Acredito que a simplicidade da tecnologia dará um certo fôlego aos recursos, porque os recursos digitais que são muito exuberantes envelhecem rapidamente.
Ao mesmo tempo, utilizamos recursos que não são tecnológicos, mas envolvem uma artesania técnica, como os objetos táteis. O Museu Paulista possui mais de 330 objetos táteis em exposição, que também são elementos de apoio para a compreensão dos temas tratados. Assim, os recursos expográficos não se limitam apenas aos digitais, mas também incluem objetos tridimensionais produzidos por artesãos com técnicas diferenciadas.
Além do investimento tecnológico nas exposições, o Museu Paulista tem investido bastante nas mídias digitais. Temos um projeto na Wikipédia, no qual alimentamos verbetes sobre itens de nosso acervo e disponibilizamos imagens em alta definição. Também realizamos curadorias digitais e estamos transferindo o catálogo do acervo para a plataforma de repositórios digitais de código aberto denominada Tainacan. Ao investir no meio digital, o Museu Paulista pode ser consultado e visitado por pessoas que não podem conhecê-lo presencialmente.
Em resumo, o Museu Paulista vem procurando se transformar em todas as frentes curatoriais – política de aquisição, de documentação, de produção de conteúdo e comunicação de suas coleções.
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