Desigualdade(s) no mercado de trabalho por Antonia Quintão

Antonia Aparecida Quintão é Pós-Doutora pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo e a sua pesquisa analisou os desafios que as mulheres negras encontram para ocupar cargos estratégicos e de liderança. Foi coordenadora de cursos de Pós-Graduação Lato Sensu na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde atualmente leciona e orienta pesquisas sobre Diversidade Racial nas Organizações. É Presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Vice-Presidente no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde é responsável pela organização dos eventos referentes a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) ONU-Resolução 68/237. É pesquisadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (Portugal) e consultora de Diversidade e Inclusão nas Organizações. Tem atuado também na área de formação de professores, letramento sobre questões raciais e orientação para a aplicação da lei 10.639/2003. É autora de livros e capítulos sobre a história e a cultura da população negra, tendo participado do Conselho do Museu Afro Brasil Organização Social de Cultura. Foi coordenadora de cursos de graduação sobre História da África e em 2019 escreveu o capítulo intitulado: Africa in Brazil: Slavery, Integration, Exclusion do livro: Brazil-Africa: Relations Historical Dimensions and Contemporary Engagements, publicado pela Editora James Currey no Reino Unido.
Antonia Aparecida Quintão é Pós-Doutora pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo e a sua pesquisa analisou os desafios que as mulheres negras encontram para ocupar cargos estratégicos e de liderança. Foi coordenadora de cursos de Pós-Graduação Lato Sensu na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde atualmente leciona e orienta pesquisas sobre Diversidade Racial nas Organizações. É Presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Vice-Presidente no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, onde é responsável pela organização dos eventos referentes a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024) ONU-Resolução 68/237. É pesquisadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (Portugal) e consultora de Diversidade e Inclusão nas Organizações. Tem atuado também na área de formação de professores, letramento sobre questões raciais e orientação para a aplicação da lei 10.639/2003. É autora de livros e capítulos sobre a história e a cultura da população negra, tendo participado do Conselho do Museu Afro Brasil Organização Social de Cultura. Foi coordenadora de cursos de graduação sobre História da África e em 2019 escreveu o capítulo intitulado: Africa in Brazil: Slavery, Integration, Exclusion do livro: Brazil-Africa: Relations Historical Dimensions and Contemporary Engagements, publicado pela Editora James Currey no Reino Unido.

Em março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a professora Antonia Quintão a respeito da desigualdade no ambiente de trabalho empresarial.

INB: Uma característica importante da sociedade brasileira é a diversidade étnico racial do seu povo. Contudo, nas estruturas organizacionais prevalece uma homogeneidade étnico racial em diferentes posições de comando. Como explicar essa contradição?

Antonia: Gostaria de iniciar a minha resposta destacando que ao longo da história, o mercado de trabalho tem excluído e segregado sistematicamente a população negra. “O censo de 1893 da cidade de São Paulo mostrou que 72% dos empregados do comércio, 79% dos trabalhadores das fábricas, 81% dos trabalhadores do setor de transportes e 86% dos artesãos eram estrangeiros. 

Uma fonte de 1902 estimou que a força de trabalho industrial na capital era composta de mais de 90% de imigrantes; em 1913, o Correio Paulistano estimou que 80% dos trabalhadores do setor de construção eram italianos; e um estudo de 1912 sobre a força de trabalho em 33 indústrias têxteis do Estado descobriu que 80% dos trabalhadores têxteis eram estrangeiros, a grande maioria italianos” (1998, p. 123). A ocupação majoritária do branco imigrante no mercado de trabalho acabou por empurrar a população não-branca para as ocupações subalternas e mais desvalorizadas (Hasenbalg & Silva, 1988). 

De outro lado, para a população negra foi reservada a “lei da vadiagem”. Em 1890, dois anos depois da promulgação da Lei Áurea, foi estabelecida por legislação a definição do crime de “vadiagem”. Se uma pessoa andasse na rua e não comprovasse estar trabalhando, podia ser levada à delegacia. O “crime” rendia até 30 dias de prisão. A lei também proibia a mendicância, levando à prisão por 15 dias a três meses. Posteriormente as elites paulistanas, enriquecidas com o café, investiram na europeização de São Paulo e os negros foram expulsos das áreas centrais para a periferia da cidade.

Trata-se de um contexto que precisa ser apresentado, pois revela a magnitude e a violência da segregação e do racismo que a população negra enfrentou no período posterior à Lei Áurea. Depois de séculos de escravidão, não receberam qualquer tipo de indenização, reparação ou uma pequena propriedade que garantisse pelo menos o sustento da família. Pelo contrário, crianças negras eram proibidas de frequentar escolas e os adultos impedidos de ingressar no mercado de trabalho formal.

Nos dias atuais, ao analisarmos as pesquisas referentes ao período pós-pandemia, verificamos que mais uma vez a população negra é a mais afetada pelo desemprego, portanto, o primeiro grande desafio é encontrar uma oportunidade no mercado de trabalho. O cenário é ainda mais grave para as mulheres negras, que enfrentam além do racismo, o machismo e o preconceito de classe. Desta forma, buscam garantir a sobrevivência de suas famílias na informalidade,  enfrentando no seu cotidiano situações de vulnerabilidade social.

Um outro grande desafio refere-se ao reconhecimento de sua formação e investimento em especialização e qualificação. Frequentemente a população negra é contratada para exercer cargos que não condizem com a sua experiência, sendo constrangida a conviver com o subaproveitamento de suas habilidades e seus talentos. Isso acontece porque as pessoas são frequentemente designadas para funções abaixo de suas qualificações, mesmo quando possuem formação superior e especialização. Há alguns anos li um artigo que mencionava a prática de acrescentar informações inverídicas nos currículos, com o objetivo de aumentar as possibilidades de contratação. 

Na minha experiência pessoal, tive que alterar o meu currículo, não para incluir qualificação que não possuía, mas para excluir os meus títulos, conseguidos com muito esforço e trabalho. Concluí o meu doutorado na Universidade de São Paulo ainda nos anos noventa, tendo recebido uma bolsa de estudos para realizar parte das minhas pesquisas no exterior. Quando retornei, acreditava que teria muitas possibilidades de trabalho, uma vez que minha formação acadêmica era muito consistente. No entanto, observei que o racismo estrutural fechava todas as portas, não obstante as minhas titulações. De fato, recebia retornos positivos e elogiosos do meu currículo e participei de dezenas de entrevistas. Porém, todo o entusiasmo cessava assim que o recrutador ou coordenador me conhecia pessoalmente, ou seja, uma sociedade racista determina os lugares, as profissões e os cargos que a população negra pode exercer e aqueles que são vetados. A docência no ensino superior não era um lugar para ser ocupado por uma mulher negra. Resumindo a história, a minha primeira oportunidade para lecionar somente aconteceu quando excluí do meu currículo o título de mestre e de doutora e consegui algumas aulas como substituta em um supletivo de primeiro grau. Apresento esse depoimento pessoal, porque ele evidencia a enorme distância que existe entre os homens brancos, que podem inclusive colocar no currículo qualificações que não possuem e as mulheres negras, que precisam excluí-las ou ignorá-las para conseguir uma oportunidade no mercado de trabalho.

Recentemente, escrevi um artigo intitulado Racismo acadêmico: apontamentos sobre a exclusão de docentes negras e negros das universidades brasileiras, em parceria com o professor Daniel Carvalho de Paula. Apresentamos esse trabalho em diversos congressos, onde tivemos a oportunidade de discutir a exclusão de professoras e professores negros das universidades brasileiras. São igualmente invisibilizadas, segregadas e raramente alcançam cargos de coordenadoras, diretoras, pró-reitoras e reitoras. Trata-se de uma enorme incoerência, pois a universidade é, por excelência, um espaço de construção do pensamento crítico, do debate, dos questionamentos e da construção do conhecimento. 

Cabe destacar que o Brasil é signatário da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, acordada por 193 países em 2015, por ocasião da Assembleia Geral da ONU em Nova York. Essa agenda apresenta os grandes desafios da humanidade sob a forma de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).  O primeiro refere-se à erradicação da pobreza. O quinto, igualdade de gênero, o oitavo,  trabalho digno e desenvolvimento econômico e o décimo objetivo refere-se a Redução das Desigualdades.

INB:  Atualmente, as demandas por representatividade vem crescendo. Porém, muitas vezes o mercado de trabalho não oferece as mesmas oportunidades para todos. Como reverter esse cenário de desigualdade?

Antonia: Pesquisa realizada pela McKinsey & Company, uma das mais importantes consultoria de alta gestão, revelou que 91% das empresas brasileiras não refletem a composição demográfica da força de trabalho e da população do país. Segundo a mesma consultoria, a diversidade importa e novas pesquisas apontaram que a diversidade de gênero, racial e étnica são mais propensas a ter retornos financeiros. Quando as empresas se comprometem com uma liderança diversificada, elas são mais bem-sucedidas. Empresas mais diversas “são mais capazes de conquistar os melhores talentos, amplia  o atendimento ao cliente, a satisfação dos funcionários e a tomada de decisões, e tudo isso leva a um ciclo virtuoso de retornos crescentes. Isso, por sua vez, sugere que outros tipos de diversidade – por exemplo, idade, orientação sexual e experiência (como uma mentalidade global e fluência cultural) – também trarão algum nível de vantagem competitiva para empresas que podem atrair e reter talentos tão diversos.” (www.mckinsey.br)

Outra importante justificativa para investir na gestão da diversidade e  na implementação de políticas públicas, infelizmente pouco divulgada é a Década Internacional de Afrodescendentes (2015-2024), da qual o Brasil também é signatário. Foi criada pela ONU para enfrentar a situação de desvantagem que a população negra encontra no Brasil e em muitos outros lugares. Ela se baseia em três pilares: justiça, reconhecimento e desenvolvimento. O Programa de Atividades da Década Internacional de Afrodescendentes deve ser implementado em vários níveis. Em nível nacional devem ser viabilizadas medidas concretas e práticas por meio da adoção e efetiva implementação, nacional e internacional de programas de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata enfrentados pelos afrodescendentes.

Nos níveis regionais e internacionais, a comunidade internacional e as organizações internacionais e regionais são chamadas para, entre outras coisas, sensibilizar e disseminar a Declaração e Programa de Ação de Durban e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ajudar os Estados na implementação plena e efetiva de seus compromissos no âmbito da Declaração e Programa de Ação de Durban, recolher dados estatísticos, incorporar os direitos humanos nos programas de desenvolvimento e honrar e preservar a memória histórica de pessoas afrodescendentes.

Os dados sobre as desigualdades que atingem a população negra no Brasil são abundantes, e embora necessitem ser ampliados quanto à perspectiva interseccional com gênero, seguem demonstrando uma inequívoca segmentação racial e de gênero no mercado de trabalho.

Cabe destacar também que as vantagens da gestão da diversidade na cultura organizacional são inúmeras: promove a inovação, a criatividade, facilita a resolução de problemas de uma maneira competente, combate a intolerância, que tem se agravado nos últimos tempos e contribui para a promoção da cidadania, na medida em que acolhe e atrai todos os talentos da sociedade, sem distinção. Além disso, o discurso da solidariedade e da empatia somente faz sentido e tem autoridade, quando se traduz em ações concretas. Por esta razão  é fundamental que a liderança da empresa esteja engajada e comprometida, que a organização promova cursos, debates e palestras visando o letramento sobre a questão racial, e que o sentimento de acolhimento e pertencimento prevaleça, para que a diversidade e a inclusão tornem-se valores da cultura organizacional.

INB:  Qual é a importância de problematizar os estudos organizacionais levando em consideração as relações que se estabelecem em ambientes corporativos?

Antonia: As grades curriculares precisam incluir na formação de todos os profissionais, uma disciplina que promova o conhecimento, o debate e a reflexão sobre as relações étnico-raciais no Brasil, pois o racismo é o maior dilema da nossa sociedade e a cor da pele o mais impactante marcador de desigualdade em um país majoritariamente negro. O sistema de ensino brasileiro precisa romper o silêncio e enfrentar a histórica omissão sobre esta temática. O letramento sobre a questão racial é uma necessidade urgente,  básica e fundamental, pois o racismo se manifesta no nosso cotidiano como uma prática que atenta contra a cidadania e contra os direitos humanos e civis da população brasileira.

Combater e enfrentar o racismo deve ser o compromisso de toda a sociedade. Percebemos um pequeno avanço nos últimos anos, ainda pouco expressivo, considerando que a população negra corresponde a quase 56% da população total do país. Mostra-se essencial, portanto, que se multipliquem os programas que apoiam e incentivam a diversidade nas organizações, visando combater o racismo estrutural que justifica, normaliza e banaliza as injustiças contra a população negra, particularmente as mulheres negras. 

É fundamental demonstrar concretamente o compromisso com a gestão da diversidade, apresentando respostas objetivas para as seguintes questões: Quantas pessoas negras fazem parte da sua organização? Estão representadas em todas as áreas? Quantas exercem cargos estratégicos e de liderança? A ausência de respostas pode indicar a necessidade de iniciativas, ações organizacionais e políticas públicas para garantir a diversidade, a inclusão e a equidade, considerando também que todas as pessoas devem se sentir bem-vindas e acolhidas em seu local de trabalho, não apenas para compartilhar suas próprias experiências, mas também para que encontrem novas perspectivas.

Quer saber mais sobre esses e outros temas? Acesse a página do Diálogos INB e confira todas as entrevistas realizadas com profissionais e professores de diversas áreas do conhecimento!