No dia 22/04 , a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, se reuniu com o gestor de comunicação e marketing Thiago Silveira Annunziato do INB para contar sua história de formação. Para contar essa história ele apresentou como marcos referenciais, os livros mais fundamentais de sua vida.
Os desdobramentos da infância
A minha relação com a leitura começou na infância e foi, sobretudo, incentivada pela minha mãe, que era professora de História na rede pública do Estado de São Paulo e em escolas particulares. Desde cedo, ela lia diversos livros para mim, como “Lolô Barnabé”, que contava sobre homens e mulheres na pré-história, quando viviam em cavernas e caçavam para se alimentar.
Meu pai também teve uma grande influência no meu gosto pela literatura. Ele era professor de matemática e, assim como minha mãe, lecionou por anos na rede pública. Antes de dormir, inventava histórias, e acredito que se não fosse matemático, teria sido escritor. Sua capacidade de imaginar era memorável e um dia ele me contou a história da Rainha Melanciosa, que, embora fosse inventada, era repleta de alusões a princesas, príncipes e encantamentos. Suas narrativas sempre tinham um toque de comédia, algo característico de sua personalidade.
Durante a infância, minha mãe costumava ler livros de história e gibis da Turma da Mônica para mim. Assim como outras crianças, eu adorava esses momentos, especialmente quando aconteciam de manhã, enquanto tomávamos café em família. Com o tempo, no entanto, esse processo se transformou. Embora eu ainda me encantasse pelas histórias inventadas de meu pai, os gibis e os quadrinhos, acabei me distanciando das leituras.
Perto do mar
Essa época de impasses teve início em 2006, quando morava no litoral sul de São Paulo. Embora tenha nascido na capital, quando era muito pequeno, meus pais decidiram se mudar para a praia, o que tornou a infância muito agradável. No colégio, gostava de todas as matérias, nadava no rio e fazia lição de casa com vista para o mar. No entanto, nesse ano, nossa casa sofreu um assalto, o que marcou intensamente a minha vida e a dos meus pais. Um dos efeitos desse episódio foi um bloqueio emocional que persiste até hoje.
É curioso como esse bloqueio surgiu repentinamente, de um dia para o outro. Os assaltantes levaram tudo o que tínhamos em casa, incluindo meus bichinhos de pelúcia, livros, jóias e todo o dinheiro guardado pelos meus pais. Foi um trauma muito grande para todos nós. Como resultado, deixamos o litoral e voltamos para São Paulo. No entanto, enfrentamos dificuldades financeiras, pois não tínhamos mais dinheiro ou bens materiais. Meu avô paterno nos acolheu em sua casa, mas, para uma criança, a situação era complicada, principalmente porque o ciclo social, as amizades e os espaços familiares ficaram para trás.
Diante desse cenário, fiquei uma semana sem falar e, quando finalmente consegui me comunicar, comecei a gaguejar. Por muitos anos, não conseguia expressar corretamente as palavras e frases que passavam pela minha cabeça. Desde os sete anos de idade, quando essa condição se manifestou, iniciei um tratamento psicanalítico, e com isso, pude perceber diversas questões. Entre elas, compreendi que minha experiência escolar foi a que mais me afastou da literatura.
Por entre concreto e multidões: a escola
A escola foi um período muito difícil para mim, principalmente porque as pessoas no litoral eram mais abertas e interessantes. No ambiente urbano mais amplo, tudo era extremamente volátil e acabei me retraindo demais em mim mesmo. Enfrentei vários problemas na escola, inclusive com relação ao aprendizado das matérias e, cada vez mais, perdi o interesse pela leitura.
Um dos meus maiores medos em relação à leitura eram as aulas de língua portuguesa do Ensino Fundamental II. Lembro-me da sala de aula com as carteiras em fileiras e dos livros de português de William Roberto Cereja, o primeiro livro de português recomendado pela professora. Cada aluno tinha que ler um parágrafo em voz alta, e quando chegava a minha vez, eu não conseguia pronunciar nenhuma palavra. No entanto, ouvia distintamente as várias vozes, em diferentes tons, zombando de mim e ecoando por toda a sala.
Esses episódios causaram bloqueios que me acompanharam por muito tempo, desde o Ensino Fundamental II até o Ensino Médio. Meu contato com a leitura só existia para realizar as provas. Naquela época, também não tinha acesso aos livros que poderia gostar, porque a literatura associava-se muito mais à preparação para o vestibular e aos estudos universitários do que ao prazer estético. Esse cenário começou a mudar no primeiro ano do Ensino Médio, quando, mesmo com os problemas de gagueira persistindo, vivi um momento de rebeldia que me levou à obra de Charles Bukowski.
A busca por algo mais
Em certa ocasião, enquanto caminhava pela rua, notei vários livros de Bukowski dispostos em uma banca. Sem intenção específica, comprei um exemplar de que não me lembro o nome, apenas sei que era de Bukowski. Comecei a ler e me senti ainda mais deprimido. Parecia que não havia maneira de expressar minha própria linguagem, e vivenciava a grande monotonia e tristeza na escrita do autor, o que apenas reforçava as minhas próprias sensações.
Foi um processo muito difícil, que também envolveu o autoconhecimento em relação à sexualidade. Ao mesmo tempo, me abri mais para o mundo quando assisti a um filme sobre dois irmãos que se apaixonaram e que mencionava um livro de Hilda Hilst chamado Contos d’escárnio: textos grotescos. Fiquei completamente empolgado e logo adquiri um volume. Mesmo não me sentindo próximo da literatura, gostava do ambiente das livrarias paulistas, como a Livraria Cultura e a Martins Fontes. Eu as visitava com frequência, embora nunca saísse com um livro nas mãos. Dessa vez, comprei a obra de Hilda Hilst e iniciei essa incrível experiência de leitura.
Contos d’escárnio: textos grotescos e outras leituras
Até aquele momento, nunca havia encontrado alguém que abordasse de forma tão intensa as relações sexuais, o erotismo e o grotesco na sociedade, com um toque cômico tão marcante como Hilda Hilst trazia em suas páginas. Depois, busquei outras obras da autora, como “A obscena senhora D”, que conta a história de uma senhora que decide viver no vão da escada de casa para experimentar o mais profundo isolamento. Hilda Hilst me ensinou a me abrir mais para mim mesmo.
Ao mesmo tempo, a gagueira ainda estava muito presente nos últimos anos do colégio. Comecei a explorar os poemas românticos de Lord Byron e “A Noite na Taverna” de Álvares de Azevedo. Apesar de serem obras deprimentes, elas me proporcionaram um contato interessante com o mórbido. Eu me sentia tão inerte que o mórbido despertava alguma movimentação emocional em mim. Em 2015, passei por um processo de reconhecimento da minha própria sexualidade, o que me fez ser mais autêntico comigo mesmo e, consequentemente, parar de gaguejar. Evidentemente, as inseguranças ainda persistem, mas aprendi técnicas para controlá-las, como prestar atenção na respiração.
Controlar a maneira como respiro me ajuda a fluir com as palavras. É interessante como, a partir do momento em que nos reconhecemos e nos aceitamos como somos, tudo em nossa vida muda para melhor. Depois de ler os poemas de Byron, que me permitiram explorar as questões mórbidas e ter um contato mais intenso com a morte, e os textos de Hilda Hilst, que me ensinaram a encontrar humor na tragédia, comecei a me abrir para a literatura brasileira.
A escolha da faculdade
Isso aconteceu no fim do Ensino Médio, em 2016. Nesse momento, optei por cursar Rádio e Televisão no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, mas logo no início percebi que essa instituição não se adequava ao meu perfil. Isso porque era bastante elitista, assim como muitas faculdades particulares no Brasil. Enquanto era estudante de Rádio e Televisão, passei a me interessar por teorias da comunicação, especialmente aquelas que discutiam o fenômeno da comunicação de massa. Dentre elas, destaca-se a Teoria da Bala Mágica ou Hipodérmica, da Escola Norte-Americana, e posteriormente conheci as contribuições da Escola de Frankfurt, como a Dialética do Esclarecimento.
No entanto, era muito caro estudar na Belas Artes e tinha dificuldades para arcar com as mensalidades. Como não obtive nenhuma bolsa de apoio ou qualquer tipo de desconto, abandonei o curso após um semestre. Mas mesmo nesse curto período, adquiri diversos conhecimentos nas áreas de sociologia da comunicação e antropologia. Um dos meus professores favoritos era o antropólogo Ronaldo Matias. Lembro-me que, em uma edição da SP-Arte no início de 2017, encontrei seu livro sobre antropologia cultural e o devorei com grande entusiasmo. Sempre gostei de ter esse contato com o outro, sem nenhum preconceito prévio.
Entre 2017 e 2018, retornei ao cursinho pré-vestibular e me preparei para prestar novamente as provas de Rádio e TV. Nesse período, também me aproximei do cinema italiano e fiquei particularmente encantado com um filme que para mim foi intenso e erótico, justamente por se relacionar com a minha sexualidade. Me refiro ao Me chame pelo seu nome, com o ator Timothy Chalamet, cuja estética é fascinante. Logo em seguida, comprei o livro que inspirou o filme, escrito por André Aciman, e o li de uma só vez.
Gostei muito da obra e ela me incentivou a me aprofundar ainda mais na literatura homoerótica. Assim, conheci o jornalista americano Gay Talese, sem saber que suas obras não estavam relacionadas à homossexualidade, mas sim ao jornalismo literário. Em “O Voyeur”, por exemplo, ele conta a história de Gerald Foos, que construiu uma espécie de observatório para bisbilhotar a vida de seus hóspedes.
Motivado a conhecer mais a literatura homossexual, encontrei um livro muito interessante chamado O Quarto de Giovani, de James Baldwin, que abordava a perspectiva da bissexualidade, bem como suas dúvidas. Por meio dessa narrativa, o leitor expande seus horizontes para o cotidiano, o vazio existencial e a liquidez nas relações afetivas.
Enquanto aguardava os resultados do vestibular para Rádio e Televisão, também esperava a aprovação no curso de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Embora essa não fosse minha primeira opção, pensei que a formação em jornalismo me permitiria trabalhar na área de rádio e televisão. Assim, iniciei a graduação na PUC-SP.
A graduação
Nesse momento, minhas leituras não tinham um propósito definido. Estava ansioso para ver o que a PUC-SP, com sua história incrível de resistência à ditadura militar e de marcante transgressão, poderia me proporcionar. Trata-se de uma faculdade que recebeu personalidades como Dom Paulo Evaristo Arns e o professor Paulo Freire, além de tantos outros.
No entanto, por ser uma instituição privada, eu precisava trabalhar para pagar as mensalidades. Apesar de ser uma faculdade mais progressista, ainda era cara e elitista. Logo no início do curso, comecei um estágio na Revista Caras, mesmo que isso não tivesse nada a ver com minha personalidade. Na época, eu já me vestia com calças largas, sandálias, camisetas básicas e era fumante. Aquilo não combinava comigo pessoalmente, pois meu perfil não era o de alguém que escreve fofocas o dia todo.
Durante a disciplina de Jornalismo e Política, com o professor José Arbex Júnior, desenvolvi um contato muito interessante com ele que persiste até hoje. Em certo dia, cheguei à sua aula e contei que havia sido aprovado para o estágio na Revista Caras, mas que não queria trabalhar lá de jeito nenhum. Com sua voz rouca e risada característica, Arbex me convidou para trabalhar no acervo histórico Mário Pedrosa, localizado no Centro de Documentação e Memória da Unesp.
O acervo histórico e as aulas particulares
Essa oportunidade me aproximou mais de algo que eu gostava. Lembro-me muito bem das suas palavras quando me convidou: “esse trabalho será fundamental para sua formação como cidadão”. Isso é realmente verdade e sinto-me muito feliz por ter confiado esse trabalho a mim. Antes de iniciar o estágio no acervo histórico, precisei ter aulas intensivas com o professor Arbex sobre todas as internacionais comunistas. Dentre suas recomendações, destaca-se uma biografia de Rosa Luxemburgo, cuja discussão era sobre a divisão do Partido Comunista alemão.
Tratava-se de uma decisão parlamentar sobre envolver ou não a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. O partido liderado por Rosa se opôs a isso, enquanto a grande maioria do campo progressista apoiou. Rosa fundou o Partido Espartaquista e foi brutalmente assassinada por uma facção radical de esquerda. Esse episódio, relatado em sua biografia, chamou minha atenção principalmente pelo fato de ela ter usado o nome Espartaquista, uma clara referência a Esparta da Grécia Antiga.
Em seguida, Arbex me indicou o livro chamado Salário, Preço e Lucro, de Karl Marx. Cada palavra escrita nas páginas era um desafio para mim e eu não conseguia entender nada do texto. Então, disse ao professor que estava com muita dificuldade e, em poucas palavras, ele me explicou que se tratava de uma obra escrita para a população da época. Nervoso, ri como um completo idiota, pois pensava na dificuldade de assimilar algo que deveria ser simples e acessível como uma cartilha. As aulas com Arbex me ajudaram muito mais do que as leituras em si, mas suas recomendações sempre estavam presentes em minha cabeceira.
No acervo histórico, tive acesso a diversos materiais relacionados às pessoas mortas, desaparecidas e refugiadas durante a ditadura civil-militar no Brasil. Descobri correspondências do próprio Mário Pedrosa, um artista, filósofo e fundador zero do Partido dos Trabalhadores. Durante o estágio, li um livro de Gilles Lipovetsky sobre moda, chamado O império do efêmero, que despertou a ideia de escrever sobre a resistência de Zuzu Angel durante a ditadura militar.
Com o auxílio do professor Arbex e de um querido amigo chamado Jean Bouchara, que também trabalhou no acervo histórico, escrevi um artigo muito interessante sobre a resistência na ditadura militar brasileira. Passei bastante tempo lendo correspondências e jornais antigos, principalmente o Versus. Também conheci o jornal Lampião que, entre 1970 e 1980, se destinava ao público homossexual e desafiava completamente os padrões heteronormativos.
Os espaços urbanos
A disciplina de Jornalismo e Espaços Urbanos me apresentou a outros universos de discussões, especialmente relacionados às questões urbanas. Fiquei encantado com o livro O direito à cidade de Henri Lefebvre, que me ajudou a problematizar quem sou eu na cidade de São Paulo. Ao mesmo tempo, passava pelo processo de me entender e me reconhecer enquanto homem gay. Muitas pessoas pensam que o mero ato de se assumir homossexual é capaz de resolver todos os nossos questionamentos internos, mas não é assim. As dúvidas persistem durante o processo de adaptação e autoconhecimento.
Após cursar a disciplina Espaços Urbanos e Conflitos Sociais, busquei estabelecer a minha identidade na cidade. Esse processo se intensificou no contexto do governo de Jair Bolsonaro, que gerou muitas contradições nesse movimento. Ser uma pessoa gay na cidade de São Paulo e decidir como me vestir, me locomover e me comportar, abriu muitas portas para o autoconhecimento. A atmosfera acolhedora da PUC-SP contribuiu para que eu enfrentasse tudo isso com mais tranquilidade.
Pandemia e outras leituras
Em 2020, minhas reflexões internas se intensificaram ainda mais quando li A morte em Veneza de Thomas Mann. Lembro-me de ter comprado um exemplar na passagem literária da Consolação, em São Paulo. Antes disso, já havia me atraído pelo autor por causa de sua novela Tony Kruger. Li esse livro durante minhas viagens diárias no ônibus 175-P, que me levava até a PUC-SP e, a cada página, a história de um menino gay que estava se descobrindo me cativou.
É reconfortante saber que existe uma literatura desse tipo, escrita por um autor alemão do século XX que enfrentou o nazismo. As palavras de Mann são extremamente delicadas ao retratar a jornada de um adolescente que conhece sua identidade e sente ciúmes de seu amigo. Esse livro me acompanhou no início de 2020, logo antes do início da pandemia da COVID-19. Quando o isolamento social começou para as pessoas que tinham condições financeiras e de trabalho, elas fecharam-se em suas casas. Eu também passei muito tempo em completo isolamento e os livros se tornaram meu refúgio.
Nesse mesmo período, adquiri 120 dias de Sodoma de Marquês de Sade, livros sobre a Teoria Queer de Judith Butler e Às avessas de Karl Huysmans. No entanto, sentia falta de explorar um universo puramente brasileiro. Então, em uma impulsiva compra noturna na Estante Virtual, encontrei Ilusões do Mundo de Cecília Meireles. Uma das crônicas que mais me recordo dessa obra contava a história de uma mulher que se dirigia à sua casa e deparava-se com um cão machucado, solitário e deitado na escada. A personagem refletia sobre o que fazer com ele, se o levaria para dentro e o alimentaria. Na verdade, o cão era uma metáfora da humanidade e dos nossos conflitos enquanto seres humanos.
Em uma passagem específica, Meireles retrata como o cachorro se levanta da escada com uma expressão triste e indiferente. Ele olha para a mulher, passa pelos vasos de flores no chão e vai embora. Nesse momento, ela reflete que o cão solitário e desamparado poderia ser qualquer um de nós. Foi uma leitura realmente impactante para mim, e retomei muitas de suas reflexões ao longo da minha trajetória acadêmica.
Outro autor que me acompanhou nesse processo foi Jorge Amado. Por ter tido contato com muitas referências europeias, em determinado momento da vida, senti que faltava algo. Então, esforcei-me para conhecer mais a literatura brasileira e encontrei um livro fundamental do escritor chamado O País do Carnaval, que narra a chegada de um requintado garoto que foi estudar na França um tempo, e depois retornou ao Brasil durante o Carnaval.
Porém, não posso deixar de mencionar Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres de Clarice Lispector, pois essa obra foi fundamental para me situar nos relacionamentos amorosos no início da vida adulta. Nesse período, devido à pandemia, o curso de Jornalismo passou a ser ministrado à distância, o que me deu mais tempo para ler. Conheci a obra de Eliane Brum e sua surpreendente habilidade em interligar histórias de pessoas invisíveis que passam por nós todos os dias. Sua capacidade de contar o real me fez relembrar o conto de Lolo Barnabé, muito presente na minha infância.
Tudo isso aconteceu no final de 2021, quando finalmente tomei consciência de que havia escolhido a graduação certa para me formar. A possibilidade de escrever sobre o outro e seu impacto em mim era uma potência enorme para armazenar tudo o que sentia, lia e pensava. A escrita, assim como a literatura, é essencial para o autoconhecimento e a análise do eu.
O livro-reportagem
Para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Jornalismo, decidi escrever um livro-reportagem que me representasse. Embora ainda esteja em processo de edição, ele se chama Travessia – Cidade Não Identificada e aborda a história de diversas mulheres cisgênero de quarenta anos que se prostituem na região da Luz, em São Paulo. Elas ficam sentadas, aguardando os homens que pagam um valor muito baixo pelos programas. A região da Luz foi estratégica para a expansão da cidade, mas tornou-se cada vez mais decadente e quem vai até lá normalmente está interessado em visitar apenas a Pinacoteca, o Memorial da Resistência ou a Sala São Paulo.
Ao longo do meu TCC, entrevistei várias prostitutas e coletei suas histórias tragicômicas e resilientes. Inclusive, ouvi diversos relatos sobre seus programas e como elas acabaram nessa condição. São histórias verdadeiramente incríveis, mas que afetam o leitor de forma contundente. Conforme avançava nas entrevistas com mulheres cisgênero, comecei a relatar as narrativas de mulheres trans que recebem uma bolsa auxílio do Governo do Estado de São Paulo, pelo projeto “Transcidadania”. Trata-se de uma iniciativa cujo objetivo é reintegrar as mulheres, permitindo que elas concluam o ensino médio e ingressem no mercado de trabalho. No entanto, embora alguns considerem um privilégio receber a bolsa, seu valor é reduzido e não cobre as necessidades básicas de alguém que vive na metrópole, como aluguel, transporte, alimentação, cuidados básicos de saúde e higiene, etc.
Todas as pessoas possuem necessidades básicas e é por isso que muitas mulheres trans que fazem parte do programa recorreram à prostituição para sobreviver. Por outro lado, há mulheres que trabalham em outras áreas, como manicures em salões de beleza. No entanto, mesmo nesses espaços, há estigma e preconceito em relação à persistência desses corpos. Trata-se de uma verdadeira jornada dupla e quando elas participam do programa, levam apenas uma bolsa com camisinha e um canivete para proteção pessoal.
Um aspecto interessante é que muitas mulheres que contribuíram para o livro não se prostituem mais. Elas conseguiram encontrar oportunidades de atuação por meio desse programa de reinserção. Agora, trabalham em diferentes áreas, inclusive no mercado de beleza e algumas até participam de concursos como o Miss Trans São Paulo. Suas vidas foram completamente transformadas.
Em razão da nossa aproximação, recorri diretamente aos textos de Sigmund Freud e Carl Jung. Dessa forma, busquei identificar alguns complexos sexuais que permeiam a vida dessas mulheres e situar as questões no campo da psicologia social contemporânea. Assim, meu trabalho tornou-se uma combinação de jornalismo literário e pesquisa antropológica. Senti a necessidade de recorrer a autores e autoras como Marina Castanheda, uma psicanalista mexicana, para compreender um pouco sobre parafilia e o racismo na prostituição de mulheres cisgênero. Sobre esse assunto, o texto O racismo e sexismo na cultura brasileira de Lélia Gonzalez é fundamental.
Hoje, na cabeceira
Concluí minha graduação em Jornalismo no final de 2022 e retomei minha carreira no âmbito cultural. Atualmente, trabalho como gestor de comunicação e marketing no Instituto Norberto Bobbio. Neste momento, minhas leituras estão diretamente relacionadas aos autores argentinos e espanhóis. Isso ocorre porque sempre apreciei a sonoridade da língua espanhola, ouvi-la e conhecer sua cultura. Afinal, nós somos latino-americanos.
Na minha cabeceira, encontra-se Os Cadernos de Dom Rigoberto do escritor peruano Mario Vargas Llosa. É uma obra belíssima, erótica e sensual. Também estou lendo Los de Abajo, uma novela mexicana escrita por Mariano Azuela, escritor mexicano da época da revolução do século XX. Outra leitura fundamental para entender o contexto latino-americano é As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Recentemente, comecei a ler poesias esparsas do dramaturgo espanhol Federico García Lorca.
Dedico-me a estudar a literatura espanhola e argentina não apenas porque pretendo aprimorar meu conhecimento da língua. Na verdade, tenho um grande desejo, de realizar um mestrado em Barcelona ou Andaluzia, com foco em cultura e identidade. A minha ideia é comparar aspectos da literatura brasileira e espanhola. Como sempre, busco trabalhar com assuntos relacionados à história, à antropologia e à comunicação.
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