No dia 16 de março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a professora Diana Mendes sobre as relações entre futebol e democracia.
INB: É fato que o futebol é um dos esportes mais conhecidos do mundo. Além disso, é comum algumas pessoas dissociarem o futebol da política no sentido desses assuntos não se misturarem. Você concorda com essa afirmação?
Diana: Como procuro analisar o futebol e a política sob uma perspectiva humanista, contando as histórias das pessoas, vejo o futebol e a política como linguagens, discursos e formas de interação que funcionam por meio de signos e símbolos que podem ser mobilizados de várias formas e em diferentes contextos. Essa mobilização nunca é homogênea. Assim, algumas pessoas vivenciam o futebol reconhecendo sua face política, enquanto outras o veem apenas como um jogo desprovido de grandes significações.
Dessa forma, é essencial levar em conta os sujeitos e a forma como experimentam a prática esportiva. A meu ver, o futebol ultrapassou a condição de mero esporte e se tornou uma forma de comunicação entre as pessoas. Em São Paulo, por exemplo, o futebol chegou durante o período de industrialização da cidade, logo após o fim da escravidão e a proclamação da República. Surgiu em um momento de grande fluxo de pessoas para as cidades, incluindo ex-escravizados e imigrantes que buscavam emprego e moradia. Nesse contexto, acabou se tornando um canal de interação entre brancos e negros, imigrantes e brasileiros, ricos e pobres, em uma cidade que se reestruturava a partir de um intenso e excludente processo de urbanização e industrialização.
Tornou-se também um canal de reivindicações. E nesse ponto, vale destacar os traços populares que o esporte inevitavelmente assumiu, pois agricultores, ferroviários, padeiros, costureiras, trabalhadoras domésticas e donas de casa, alfaiates, pedreiros e tantos outros grupos utilizaram o esporte como uma forma de se organizar politicamente. Ao se reunirem para vivenciar o lazer e o tempo livre, criaram comunidades que atuavam alternativamente ao Estado (uma vez que este nunca foi capaz de realizar os direitos da maior parte da população). Assim, a identidade formada em torno do futebol, principalmente dos clubes de futebol, mobilizava pessoas a se ajudarem também em questões de trabalho, moradia ou representação política. É o que chamamos de associativismo popular que, para muitos pesquisadores, foi o embrião das associações de bairro. Então o futebol foi vivido sob a influência do modo de vida e das formas populares de organização política dos subúrbios da cidade, muito mais do que sob o modelo do football association inglês.
Ainda sobre o tema da experiência política popular, é preciso mencionar que a base da chamada identidade brasileira não foi estabelecida pela delimitação do território nacional, pelo fim da escravidão, pelo fim do domínio português ou pelo advento da República. Na verdade, essa identidade começou a se formar na medida em que vários grupos sociais se sentiram reconhecidos e representados em práticas que consideravam importantes. Sem dúvida, o futebol foi uma dessas práticas.
Getúlio Vargas foi o primeiro governante a mobilizar a importância desse esporte para a unidade do país. Ele capitalizou todo o potencial que o futebol possuía naquele momento e aproximou-o do Estado para promover uma unidade nacional. A terceira edição da Copa do Mundo de futebol, que aconteceu na França, figurou como um momento importante dessa promoção. Após a excelente campanha do Brasil na Copa de 1938, Vargas procurou se valer das imagens dos jogadores da seleção brasileira, sobretudo dos jogadores negros, Leônidas da Silva e Domingos da Guia, e organizou uma recepção pomposa para recebê-los no retorno da França. A partir dessa operação que associava os jogadores a uma prática nacional importante e essa, à uma identidade coletiva, o presidente aproveitava a oportunidade para criar um sentimento de nacionalidade e fidelidade ao país, com o objetivo de criar um estado nacional coeso.
INB: O futebol nos últimos anos tem se estruturado como uma plataforma de defesa da democracia. Como você enxerga essa relação entre futebol e democracia?
Diana: Este é um tema importante na linha do que eu vinha dizendo. Como se trata de um esporte que concentra e condensa uma ampla gama de experiências populares, o futebol é um recurso identitário importante. E como a democracia, a ação política democrática depende de elos identitários, a relação entre futebol e democracia torna-se estreita.
Não posso deixar de chamar a atenção para mais um aspecto nessa relação: o papel da ação política. Trata-se de um aspecto fundamental da democracia enquanto forma social, seguindo a leitura de Marilena Chauí. E a ação política exige discernimento e protagonismo individual e coletivo em face do reconhecimento de problemas comuns. Isso é pouco mencionado quando falamos em democracia, pois costuma-se destacar mais sua dimensão representativa.
Mas vejamos alguns exemplos de exercício da democracia associados ao futebol. Durante a pandemia da chamada Gripe “Espanhola” que atingiu fortemente o Brasil entre 1914 e 1919, muitas associações esportivas de bairro abriram suas portas como forma de auxiliar a Cruz Vermelha no cuidado de doentes. Além disso, realizaram ações voltadas à entrega de alimentos e outros mantimentos a quem necessitava. O mesmo aconteceu recentemente, entre 2020 e 2022, durante a pandemia da Covid-19. Clubes populares de futebol de várzea foram alguns dos primeiros grupos organizados a se mobilizar em prol das pessoas nas periferias de São Paulo. Algo que revela uma permanência importante em relação ao significado do futebol na vida sociocultural e política das pessoas.
INB: O ano de 2022 foi marcado pelas discussões sobre o processo eleitoral. A expressão dos posicionamentos a favor ou contra os candidatos também se manifestaram nas camisas dos torcedores de futebol. De que maneira este esporte afeta o processo eleitoral democrático brasileiro?
Diana: Desejo abordar essa questão estabelecendo conexões entre o período 2018-2022 e o período 1964-1984, pois após o golpe parlamentar e a janela de oportunidade aberta para faces autoritárias e nazifascistas, tivemos que lidar com um governo que procurou se organizar de maneira muito semelhante aos governos do regime militar brasileiro. (Com isso, aliás, notamos que se não elaboramos bem política, histórica e culturalmente o passado, ele volta a nos assombrar). Além de resgatar aspectos do período mais duro do regime militar como o terror e a tortura psicológica, vimos que o último governo também tentou associar o uso da camisa verde-amarela ao apoio a uma tendência política autoritária. Tal como o regime ditatorial explorou o amor à seleção brasileira de 1970 procurando aproximá-lo de uma certa ideia de pátria e de patriotismo defendida pelos militares, apoiadores deste último governo compraram a camisa da CBF, vestiram-na e participaram de carreatas e manifestações em frente a quartéis-generais das forças armadas. Muitos deles sequer gostam de futebol ou reconhecem a importância do esporte no país.
Mas, felizmente, apesar das tentativas, não foi possível monopolizar os símbolos e significados em torno do futebol. A camisa verde-amarela não só não pertence a uma única tendência política (sobretudo autoritária), como também não pertence à CBF. Não há exclusividade, ou monopólio de símbolos, eles se movimentam com seus agentes. Aliás, vale aproveitar o fim daquele momento político para contar uma outra história da camisa da seleção brasileira considerando seus usos em prol da democracia. E há momentos importantes a serem mencionados, basta lembrar do movimento “Diretas Já”, em que a cor amarela das camisas de lideranças figurou como um gesto de liberdade, ou das torcidas organizadas na luta contra as faces autoritárias e nazifascistas surgidas durante a pandemia.
📷Créditos da fotografia: Leonardo Rodrigues
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