Considerações sobre a cultura descartável com Isleide Arruda Fontenelle

Cultura descartável com Isleide Arruda Fontenelle, professora da FGV-SP.
Nos últimos tempos, não é incomum ouvirmos comentários que qualificam a nossa sociedade como excessiva, na qual o desperdício é a regra e seus efeitos colocam o planeta em risco. Há quem diga que vivemos sob a égide de uma verdadeira “cultura descartável”.

Embora haja uma qualificação para esse fenômeno, as suas características nem sempre são claras. Por isso, no dia 1 de fevereiro de 2023, o Instituto Norberto Bobbio convidou a professora Isleide Arruda Fontenelle para debater criticamente os significados da “cultura descartável”, bem como o seu impacto na sociedade contemporânea.

Apresentação

Isleide Arruda Fontenelle é Professora Titular da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV- SP), onde ministra cursos de graduação e pós-graduação e integra o Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração.

É autora dos livros “O nome da marca: McDonald´s, Fetichismo e Cultura Descartável“,  indicado ao Prêmio Jabuti em 2003, e “Cultura do Consumo: Fundamentos e Formas Contemporâneas”, além de outros livros, capítulos de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais.

A cultura descartável no século XX

INB: O século XX foi marcado por inúmeras reflexões que buscam analisar fenômenos culturais sob o ponto de vista da mercadoria e da propaganda. Já no século XXI, parece que a mercadoria se incorpora cada vez mais em todas as dimensões da nossa vida. Na sua opinião, de que forma a publicidade interfere e ressignifica a cultura?

Isleide: Você tem toda razão. De fato, no século XX ocorreram a criação e a consolidação do que eu chamo de instituições voltadas ao desenvolvimento de uma cultura específica, a cultura do consumo. Nesse contexto, constituiu-se também a figura do consumidor, o que permitiu a análise e manipulação do comportamento humano. Isso é importante porque ninguém nasce consumidor – ele é uma figura historicamente constituída. Edward L. Bernays apresenta um raciocínio muito importante para compreendermos esse tema. Segundo ele, o consumidor é o ser que necessita aquilo que não deseja e deseja aquilo que não necessita. 

Bernays apontava a necessidade de formular a figura do consumidor. Com base nisso, também criou uma nova profissão que, inicialmente, chamava de propaganda. Inclusive, “Propaganda” é o título de seu livro, publicado em 1928, mas que é muito atual. Há também um documentário de Adam Curtis sobre o século do Eu com entrevistas interessantes de Bernays a respeito desse assunto. O autor relata como, na medida em que utilizava a palavra “propaganda”, percebia sua associação com algo negativo, em razão da sua função na Primeira Guerra Mundial e no nazismo. Por isso, Bernays achou melhor criar uma nova expressão – ele começou a falar em propaganda e depois em relações públicas. E até mesmo menciona a concepção de uma nova profissão: o Council of Public Relations.

Para mim, isso já é o significado do que você pergunta: o que é a ressignificação cultural ou o que é ressignificar a cultura? Um primeiro movimento importante de Bernays consiste na utilização da palavra “propaganda”  a partir de uma função distinta do seu significado etimológico originário. A raiz dessa palavra está ligada à agricultura, especificamente ao processo de disseminar as sementes. Há uma associação um pouco mais recente que relaciona a “propaganda” à religião. No século XVII ocorreu a propagação da fé cristã, principalmente por meio das missões estrangeiras. De tal modo que um vínculo importante passou a se estabelecer entre a  “propaganda” e a “Igreja”. Depois, uma nova associação se consolidou: a propaganda com a política e o Estado. Nesse sentido, o objetivo é disseminar as ideias  políticas pertencentes a todo e qualquer modelo de Estado. 

Trata-se de um período importante, pois aí a propaganda começou a se caracterizar como uma forma de divulgar ideias, crenças ou religião. Nesse momento, Bernays pensou o seguinte: será que nós não podemos desenvolver uma propaganda voltada para o mercado? É interessante como ela aproxima a propaganda de mercado à democracia, à igualdade, etc. Como se isso tudo fosse conquistado por meio do consumo. Ele reconhece que o uso da propaganda foi indispensável para disseminar as ideias da guerra; por isso mesmo, por que não usá-la para promover a paz? De acordo com Bernays, o consumo seria capaz de produzir a igualdade e a democracia, possibilitando que a escolha individual do consumidor fosse responsável por estabelecer o seu próprio modo de vida. Nesse sentido, a propaganda estaria relacionada a uma nova forma de viver, que depois ficou conhecida como “American Way of Life”.

Nota-se como a função primordial da propaganda é ressignificar a cultura. Como eu sempre digo, há uma confusão na tradução dos termos do inglês para o português. Aqui no Brasil, a gente usa “propaganda” como sinônimo de tudo, não é? Eu gosto de diferenciar os fenômenos. O anúncio comercial, por exemplo, possui um significado mais próximo do chamado  “advertising” em inglês. A propaganda é muito mais sutil e, por isso, mais perigosa. Ela é mais manipuladora por se imiscuir na cultura e se passar como realidade. Sua função é transmitir e propagar ideias de forma sugestiva e menos atrelada à venda de um produto ou marca. Agora, como Bernays utilizou a propaganda?

Em seu famoso experimento, registrado no documentário de Adam Curtis, as mulheres fumam em público. Bernays supunha que, nos Estados Unidos, havia uma demanda reprimida em relação ao consumo de cigarros. Por isso era preciso fazer com que as mulheres também pudessem fumar publicamente. Então ele ressignificou toda a ideia de liberdade feminina. E para isso usou até mesmo as sufragistas universais, pertencentes à primeira onda do feminismo e que lutavam pelo direito de votar. Ele dizia: “Vocês estão lutando pelos direitos iguais de mulheres e homens. E se há uma coisa que é diferente, por exemplo, é que os homens podem fumar à vontade em público e as mulheres não”. Por isso propõe que, no dia dos desfiles, as sufragistas deveriam sacar seus cigarros e acendê-los. Tal ato representaria uma espécie de tocha da liberdade para a emancipação feminina. 

Evidentemente, isso tudo não tem nada a ver com a emancipação feminina. Bernays ressignificou, concedeu um novo sentido à ideia de emancipação feminina pelo consumo do cigarro. E, assim, apresentou vários exemplos de como ressignificou hábitos, ideias e opiniões. Outro caso emblemático diz respeito ao hábito de comer bem no café da manhã nos Estados Unidos. No entanto, na época havia uma necessidade de vender mais bacon. E como incluir também cereais carregados de açúcar na rotina dos norte-americanos?

É perceptível que a ressignificação cultural é uma palavra chave do trabalho da propaganda. E eu considero a propaganda uma peça muito mais fundamental na ressignificação da cultura e naquilo que chamamos de cultura do consumo. Em uma sociedade onde tudo está vinculado ao consumo, as ideias de liberdade, de escolha individual, de igualdade e de democracia também estão sujeitas a esse processo. Eu considero muito mais importante entender a função da propaganda. O anúncio comercial reforça tal construção anterior. Se esta não existe, o anúncio não tem muito efeito. A função do anúncio comercial é, justamente, reforçar e impulsionar o bombardeamento permanente dessas ideias. O objetivo é nos impedir de esquecer o produto, a marca. Mas é na propaganda, de fato, que se constitui a ressignificação cultural.

INB:  Professora, a senhora poderia falar um pouco mais sobre o livro “Propaganda”  de Bernays?

Isleide: Esse é um livro histórico. Tem um capítulo que fala sobre a psicologia das relações públicas e a importância de manipular as massas – isso, ele diz claramente. Uma curiosidade é que Bernays era sobrinho de Sigmund Freud. Esse é um detalhe interessante porque Bernays tinha acesso privilegiado aos textos freudianos, uma vez que ele lhe enviava o material. 

Quando Bernays leu Psicologia das Massas e a Análise do Eu, notou que poderia pôr em prática novas estratégias de propaganda. Nesse sentido, escreveu um capítulo de seu livro falando sobre a psicologia das relações públicas. É fundamental entender como somos influenciados. Para Bernays a propaganda é usada na religião, no Estado e no mercado: nós somos o tempo todo influenciados. Mesmo quando pensamos ter tomado decisões por vontade própria e com nossas próprias conclusões. Na verdade, o tempo todo tomamos decisões com base na manipulação da mídia e na ressignificação cultural.

Fetichismo e cultura descartável em “O nome da marca”

INB: Em seu livro O nome da marca: McDonald ‘s, fetichismo e cultura descartável há uma discussão impressionante sobre a origem do McDonalds. A senhora coloca que, no início, tratava-se de um restaurante de beira de estrada onde os caminhoneiros consumiam refeições baratas; depois, o McDonald ‘s associou-se a uma imagem de felicidade. Nesse sentido, como a senhora analisa especificamente a ressignificação cultural, promovida pela propaganda e materializada no anúncio comercial?

Isleide: Imaginemos uma cultura muito diferente da ocidental. Podemos pensar em uma cultura marcada pela religião, na qual o papel da mulher adquire outras características. Por exemplo, as mulheres, nesse contexto, não podem expor muitas partes do seu corpo. Diante de tais circunstâncias, como veicular um anúncio de biquíni? O seu impacto certamente não será significativo. Para que o anúncio produzisse efeitos, seria necessário haver uma ressignificação cultural de algo muito poderoso: da própria religião e do papel da mulher nesta sociedade. 

Somente a partir da desconstrução e da ressignificação desses elementos que o produto seria aceito.  Só assim seria possível usar uma vestimenta como o biquíni. Existem tabus possíveis de serem quebrados, enquanto outros são invioláveis. Pensando na cultura ocidental, na década de 1920, havia o tabu das mulheres fumarem em público, como mencionei anteriormente. Bernays rompeu com este parâmetro, pois entendeu o espírito da época, o trabalho da propaganda, da marca, do anúncio comercial, etc. Todas as instituições, ferramentas, técnicas de manipulação do comportamento têm de assimilar o espírito de sua época. Só assim conseguirá compreender os limites que o seu alcance pode ou não ultrapassar. Especificamente no caso das mulheres fumantes, Bernays notou o desenvolvimento de um fenômeno significativo: começaram a circular ideias sobre libertação feminina e equalização dos direitos. Bernays ressignificou culturalmente a concepção do consumo de cigarros, no contexto da primeira onda do feminismo. Assim, as mulheres poderiam usar o cigarro como um símbolo de liberdade de um poder já atribuído aos homens.  Por isso ele usava a metáfora das tochas de liberdade. 

Notemos que Bernays fez uma associação; a partir daí quebrou o tabu. Primeiro construiu uma publicidade em torno disso. Então, os jornais começaram a veicular imagens de mulheres fumando e marcas passaram a disponibilizar anúncios de cigarros com imagens de mulheres. A situação se tornou tão emblemática que até hoje temos na cabeça o cigarro como arma de sedução, ligada às grandes estrelas de cinema. Atualmente, também sabemos que o seu prestígio passa por desconstruções, uma vez que fumar é uma prática associada ao aumento de doenças prejudiciais à nossa saúde. 

Portanto, o fundamental é respeitar o processo. Primeiro, preparamos a cultura para receber o produto, a crença, a inovação, etc. que sejam frontalmente contrários à ela. É nisso que consiste a ressignificação. Tratam-se de mudanças que afetam valores mais profundos e nós vemos essa situação ocorrer o tempo inteiro na cultura do consumo. Isto é, quando o movimento vai da cultura para a economia, capta-se uma produção cultural. Um exemplo encontra-se no Jazz, cuja função cultural originária era contar a história do sofrimento de um povo. Com o passar do tempo, o Jazz foi ressignificado como uma música cool, tocada em espaços caríssimos e associada à vanguarda. E depois, o anúncio comercial apenas surfou nessa onda. 

INB: Quais são os significados da expressão “cultura descartável”?

Isleide:  Na verdade, eu gosto de usar a expressão “cultura do consumo” e não “cultura de consumo”. Isso porque não é apenas uma cultura em meio a tantas outras, como podemos imaginar. Trata-se de uma cultura hegemônica que se espraiou pelo mundo inteiro. Recentemente, eu publiquei  um livro novo sobre os fundamentos da cultura do consumo e formas contemporâneas, em que eu explico melhor tudo isso. 

Mas vamos analisar essas duas expressões. “Cultura” é uma palavra muito complexa e “consumo” é algo que foi se ressignificando com o passar do tempo. Raymond Williams tem um conceito interessante de cultura: é uma forma de vida de um povo por um determinado período. Há outra ideia antropológica de consumo, de cultura como rede de significados. Este é um aspecto interessante. O consumo é algo que também muda. No século XIV, por exemplo, “consumir” associava-se a algo negativo, a uma doença. A tuberculose, inclusive, é uma doença que consome. Também podemos pensar na imagem do fogo que consome a casa.  

A associação positiva do consumo é algo posterior e está presente até na formação da identidade. Hoje temos uma identidade de consumidor, a ponto de haver desdobramentos contemporâneos que criaram o “consumidor cidadão”. Em meados do século XX a avaliação positiva do consumo passou a se firmar, originando-se nos Estados Unidos. Com base nessa história, eu propus pensar a cultura do consumo como predominante e hegemônica na contemporaneidade. Isso significa que ela atinge culturas aparentemente opostas a essa forma de vida, se estabelecendo e florescendo nessas culturas. Então, quando falo de cultura do consumo, falo em cultura descartável. Eu penso que essas são categorias sinônimas. Assim como  digo que cultura do consumo é a cultura do capitalismo. Trata-se de uma cultura do gozo, no sentido do que é excessivo.

No entanto, costuma-se dizer algo que eu considero incorreto, que a cultura do consumo é a cultura do desejo. Para mim não é assim, porque o desejo envolve uma relação de compromisso, algo como uma renúncia; você sabe que não será possível realizar totalmente o desejo e por isso precisa negociar. O gozo é diferente. A abordagem de que parto é psicanalítica. Desse modo considero o gozo como aquilo que não quer fazer compromisso, quer apenas satisfação e realização. E a cultura do consumo tem essa característica em seu DNA. Não há limites para o seu uso e consumo, desde que você possa pagar. Na verdade, no fundo falamos em cultura da mercadoria e do capitalismo.

O seu caráter “descartável” deve-se precisamente a esse elemento – a mercadoria. Por isso a renovação é tão importante. Como o capitalismo, a cultura muda para permanecer na sua lógica de funcionamento. Quando leciono a minha disciplina sobre a cultura do consumo na Fundação Getúlio Vargas, eu costumo dividi-la em fases, para que possamos perceber como, ao longo dessas fases, há uma relação de continuidade, uma espécie de fio condutor. A marca desse fio condutor é a ideia de produção do excedente, do excesso. Tem de haver o tempo todo insatisfação, para gerar o consumo excedente. 

É a insatisfação que leva o tempo todo ao consumo excessivo. A lógica da cultura do consumo como algo descartável é justamente a percepção de que tudo deve estar obsoleto o tempo todo. É por isso que uma das bases da cultura do consumo é a obsolescência programada. Um exemplo contemporâneo é a obsolescência tecnológica: se você compra um celular hoje, no dia seguinte surge o próximo modelo. De fato, é muito difícil acompanhar o modelo mais recente.

Nesse contexto, o que dita a moda é muito volátil. Mas essa obsolescência está associada ao desejo de ser novidade. Então, a descartabilidade se caracteriza a partir de uma  cultura que precisa se reinventar o tempo todo: a cultura da mercadoria. É o que eu chamo de “mudar para permanecer”. 

INB: Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, as marcas parecem ocupar um espaço cada vez maior na vida das pessoas. Qual é a importância do consumo das marcas para a formação da nossa subjetividade no século XXI?

Isleide: Eu achei suas perguntas interessantes porque elas são concatenadas. Antes, falávamos de cultura descartável, algo que gera uma certa insegurança identitária no sujeito. Se vivemos em uma cultura na qual as coisas implodem constantemente, a segurança identitária se perde. Surgem perguntas: Quem eu sou? Quem é o outro? O que é válido e o que não é? Nesse contexto de vida, como é possível se identificar e, mais ainda, identificar o seu lugar e o do outro no mundo? As marcas surgem nesse contexto. 

Na verdade, é preciso voltar um pouco na história para esclarecermos a formação da cultura do consumo, sendo que a crise identitária está na sua base. Um dos fatores históricos que a promoveram foi a mobilidade social, resultado das revoluções burguesas do século XIX. A partir desse momento, construiu-se a ideia de que ninguém nascia mais com o seu lugar garantido, a não ser em algumas monarquias que ainda existem no mundo. Então, é preciso se constituir identitariamente. A própria noção de identidade é moderna. 

 Nesse sentido, uma coisa é você nascer sabendo exatamente o seu lugar de pertencimento: saber que vai nascer, viver e morrer ocupando esse lugar. Com a mobilidade social, esse cenário foi alterado, possibilitando a constituição da cultura do consumo. Assim, como eu me constituo? Agora tudo tem que ser manejado e construído, pois os laços de sangue e o lugar de nascimento não são mais garantia. Só que, obviamente, de lá para cá a situação tornou-se muito mais complexa. 

A cultura do consumo já tinha essa questão da descartabilidade, do excesso em seu próprio DNA e concepção. Isso só se expandiu e se recrudesceu com o passar do tempo. Hoje, você pode pertencer a um grupo e amanhã não pertencer mais. As mudanças ocorrem muito rapidamente. É sob esse aspecto que as marcas começam a se formar e a vender a expectativa de construção identitária pelo seu consumo. O fundamental é a segurança identitária que esse processo proporciona. Mas, certamente, trata-se de uma ilusão. 

Surgem diversas perguntas: quem eu sou e quem é o outro?  Como consumir determinadas marcas? Ou frequentar determinados lugares de marca? Até serviços básicos, como saúde e educação, viraram marcas. Se os indivíduos se constituem subjetivamente por meio do consumo, então a sociabilidade começa a girar em torno do consumo. Por exemplo, os lugares de socialização são shopping center. Hoje em dia as coisas mudaram um pouco, com os espaços digitais e as comunidades virtuais. As marcas introduziram-se nessas comunidades. Por isso eu te digo que essa etapa do consumo ligado às mídias sociais tem origem no consumo concreto. E o processo só se intensifica. 

Esse recrudescimento ao qual me refiro está relacionado à constituição das identidades por meio das redes, ao acesso a determinados links. Aqui não falo de marcas. Sei que é quase impossível dar um exemplo sem mencionar as marcas, mas com os ambientes virtuais, essa é a ideia. Cada vez mais nos constituímos a partir do consumo das marcas.  Então estabelecem-se  as comunidades e identidades. Então se quero demonstrar algo, mesmo que em nível simbólico e não  real – por exemplo, se quero demonstrar ser uma pessoa multicultural que respeita a diversidade –  basta consumir a marca A, B, C ou D, pois elas patrocinam e veiculam um determinado discurso. Eu, enquanto sujeito, me atrelo à marca.  E isso pode ser e quase sempre ocorre no nível simbólico, porque na realidade a pessoa pode ser racista, preconceituosa. Portanto, consumir uma marca é uma forma de mostrar a identidade para o mundo.

INB:Diante dos atuais desenvolvimentos tecnológicos, seria possível falar em um “fetichismo das imagens”?

Isleide: “Fetichismo das imagens” foi uma expressão que criei para falar de um desdobramento do próprio fetichismo da mercadoria. É a ideia de que as próprias imagens se tornam mercadoria. Aqui falo de imagens muito específicas, aquelas que pretendem ser vendidas, como as imagens de marca de que falávamos. É um desdobramento do fetichismo da mercadoria, no sentido do fetichismo das imagens ser mais uma camada desse fenômeno. Não se trata de uma nova categoria, mas sim uma característica de algo novo. 

A expressão “fetichismo da mercadoria” é de Karl Marx e ela trás a dimensão da utilidade do produto ao se referir ao seu valor de uso. No entanto, as mercadorias também possuem um valor de troca que pode não ter absolutamente nada a ver com a sua utilidade. Marx dizia que o essencial não é se a mercadoria serve para atender as necessidades do estômago ou do espírito. A diferenciação social, esse estar no mundo e a constituição identitária está totalmente ligada ao valor de troca. É por isso que o anúncio comercial pode ser totalmente desvinculado daquilo que a mercadoria vende. 

Há um deslocamento entre o que o produto vende, do ponto de vista da sua utilidade, e o que ele vende do ponto de vista do ganho simbólico.

Isleide de Arruda Fontenelle

É por isso que muitas vezes vemos anúncios que não mostram nenhum produto, aparecem apenas as imagens do que o produto quer passar. E isso não está necessariamente relacionado com o valor de uso do produto. Daí que surge essa ideia do fetichismo das imagens. 

É justamente na passagem da primeira fase da formação da cultura do consumo que havia o interesse em transformar as pessoas em consumidores. Nesse momento as pessoas eram preparadas para criar o gosto e moldar seus hábitos. Existe uma história dessa primeira fase, que ocorreu nas décadas finais do século XIX, de como era ser um burguês. Mas o que significava vir de uma casa burguesa? E o que uma boa casa burguesa deveria ter? A resposta era: ter uma piano.

Depois, surge uma outra pergunta: o que é ser americano? É viver esse “american way of life” com produtos da modernidade tecnológica: ter uma máquina de lavar roupa, uma geladeira. Essa era  construção: o desejo por produtos concretos. Nesse desdobramento moderno, a competição do consumo excessivo gerou a necessidade de diferenciar produtos muito parecidos. Por que eu devo comprar uma geladeira A e não a B ou C? O que a geladeira A me diz sobre ser uma dona de casa nessa época? Ela sugere um conservadorismo, enquanto a geladeira B é mais moderna. As imagens que a mercadoria cria servem para diferenciar. E aí começam as imagens de marca. 

Tudo isso é o que eu chamo de fetichismo das imagens. Trata-se de algo absolutamente ilusório. Esse fetiche é algo que enfeitiça e, sendo ilusório, opera o funcionamento de uma realidade e uma sociedade. Você menciona os desenvolvimentos tecnológicos e isso é interessante, porque quando eu terminei a minha tese de doutorado sobre o McDonalds eu falava de fetichismo das imagens em um contexto muito incipiente de inovações. Já existia a internet no Brasil, mas não as mídias sociais. Não tinha toda essa loucura que virou o mudo virtual hoje. Mas na época eu já dizia como o fetichismo das imagens estabelece que a visibilidade é a regra, que é preciso estar na imagem para existir. 

Então, se isso já estava presente naquela época, imagina agora com as novas mídias sociais. É como se você não existisse se não estivesse nesse ambiente. O que é “Instagramável” é a regra. De fato, é viver para imagens. Esse é um elemento que complexifica o fetichismo das imagens, na medida em que ganha um alcance ainda mais exacerbado: é como se sua vida inteira fosse dedicada a viver para essa imagem que você constrói de si mesmo. Freud fala do ideal do eu e do eu ideal. Podemos pensar como essa expressão de um ideal do eu enquanto imagem fetichizada  ganha hoje, com as mídias sociais, uma nova dimensão.