Os livros essenciais de César Barreira

Os livros essenciais de César Barreira.
A sessão “Cabeceira INB” dedica-se a contar a trajetória de pesquisa dos nossos professores e colaboradores a partir da recordação de suas leituras mais marcantes.

No dia 23 de fevereiro de 2023, César Mortari Barreira se reuniu com a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, para contar sua história de formação, tendo como marco referencial os livros essenciais de sua vida. César Mortari Barreira é Diretor Executivo do Instituto Norberto Bobbio e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Os primeiros anos

O convite para contar a minha trajetória de formação a partir do referencial  proposto, isto é, os livros essenciais que me foram mais estimados, é uma iniciativa interessante e um tanto desafiadora. Em um primeiro momento, eu diria que outros tipos de histórias me levaram aos livros. Especialmente quando criança, os gibis exerceram uma função muito importante – eu me lembro de longas viagens com meus pais, nas quais a única forma de me manter em silêncio e comportado era ter em mãos os gibis da Turma da Mônica. De certo modo, isso foi um pontapé inicial para que eu me inserisse posteriormente no mundo dos livros.

Mas  também me lembro do impacto que sentia ao ouvir histórias narradas pelo meu pai, sobretudo aquelas do Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Na época, eu ficava fascinado e imaginava os personagens com vivacidade. 

Os livros essenciais na época do colégio

Ao avançar pela minha trajetória, os meus primeiros anos de formação no colégio foram marcados, invariavelmente, pelos livros sugeridos e debatidos pelos professores. No ensino médio, ao final do terceiro ano, as leituras obrigatórias do vestibular despertaram o meu interesse pela literatura brasileira. Nesse momento, comecei a explorar as obras de Clarice Lispector e Hilda Hilst

Na escola, havia um debate memorável sobre literatura e sociedade. Nesse contexto, passei a me interessar pelos clássicos nacionais, como Fogo Morto, de José Lins do Rego. Embora na época eu não tenha entendido o alcance dessa obra, foi uma leitura singular. Olhando em retrospecto, muitas das leituras fundamentais para mim geraram, inicialmente, um estranhamento. Mas depois percebi sua riqueza, seja na narrativa ou descrição dos personagens. Esse é um aspecto notável: a lembrança carinhosa de leituras que pareciam incompreensíveis. 

Além da prosa, quando adolescente passei a me interessar por poesia. Já mencionei a Hilda Hilst, mas tive professores que me apresentaram Carlos Drummond de Andrade e seus livros foram fundamentais para mim, especialmente o Sentimento do Mundo. 

Os livros essenciais na formação acadêmica

Os caminhos da leitura começaram a ficar mais claros no momento em que entrei na faculdade. Eu fiz duas graduações simultaneamente: Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP) e Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Nesse sentido, criou-se uma espécie de bifurcação, com caminhos que andavam em paralelo: entrei em contato com textos que começavam a determinar os meus estudos teóricos. 

Durante a minha formação em Direito, os professores buscavam motivar o interesse dos alunos pelo ardiloso e desinteressante terreno jurídico. E, para isso, utilizavam a literatura. Assim, presenciei discussões muito ricas sobre a importância de Shakespeare e de seu O Mercador de Veneza para a reflexão jurídica. Já naquele momento me parecia estimulante pensar sobre as artimanhas da ficção no Direito. 

Já no primeiro ano de faculdade na PUC-SP, realizei um curso sobre “Direito e Literatura” com o professor José Garcez, que hoje leciona na Faculdade Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP). Nesse curso, ele abordou justamente O Mercador de Veneza.

Me encantei ao pensar essas aproximações, evidentemente de forma amadora e tão somente movida pelo interesse e desejo de ler literatura. Para minha surpresa, na mesma semana que discutimos O Mercador de Veneza na aula do professor José Garcez, outro professor de Sociologia – agora na FFLCH – sugeriu a leitura do artigo Vingança,de Antonio Candido. Esse texto, que discute o romance O Conde de Monte Cristo, escrito por Alexandre Dumas, foi originalmente publicado em 1952 e trata brilhantemente do papel da vingança na construção da individualidade, da relação entre a personagem do Conde e o meio físico no qual ele se encontra, e a própria questão da essência humana. Vingança é um artigo que me apresentou a possibilidade de pensar sociologicamente a partir da literatura e de que modo ela amplia horizontes de pesquisa. 

O encontro dos estudos criminais com a literatura

Então, no meu primeiro ano de faculdade, me interessei por esse encontro entre sociologia e literatura. Ao pensar especificamente na minha formação jurídica, o meu interesse sempre girou em torno dos temas da Filosofia do Direito, Direito Penal e Criminologia. Eu tive um professor que, logo no início do curso, falava em observar o Direito Penal a partir de dois clássicos da literatura russa: Crime e Castigo e Os Irmãos Karamázov, ambos de Fiódor Dostoiévski.

Na criminologia, entrei em contato com grandes obras de maneira gradativa. Nesse campo, o autor que mais me impactou foi o Alessandro Baratta, um dos fundadores da criminologia crítica. Mas também fui influenciado pelo livro Punição e Estrutura Social de Georg Rusche e Otto Kirchheimer. Com o passar do tempo, me aproximei de discussões mais atuais promovidas por autores como David Garland e Loic Wacquant , que compreendiam a sociedade do controle e a relação entre prisões e neoliberalismo. Não posso deixar de mencionar Eugenio Raúl Zaffaroni que, para grande parte da minha geração, é o grande nome do Direito Penal humanista e garantista. Ele busca  apreender o Direito Penal a partir da criminologia crítica e, com isso, construir uma ideia de sistema integral de justiça. E Zaffaroni também faz inúmeras referências à literatura em seus estudos sobre as questões criminais.

O encontro com a filosofia e sociologia do direito

No âmbito da Filosofia e Sociologia do Direito, descobri como livros essenciais os autores clássicos, como Rudolf von Ihering, obrigatoriamente debatido na graduação, sobretudo a sua Luta pelo Direito. Pensando no século XX, as obras de Hans Kelsen e  H. L. A. Hart e, especialmente, Norberto Bobbio foram presentes nesse período. Hoje, trabalho há mais de treze anos no Instituto Norberto Bobbio e posso dizer que ele é um autor constante em minha vida desde o início da graduação. 

Na Sociologia do Direito, os debates promovidos por José Faria sobre a relação entre a evolução do pensamento jurídico e sua dependência social, foram chaves de leituras significativas para mim. Isto é, pensar o direito a partir de determinadas formatações materiais da sociedade. Evidentemente, não pude deixar de ler os clássicos do pensamento social como David Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Nesse momento, havia um interesse inicial em Marx, mas foi só no doutorado que comecei a estudá-lo efetivamente. Por isso costumo dizer que, para mim, ele foi um autor de chegada e não de partida. 

Nesse momento, eu também me interessei muito pela intersecção entre Direito e Linguagem, sobretudo pela leitura das obras Tractatus Logico-Philosophicus e Investigações Filosóficas, de Ludwig Wittgenstein. Olhando em retrospecto, a minha atenção e o fascínio pela linguagem vêm desse momento.

Eu me lembro com muito carinho dessa época da minha vida. Com o desenvolvimento da minha trajetória profissional e de pesquisa, me concentrei muito mais nos livros teóricos do que na literatura. No final da minha graduação em direito, realizei minha Iniciação Científica sobre Gunther Jakobs, um autor indispensável para quem quer estudar Direito Penal. Jakobs apresenta um arsenal teórico robusto para responder questões delicadas, como:  qual é a função do Direito penal?; como ele se relaciona com a sociedade? 

Eu notei que, no âmbito das ciências sociais, meu maior interesse era na sociologia. Por isso, nessa época, me aproximei das obras de Niklas Luhmann, um dos grandes e últimos sociólogos que construíram uma teoria social no século XX. Mas esse interesse em Luhmann não foi à toa – suas contribuições eram premissas fundamentais de Jakobs. Para a construção de sua teoria da imputação, fez uso do pensamento e reflexões luhmanianas. E a minha pesquisa foi, justamente, discutir a utilização que Jakobs fazia da  sociologia.

Ao mesmo tempo é curioso como, ao invés de me aproximar das ciências sociais, o estudo do direito me afastou da graduação na USP. Naquela época, não havia ninguém no curso de ciências sociais que trabalhasse com Luhmann, de modo que decidi trancar a faculdade para me dedicar à Iniciação Científica na PUC-SP. 

Avançando para o meu Trabalho de Conclusão de Curso, alterei um pouco a rota e fui parar no Direito Constitucional. Assim, fiz um trabalho sobre Transconstitucionalismo e utilizei o referencial teórico oferecido por  Marcelo Neves, Willis Santiago Guerra Filho, Celso Campilongo, Guilherme Leite Gonçalves e Orlando Villas-Bôas Filho,  autores brasileiros vinculados ao pensamento luhmanniano. 

Os livros essenciais na pós-graduação

No mestrado, voltei para o Direito Penal e retomei o projeto de pesquisa que realizei na minha Iniciação Científica. Tentei aprofundar e complexificar o problema ao entender qual Luhmann era a base do pensamento de Jakobs. Ora, ele é  autor de mais de quarenta livros e sua teoria é extremamente instigante. Minha pesquisa buscava discutir que tipo de recepção Jakobs realizou da teoria de Luhmann. É notável como todos aqueles que constroem uma teoria global da sociedade, ficam sujeitos a interpretações à esquerda e à direita. Eu tentei trabalhar com uma interpretação mais à esquerda do Luhmann, a partir do que ficou conhecido como Teoria Crítica dos Sistemas, questionando de que forma isso pode lançar luz para a problematização do Direito Penal. 

Este é um momento crucial na minha trajetória. Observar a obra de Luhmann a partir de uma perspectiva de esquerda me encaminhou para leituras da criminologia crítica baseadas, sobretudo, em Karl Marx. Havia chegado a hora de pagar as contas com esse autor. Marx, assim como Luhmann, tenta responder uma pergunta capciosa: como a sociedade é possível? Esse questionamento entrou no meu radar no final do mestrado.

Coincidentemente, nesse período, iniciei meus estudos da língua alemã. Por um lado, isso foi fundamental para acessar os livros de Luhmann, por outro foi o que me permitiu entrar no debate majoritariamente alemão sobre as possíveis relações entre Marx e Luhmann.

Em 2015, após o término do mestrado, fui estudar um tempo na Alemanha e entrei em contato com a teoria e literatura do país. Nesse momento passei a ler compulsivamente as obras de Johann Wolfgang von Goethe, sendo o Fausto e Os Sofrimentos do Jovem Werther os mais importantes para mim. E, com o desenvolvimento do aprendizado do alemão, passei a mergulhar de cabeça nos textos marxianos. E notei como existe uma variedade de interpretações dos escritos de Marx.

Quando voltei pro Brasil, passei a ler autores nacionais marxistas.  Ficou claro como as discussões alemães e brasileiras eram muito distantes e diferentes entre si. Diferentes não no sentido de avaliação qualitativa, mas sim de abordagem. Por exemplo, a teoria da dependência marxista de Rui Mauro Marini se desenvolve no mesmo momento que a chamada “nova leitura de Marx”, na Alemanha. Esse tipo de complexidade e variação começava a me chamar atenção, indicando a riqueza dos marxismos. Eu queria entender de que forma isso se relacionava com o próprio Marx. Como era possível haver tantas interpretações diferentes de um único autor?

Seguramente, O capital, Grundrisse e os textos preparatórios da crítica da economia política constituem o grande objeto de estudo dos últimos anos da minha vida de pesquisa. Marx foi o autor sobre o qual mais me debrucei e, não por acaso, meu doutorado foi um período marcado por leituras densas de livros sobre o assunto. Gostaria de citar dois autores marxistas que exerceram grande influência sobre mim nesse momento inicial: Moishe Postone com a obra Tempo, Trabalho e Dominação Social e Robert Kurtz com o Dinheiro sem Valor

No começo do doutorado que realizei na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), estive em contato com as discussões vinculadas à Ontologia do Ser Social de György Lukács. O Rio de Janeiro tem uma tradição forte nesse sentido. Algum tempo depois, pude ler dois livros de fundamental importância para mim: Introdução ao Capital e Ciência do Valor de Michael Heinrich. A Ciência do Valor é a tese de doutorado de Heinrich, na qual ele discute novas interpretações de Marx a partir dos manuscritos originais publicados na MEGA II. A MEGA II é a nova edição dos livros completos e manuscritos de Marx e Engels, sem edições ou alterações. Essa edição tem gerado um debate enorme não só na Alemanha, mas no mundo inteiro, especialmente no que se refere à recepção dos textos do Marx.

No doutorado, busquei ler a primeira, a segunda, a terceira e a quarta edição de O capital. A quarta edição é a que a gente lê em português, publicada pela Editora Boitempo. Mas todas essas edições têm diferenças consideráveis sobre a própria formulação da teoria do valor e de objetos de pesquisa. E, com certeza, elas constituem meu objeto de pesquisa prioritário dos últimos cinco anos.

Hoje, na cabeceira

Após o doutorado, pude retomar algo que não devia ter abandonado: a literatura. Quando terminei a tese, reli o Grande Sertão Veredas, de João  Guimarães Rosa e o já mencionado Fogo Morto.

 Ao mesmo tempo, os meus interesses teóricos continuaram. Hoje, permaneço interessado por Karl Marx, mas estou focado em um tipo de abordagem que procura pensar o desenvolvimento da sua teoria social. Isso significa que outros autores passaram a exercer grande influência sobre mim, em especial Theodor W. Adorno, que atualmente constitui um tema de pesquisa de primeira ordem. 

Inclusive, esse é o assunto do meu pós-doutorado: pensar a contribuição de Adorno, enquanto leitor de Marx, para o desenvolvimento de uma teoria crítica. Então, continuo vinculado a um tipo de pesquisa e reflexão majoritariamente alemã.

No entanto, hoje leio o livro Dias Exemplares de Walt Whitman, uma espécie de diário no qual ele aborda temas  diversos, que vão desde a guerra civil norte-americana até suas andanças no século XIX. 

Essas são formas de continuar meus estudos. Quando estamos com os livros, nunca estamos desacompanhados – aprendemos, sempre. E a formação de um pesquisador é ininterrupta, é um processo de incerteza e infinitude. Por enquanto, tenho traçado esses caminhos. 

O que há de vir?

O Vermelho e o Negro, de Stendhal, está na minha cabeceira, mas eu ainda não consegui terminar a leitura. Acho que isso é um ponto importante. Existem leituras que marcam a gente, mas não porque terminamos e entendemos o quão fantástico o livro é. Elas nos marcam porque não conseguimos superá-las. Penso que tem uma história a ser contada desses livros deixados para trás mas que, ao mesmo tempo, permanecem. 

Toda leitura retomada é uma nova leitura. Talvez, grande parte da nossa trajetória de pesquisa passe por incontáveis leituras interrompidas. E não porque elas eram ruins ou não geraram interesses, mas porque a partir delas fomos deslocados para outros lugares. 

Certamente isso esteve presente na minha formação e o Vermelho e o Negro representa a continuidade desse processo. É um livro que demoro a terminar, mas que retomo a todo instante. Leio duas páginas para frente e três para trás. À título de sugestão, fica a ideia de discutir o sentido e a função das leituras não concluídas para a nossa formação.

Para textos da cabeceira INB, debates e diálogos com outros professores/as e intelectuais, acesso a páginas Diálogos INB e confira.