O projeto INB Debate é um espaço multidisciplinar e democrático cujo objetivo é apresentar e discutir assuntos importantes para a compreensão da nossa sociedade. A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com a psicóloga e pesquisadora Andrea Naccache, para discutir criticamente a importância e os processos que envolvem a clínica psicológica.
Aspectos da psicologia clínica
INB: Qual é a importância e o significado da clínica no estudo e exercício da psicanálise?
Andrea Naccache: A clínica é soberana. É um princípio que herdamos da nossa origem, a medicina. Nela, a clínica é o trabalho feito ao lado do leito do doente. Para nós, na condução de uma psicanálise, isto implica sobretudo em um cuidado, uma espécie de atenção, observação e escuta — diria mesmo — fenomenológica dos acontecimentos. Ou seja: nosso ponto de partida será sempre a presença, o que se mostra a cada instante. Não há significação estável das situações. Só a ética clínica mais fundamental é invariante.
Digo isto sensibilizada pelo pensamento existencial do século passado. Clinicar é o oposto de reconhecer categorias como as do CID e procurar o enquadramento nas pessoas, mesmo que seja apenas do comportamento e não do “paciente”. Há, ao contrário, constante descoberta: o que se mostrará é sempre mais importante do que o que já sabemos.
Isto abre espaço para uma atuação pragmática sobre as demandas terapêuticas: agimos conforme o que se apresenta. Teremos, claro, um repertório de experiências, mas não haverá protocolos de cura ou estereótipos. Toda intervenção clínica poderia ter sido diferente. O teor cognitivo é aleatório. O pragmatismo é dirigido pela finalidade, acima de qualquer terapêutica. No meu modo de ver, a psicanálise é a experiência ética da linguagem que maximiza possibilidades para a pessoa. A finalidade é, então, a travessia de fantasias e projeções, entre hierarquias pessoais e o jogo de espelhos da linguagem, para abertura às máximas possibilidades. Tento agora elaborar isto sob as perspectivas, primeiro, do analisando e, depois, do psicanalista.
A clínica
A clínica mais sofisticada tem como apenas secundária a cognição que produz. Melhor dizer no plural: as cognições. Elas são múltiplas e devem variar, estar sempre sob revisão, em suspenso. Quando falo de cognições, refiro-me aos insights, às projeções, aos entendimentos ou às interpretações que emergem durante o processo, para o analisando, e causam uma sensação de verdade, de acerto sobre um problema. Elas propiciam a terapêutica, o resultado prático, a quem lhe dá chance de chegar. Em uma clínica bem dirigida, estas cognições são, diria até, ”efeitos colaterais” positivos e desejáveis que obtemos — que o analisando aprende a alcançar de modo cada vez mais rápido e independente. Essa é a dimensão pragmática da clínica.
O cerne, a operação primária e principal, no entanto, é a experiência ética que o analisando adquire, com o tempo de divã, de responsabilidade pela presença e por dizer o que diz. Quem prova o divã por tempo suficiente descobre que nada do que diz é mero relato ou remissão a algo. A operação efetiva é o dizer, que coloca a pessoa como um ou outro personagem em suas cenas, e constrói o tempo todo uma posição subjetiva. A pergunta que emerge para a pessoa é “Que desejo eu, quando descrevo minhas experiências desta maneira?” ou, ainda mais, “eu, que me disponho para a vida desta maneira?”. Esta pergunta tem nível de reflexividade superior ao da pergunta terapêutica: “Como agir? Como me tratar?”. Ela abre para uma questão maior: “Preciso me dispor desta maneira?”. Há uma metaética.
No início de uma análise — pelos primeiros anos, até — uma pessoa ainda consegue se descrever como “vítima das circunstâncias” e do próprio corpo, inclusive: “Eu tenho…” algo a ser regulado no cérebro, “eu tenho…” algum transtorno, “eu tenho dificuldade para dormir”. Refluxo gástrico ou transtornos alimentares e digestivos diversos, transtornos de atenção e sono, hipocondrias, episódios ansiosos ou de raiva e, por vezes, pânico, são queixas frequentes.
Analista e paciente
Nossa cultura acomoda bem a posição subjetiva de alguém que se descreve como um portador de incômodos. Uma posição sofrida. A pessoa pode passar a vida assim. O exercício da fala constante sobre si na clínica, porém, tende a demover a pessoa desta posição. Um dia, ela reagirá com mais conforto. Irá tentar uma resposta e acertar. Acreditava ter transtorno de atenção, mas produzirá bem. Acreditava ter insônia, mas dormirá bem. Acalmará o refluxo. Não entrará em pânico — por exemplo, porque se fará tratar bem em uma relação que lhe parecia fadada a ser opressiva, agressiva. Este evento, mesmo que seja uma exceção muito pontual — um dia, um primeiro episódio de alívio — faz a prova de uma possibilidade.
Este efeito de “cura”, ainda que momentâneo, acontece em psicanálise porque a pessoa inteligentemente experimentou diferentes formas de linguagem que redesenharam sua situação. Há um aspecto de tentativa e erro: toda terapêutica, mesmo a médica — com a medicação — usa esta abordagem, munida de probabilidades. Mas se formos além da terapêutica, também será efeito da reflexividade, da responsabilidade sobre a linguagem — a que inevitavelmente se chega com o tempo mais longo de uma clínica consistente.
Digo assim que nossa clínica compreende, alcança e supera toda a terapêutica. Mas, para isto, ela precisa não se diluir na tentativa de socorrer demandas do momento. Uma pessoa pode ficar décadas tateando experiências terapêuticas com quase incipiente resultado sobre seus sintomas. Mais erros que acertos. Há pacientes que aceitam isto, culpam-se até, e estranham a proposta ética mais exigente e confiante da clínica psicanalítica. Sem tentar atravessar suas projeções e fantasias, perguntam: “eu não deveria tomar remédio?”. Estes são “pacientes” diante de seus sintomas. Postergam o trabalho analítico. Sofrerão pacientemente.
Isto é dito para o lado do analisando. Do lado do analista, que deve garantir a direção do trabalho, como isto se pensa e aplica?
O discurso na análise clínica
Primeiro, um clínico nunca dirá verdades a respeito do analisando, e tampouco do discurso apresentado em sessão. O analisando é quem reconhece o valor das palavras. Este é um ponto de rigor epistemológico e, mais fundamentalmente, ético. Nós não falamos verdades, ainda que o analisando sinta que as escutou de nós. Posterga ou proscreve o efeito ético da análise o clínico que fala como quem diz verdades. No nível cognitivo do trabalho, apenas buscamos articulações simbólicas que possam instrumentar a reflexão.
Entendo assim que o clínico precisa estar acima da terapêutica que é a demanda mais constante em consultório — o pedido de ajuda, o desejo de ser cuidado por alguém muito preparado. O mais importante que temos a mostrar, ou seja, a tornar presente na clínica, é a abertura das possibilidades lógicas para o analisando: uma aleatoriedade profunda da linguagem que ele tem a sua disposição.
Há gente no campo psi trabalhando em um sentido oposto, preocupante. Classifica o sofrimento das pessoas, acha culpados, e as pessoas tornam-se cronicamente dependentes de cuidado. Tampouco ajuda muito, creio, o clínico que, para não incorrer neste erro, de dar excessiva consistência às próprias interpretações, oferece um pesado silêncio diante do sofrimento do analisando. Silenciar é sobrevalorizar o que se poderia dizer ao analisando. Intervenções suaves, sem presunção de verdade, percebo, são mais eficazes nos dois níveis: aceleram a terapêutica e antecipam o efeito ético da análise.
Segundo — e isto concerne mais a nós, psicanalistas, entre nós — um clínico não tem como compor um relato bastante da sua experiência de trabalho. Este é um impasse sobre a nossa prática de supervisão de casos clínicos. Considerando a imprevisibilidade da praxis, o melhor que uma supervisão pode ser — senão um bate-bola pragmático sobre alternativas de ação dificilmente certeiras, arriscadamente fantasiosas — é uma antessala da análise do psicanalista supervisionando. Uma boa supervisão vai trabalhar por tentativa e erro e, frequentemente, vai conduzir o psicanalista ao divã. Dá quase para dizer que sempre que a discussão for relevante em supervisão, ela implica neste segundo resultado.
Em outras palavras, todo tropeço clínico, que é uma resistência nossa à abertura, às possibilidades de fala do analisando, é uma potencial chave para um trabalho do analista com seu psicanalista. Indica algum ponto que o analista deve conduzir ao divã em que se deita.
Em resumo, a meu ver, a soberania da clínica implica, para o analisando, que a interpretação e a ressignificação das experiências — e mesmo os diagnósticos que qualquer profissional psi lhe proponha — sejam sempre menores, cambiantes, pensados no estrito limite de um pragmatismo terapêutico. Implica que a clínica tenha uma dimensão logicamente mais profunda, um nível superior de reflexividade. Ela há de ser aberta a uma ética fundamental da fala: mostrar que para além daquilo que é dito, o dizer tem efeitos.
Para o analista, isto suspende qualquer condição de verdade teórica ou diagnóstica, e subsume a supervisão à própria análise. Torna a supervisão uma antessala da análise pessoal do analista. A experiência da psicanálise passa a ser a desta subida de nível reflexivo do analisando que o conduz a reviver sempre a eficácia da experiência de dizer, acima de qualquer conteúdo dito.
O campo jurídico em consonância com a psicologia
INB: Geralmente a relação entre direito e psicanálise, quando abordada, se dedica a importantes textos teóricos, como Totem e Tabu e Psicologia das massas e análise do Eu de Sigmund Freud. Como a clínica pode enriquecer os estudos sobre essa interdisciplinaridade?
Andrea Naccache: Há dimensões interessantes nesta pergunta. Podemos pensar, no recurso à tradição psicanalítica, a textos freudianos e outros, o que seria uma leitura de ênfase clínica. Depois, com vista abrangente, vale falar da interdisciplinaridade entre direito e psicanálise que, a mim, encanta por ser tão fecunda.
Antes, porém, quero defender que qualquer atuação jurídica, se for eticamente implicada e responsável, é também uma clínica. Psicanálise e direito estão ambos orientados ao agir. Fazem alguma remissão ao passado, visando uma abertura para o futuro. Convidam-nos a atuar não sob um código, mas com um código, e não meramente no uso do código, mas em busca de uma compreensão do todo das implicações de cada decisão, de modo a respondermos integralmente, e com nossa humanidade, por cada aplicação que propomos. Isto é muito radical, e só tem sentido se o ponto chave da responsabilidade for o resguardo da liberdade do outro. No direito e na psicanálise, o melhor que podemos oferecer a alguém é a maximização de suas possibilidades.
A meu ver, isto é uma exigência ética incontornável. No pensamento jurídico, o professor Tercio Sampaio Ferraz Jr. achou uma forma de atendê-la. Reconheceu como condição de legitimidade do discurso normativo que quem fala permaneça disponível à fundamentação e à revisão virtualmente infinita de suas posições (o que ele chama de “dever de prova infinito”[1]). Isto implica em conceder plena liberdade de questionamento ao interlocutor. Meu ponto é que isto vale em ambos os campos. Direito e psicanálise deveriam sustentar uma responsabilidade irrestrita pelo dizer. É algo que o psicanalista assume e que o analisando, aos poucos, experimenta. Vejo, portanto, direito e psicanálise como dimensões de uma mesma ética, que é clínica. São espaços de discurso com a mesma condição de legitimidade.
Freud, seus escritos e outros autores
I. Quanto aos textos. A ética clínica determina como devemos nos valer de nossa herança escrita. Vejo isto desde cedo na psicanálise, em Freud, em como ele tratava suas publicações e propostas conceituais.
Em 1937, com uma obra muito avançada, ele chamou de “feiticeira” a sua metapsicologia: toda a modelagem dinâmica, topográfica e econômica que ele já desenvolvia em 1915, de consciente, pré-consciente e inconsciente, com os movimentos de repressão ou transferência, assim como seus modelos econômicos, que observavam investimento libidinal, despesa psíquica. Não haveria de ser diferente quanto a sua modelagem do dito “aparelho mental”, com as tão comentadas instâncias de id, ego e superego. Cada um em seu tempo, são estes os esquemas que informam esta bibliografia magistral: Totem e Tabu, Psicologia das Massas, e também Além do Princípio do Prazer, ou O Mal-Estar na Civilização e mais. Que Freud tenha chamado sua modelagem conceitual de “feiticeira” — em 1937, referia-se a ela como quase uma ‘fantasia’ sua — vejo nisto a suspensão da cognição que marca uma psicanálise de maior vigor ético.
Este cuidado epistemológico de suspeita dos modelos estende-se, portanto, para o conjunto dos textos fundamentais. Em certo sentido — faço a provocação — nós lemos as “fontes da psicanálise” do mesmo modo que quem busca justiça há de ler as ditas “fontes do direito”: sempre com responsabilidade pela obra interpretativa proposta, porque o texto não fala sozinho. Nós o fazemos falar. A experiência da psicanálise envolve que uma pessoa suspeite de suas próprias conclusões.
Às vezes, vejo discussões acaloradas sobre pontos bem teóricos como, por exemplo, se foi própria ou imprópria a leitura que Lacan fez de Kant. Entendo que o ponto possa ter interesse nos estudos de Kant — será um episódio de má leitura, a ser contrastado com alternativas? Não tem brilho particular, porém, nos estudos psicanalíticos. Neles, a meu ver, melhor recorrer a Lacan como um clínico que ensaiava um discurso sobre sua prática, sem pretenção filosófica, e valeu-se de um repertório comum aos estudos parisienses da época. Seus escritos servirão a quem conhece as referências, para pensar, talvez, por exemplo, que ética Lacan parecia delinear, quando aproximou Kant e Sade. Ainda assim, como disse Freud em 1937, este exercício de leitura avizinha-se de uma fantasia a respeito das palavras de Lacan.
Ele mesmo afirmou que quem ensina psicanálise o faz da posição de analisando[1]. A soberania da clínica é a soberania do dizer sobre o que é dito — insisto. Quem não considera isto permanece colado ao nível cognitivo, de geração de interpretações, da psicanálise. Uma intensificação da experiência clínica apontaria para este leitor uma reflexividade mais rica.
Sobre isto, vale lembrar, de Jorge Luis Borges, o conto “Pierre Menard, Autor do Quixote”. Ali, Borges fala de um escritor francês do século XX que teria reescrito o Quixote, só que ipsis litteris. A questão é que apenas por ter sido escrita por Menard, no século XX, a obra adquiriria toda uma outra significação, teria outro sentido político e requereria do autor habilidades diversas daquelas de Cervantes. O mesmo texto, dito em outro tempo, era outra obra. Se assim não fosse, não teríamos como valorar a interpretação musical que respeita a partitura, ou o teatro que segue o roteiro. A performance confere vida e atualidade ao escrito.
Nos textos da psicanálise, tanto quanto nos textos jurídicos, ademais, não há bula para a vida. Quando o agir está em jogo, o texto passado é ponto de apoio da linguagem atuante e elemento de composição, poiesis, de novas fórmulas.
Existe, então, interdisciplinaridade?
II. Quanto à interdisciplinaridade. Acredito que estes dois campos de clínica e provocação reflexiva — direito e psicanálise — tenham o potencial de desacomodar, um no outro, pontos que tendem a descansar irrefletidos. O ganho é enorme.
De um lado, o precioso aporte do pensamento jurídico à psicanálise enquanto teoria — e, no mesmo sentido, a todas as teorias psi — está no potencial questionamento de qualquer quadro teórico enquanto fundamento da terapêutica. O direito também tem sua dimensão terapêutica. Nas questões sociais, ele elabora conflitos. Para isto, está-se acostumado a uma pergunta pragmática e até política: qual o instrumento adequado? Raramente vejo, no meio jurídico, aficcionados por teorias. Não que não haja. Mas na “terapêutica” jurídica, o critério mais presente é o da eficiência, e migra-se rapidamente de teoria para atender a este critério. Cada nova geração discute fluentemente novas saídas. Recaracterizam-se os casos, com o tempo.
No campo psi diz-se que os profissionais não escolhem as teorias que adotam: são escolhidos por elas. Há histórias de amor, não apenas com autores, mas das pessoas com seus grupos de estudo e professores. Da psicologia experimental à existencial, os estudantes apaixonam-se. Habitam a episteme de Skinner, ou uma abertura fenomenológica. Encantam-se com o marco epistemológico ou a riqueza literária do pensamento de Freud. Elegem um e outro freudianos. Dedicam a vida a seus autores favoritos.
É claro que estes autores de maior valor histórico só chegam a isto porque suas perspectivas são ricas o bastante para acolher com muita flexibilidade os casos clínicos. As grandes teorias psi são todas capazes de alguma reflexividade: revisão, reinvenção, atualização.
Psicanálise e justiça
Inobstante a riqueza de cada autor, para a terapêutica, e especialmente para ela, quanto mais o clínico estiver instrumentado, melhor. Então, se entendermos que outros teóricos encontraram vias, arquiteturas de pensamento, mas propícias a resolver certas situações, não seria até eticamente preocupante não as utilizar? Não tentar um tratamento mais eficaz? Há perguntas propostas pelos cognitivistas que considero muito úteis na sensibilização dos psicanalisandos. Há recursos comportamentais que trazem alívio aos pacientes — a inversão, por exemplo: pedir para a pessoa parar de tentar, por um tempo, uma dieta ou tratamento para o qual é preciso ainda achar o arranjo mais efetivo. Há questões de imensa importância epistemológica que a psicologia existencial colocou. É legítimo ignorarmos isto, por fidelidade a uma linha teórica? Quem procura um clínico fechado em sua atuação, às vezes até sob o estereótipo de um autor famoso, quase como uma “loja-franquia” do autor, sabe que está fazendo o sacrifício de alternativas? Foi estudando teoria da justiça que pensei em uma ética de maximização das possibilidades lógicas para o paciente.
Para mim, esta é a significação mais profunda da soberania da clínica: ela se dirige sempre a uma abertura de possibilidades, que amplie a percepção do paciente da sua própria liberdade. É ilegítimo reduzir a liberdade do outro. A máxima liberdade, a máxima percepção de possibilidades, se dá na constante subida reflexiva da clínica. Esta é a direção do trabalho, a meu ver. O discurso clínico tem que levar a liberdade do outro em consideração. É lição que trago do ensino do professor Tercio. Nossas intervenções em consultório envolvem um “dever de prova infinito”.
O campo do pensamento jurídico
Aqui, é o pensamento jurídico que provoca a psicanálise. Em contrapartida, a experiência psicanalítica terá sempre algo a dizer sobre as condições do agir que o jurista observa no mundo. A psicanálise, logo de partida, põe em suspenso toda verdade factual.
As coisas não são tão elementares quanto às vezes se dizem nos processos judiciais a respeito da memória, da produção de provas, das motivações da ação humana, das condições de responsabilidade pelo ato, ou dos efeitos da linguagem sobre a pessoa — que são extremamente variados.
Hoje, esta provocação é importante, porque parece que estamos em um momento de acolhimento maior de discussões sobre a “dimensão psíquica” das pessoas pelo Judiciário. Há noções que o direito simplificou, como culpa e dolo, ou boa-fé e affectio societatis. Mas os direitos trabalhista e de família, em especial, mantêm-se imersos em questões densas e sensíveis. Os padrões de prova jurídica não são os mais aptos a compreender os efeitos da linguagem no tempo. Na clínica psicanalítica bem feita, a pessoa trabalha, por um movimento íntimo às vezes muito lento, as diversas significações de cada cena, de cada fala de que se recorda, independentemente da veracidade da memória, até entrar de acordo com sua história. Seria preciso considerar com cuidado como o direito, ao firmar interpretações dos fatos na forma de sentenças, atrapalha ou ajuda neste processo.
Esse aporte da experiência clínica psi, e psicanalítica, de qualquer modo, parece já um tanto reconhecido pelos juristas. Trará mais e mais frutos. Mas vejo ainda outro espaço muito rico para a interdisciplinaridade, em teoria e filosofia do direito. Nelas, a dúvida sobre o que é a normatividade fica sempre mal resolvida quando os estudiosos buscam resposta na articulação das normas, no nível do dito, e não discutem as condições do dizer.
Autores expressivos em teoria do direito não percebem a vitalidade do dizer normativo, e dedicam seu esforço maior a bem acomodar a relação entre princípios e normas, as dimensões estática e dinâmica dos sistemas, os critérios de reconhecimento e validade da norma, o alcance da hierarquia, a espaço para moralidade e justiça na aplicação de regras, a oposição entre pensamento lógico e atos discricionários. No que escapa à lógica, estes autores são facilmente levados a um suposto realismo. A decisão jurídica parece-lhes ser sempre, no limite, arbitrária, temporal, um ato de poder. A teoria do direito, assim, mostra-se árida, como se discutisse a organização de uma sala vazia: fala-se da disposição do mobiliário, de seus melhores usos, independentemente das pessoas. Quando elas entram, reacomodam as cadeiras, agrupam mesas de modo imprevisto: realismo. Há quem rasgue a teoria e diga que o direito é a decisão dos tribunais, já que os magistrados vão inevitavelmente dispôr a seu gosto.
Com isto, pouco se estudam as condições do dizer dos magistrados ou legisladores. Quando se entra nelas, é mais comum a perspectiva mecânica, não ética. Hoje se examina, por exemplo, a severidade das punições, relativamente à alimentação dos juízes no momento da sentença. Há mais que podemos fazer. Mesmo o estudo das condições cognitivas do decisor é insuficiente. Há pesquisas, por exemplo, sobre a formação da convicção de juízes sobre os fatos. Busca-se sua estrutura probabilística. Aqui, também a preocupação é mecânica. É como se a inteligência do juíz pudesse ser reduzida à modelagem de dados enumeráveis e finitos. Quem vê assim, há de aceitar que inteligência artificial substitua pessoas na função de decisor — e, se acreditarmos nisto, estaremos escamoteando o dizer, que ficará oculto e irresponsável, por trás dos ditos das máquinas.
Psicanálise e decisões jurídicas
Como na psicanálise, a dimensão cognitiva da decisão jurídica haveria de ser secundária. É histórica, cambiante e falsificável. A dimensão ética é que é invariante e de primeira ordem de importância. Está acima de toda inteligência mecânica, de toda modelagem de dados. No Brasil, temos uma teoria que alcançou esta dimensão. Por isto, ela supera epistemologicamente as discussões que vêm de Kelsen e Hart ao contemporâneo Schauer. É a teoria do professor Tercio, que encontrou os limites éticos do pragmatismo argumentativo, na abertura inevitável do discurso à estrutura dialógica. No diálogo, o dito fica sempre aquém do dizer. Não há palavra final. A interpretação é sempre potencialmente aberta, e o que se defende é o espaço de fala, a presença de quem fala, tal qual na clínica psicanalítica. Sempre se pode dizer algo mais. A teoria da norma jurídica do professor Tércio alça a discussão jurídica até a mais elevada reflexividade — é uma metaética.
Para ainda mais felicidade dos brasileiros, no campo da computação também uma teoria capaz da mesma subida reflexiva acabou deitando raízes profundas no país. É a teoria da informação algorítmica como avançada por Gregory Chaitin. O matemático norte-americano, de família argentina, que propôs avanços para a teoria da informação ainda na adolescência, premiado e discutido no mundo todo, veio viver no Brasil. Ele desenvolveu uma reflexão epistemológica sobre a computação junto aos brasileiros Virginia Chaitin e Felipe Abrahão, em um ambiente de estudos de qualidade global, encabeçado também por Newton da Costa e Francisco Antonio Doria.
Hoje, esta teoria, que mostra que a dimensão ética da tecnologia só pode ser humana, e é baseada na espontaneidade humana, sempre acima do tratamento mecânico de dados conduzido pelas ferramentas de IA, tem sido considerada compatível com a “ética do dizer” do professor Tercio. Ambas as teorias encontram a direção mais rica da clínica. É um tesouro interdisciplinar que o nosso país tem a oferecer ao mundo. Cabe a nós sabermos pedir a palavra para apresentar isto no debate internacional.
A formação do jurista e a psicologia clínica
INB: Em um mundo por vezes caracterizado como contingente, fluído e flexível, a formação do jurista ainda se pauta pelas ideias de certeza e previsibilidade do direito. Como a senhora observa essa tensão a partir de uma perspectiva psicanalítica?
Andrea Naccache: Considero interessante olhar esta tensão de um ângulo bem aberto. Se pensarmos o direito como espaço comunicativo no campo mais amplo das linguagens, podemos nos perguntar primeiro o que desejamos de uma linguagem, em termos de estabilidade e mudança, para depois pensar o quê desejaríamos do direito, com suas operações específicas, enquanto linguagem.
Linguagens precisam, em alguma medida, de previsibilidade e de um aspecto de “certeza” — imaginemos a comunicação em uma sala cirúrgica ou de emergência médica, ou em um centro de controle aeronáutico. Referências aí devem ser muito precisas. A própria cortesia no trato social importa em previsibilidade. Mas linguagens também precisam de abertura interpretativa, espaço para ressignificação e inovação, que decorrem da liberdade, de espontaneidade e variedade de usos, que fazem com que não digamos sempre e somente o óbvio ou o necessário.
A imprevisibilidade é condição de interesse e curiosidade de uns no ato de dizer dos outros — na presença deles, portanto. É condição de nosso encantamento com a vitalidade dos outros. Liberdade, espontaneidade, variedade refletem-se em graus de aleatoriedade de uso da linguagem. Não apenas ajudam a aliviar de imediato os conflitos — se a linguagem comporta aleatoriedade, um mal-entendido é perdoável — mas também acolhem o pluralismo, a transformação social, a justiça entre diferentes, a sensibilidade às circunstâncias, a construção de desejos, a descoberta científica. Tudo isto vem do contingente, fluído e flexível nas relações comunicativas.
A aleatoriedade não apenas tem efeitos terapêuticos em tudo o que dói, já que traz alternativa e mudança, mas também implica as pessoas responsavelmente. Se podemos fazer emergir o novo em linguagem, algo do futuro pertence a nós, não somos reféns das nossas circunstâncias. Para o Seminário da Feiticeira de 2022, propus que nossa ação pode ser animada por duas éticas distintas e, em quase tudo, antagônicas. Ou nos orientamos à defesa, ou à criatividade. Haveria uma ética defensiva e uma criativa.
As outras “éticas”
A ética defensiva pede certeza e previsibilidade da linguagem dentro do seu campo — do que ela quer preservar — e aplicará seu oposto, a decepção, a confusão, o falso, contra seu adversário. É uma ética do medo, que pensa em conservar identidades, tradições, propriedade, cumulativamente, sempre como garantia contra o futuro, para que o diferente, o estranho, não possa incidir. É também uma ética discriminatória — entre o seguro e o perigoso — que sufoca o novo, a experiência e a alteridade.
A ética criativa, ao contrário, dissolve o medo e ressente a previsibilidade. Ela não faz discriminação: quer que as coisas se misturem, numa experimentação alquímica, para ver o que vem de novo. Ela floresce na ambiguidade, no pluralismo, na abertura, na complexidade de sentidos da imagem poética. Não trabalha contra o futuro, mas para antecipá-lo: futuro é mudança. Esta ética ama a incerteza, a praça pública, a surpresa no que o outro irá dizer. Não busca acumulação, mais do mesmo, o próprio e o idêntico.
Agora, vejamos, estas éticas abrem abordagens distintas para grandes problemas do direito: identidade e propriedade. Não é nestes campos que mais se clama por certeza e previsibilidade?
De um lado, o direito faz um trabalho importante de reconhecimento e inclusão da identidade das pessoas em seu campo defensivo. A identidade humana não é estável. Depende de jogos de espelhos e projeções. Grupos formam-se e criam critérios de pertencimento. O direito, aos poucos, assumiu dimensões de equidade e universalismo importantes, proibindo que uns grupos sacrificassem outros, ou criando mecanismos que tornassem mais difícil as pessoas desprezarem o valor da vida de outras. A noção jurídica de dignidade humana guarda um senso de identidade — identificação entre todos, e do humano como um valor. O direito, neste aspecto, busca artifícios para manter estável o que não é, em linguagem.
Mas o direito é um recurso da linguagem. Então, os movimentos identitários mais agressivos contra o diferente às vezes até serão detidos pelos textos legais e declarações universais, mas às vezes também usarão a norma jurídica para seus fins. O preconceito emerge servindo-se da norma criminal, por exemplo, ou de uma variedade de regras distributivas.
Donde vale pensar que aquilo que se deseja cultivar — expressões culturais, presença e formas de vida — floresce mais pelo investimento em criação que pela ética defensiva. Vidas e culturas mostram sua importância quando trazem o novo, a transformação, quando participam do futuro. Isto não é o direito defensivo que propicia. É a criatividade, e o investimento na direção dela. Há um direito voltado a este investimento, a fazer a vida exuberante, a garantir a possibilidade do encontro, das expressões de arte e cultura, da inovação — mas este, curiosamente, será um direito ao contingente, ao fluído e flexível, à alquimia das gentes e de suas expressões.
Segurança jurídica e propriedade
No campo da propriedade, vale a mesma lógica. Os autores que mais vejo promover discussões sobre segurança jurídica ocupam-se na vida prática de finanças e tributos. Muitas vezes são economistas, e anseiam por garantir o retorno de investimentos financeiros. Em outras palavras, visam proteger a renda, que não tem relação tão direta com a geração de riqueza.
Para haver renda, o mundo precisa ser um tanto estável, previsível. O direito é visto nisto como ferramenta. Garantia patrimonial e renda, porém, não adicionam valor. A riqueza, enquanto valor novo, só nasce de processos criativos. (Aliás, é de se pensar que, em uma ética defensiva, quem tem renda vai querer garanti-la; outros pensarão em combater a pobreza. No entanto, só em uma ética criativa pode-se gerar riqueza, que tranquilizaria uns e outros).
Daí que a segurança jurídica abra-se a uma boa discussão. Ela serve à defesa das expectativas fora do Judiciário, onde a estabilidade da coisa julgada é fundamental, onde certos estandartes, como o pluralismo, precisam ser sustentados. Mas quando uma causa está em juízo, da perspectiva do juiz, a segurança jurídica será um parâmetro pertinente? Na decisão há sempre alguma regra sendo assegurada, em detrimento das alegações da parte perdedora. O que se quer é o olhar sobre o justo do caso: se um contrato agrava uma injustiça, o Judiciário está lá para revê-lo.
Isto é juridicamente inseguro? Ou a vertigem é do fluxo de caixa? No direito, ao que me parece, a segurança está em se poder discutir juridicamente toda forma de constrangimento que emerja nas relações, inclusive, contratuais. Há hoje um importante problema em torno da hipocrisia do consentimento em contratos, sobretudo os de adesão, comuns em tecnologia e finanças.
Não estranho quando autores ocupados com segurança jurídica declaram-se céticos sobre a justiça. A certeza e a previsibilidade que eles buscam talvez seja uma alternativa mais barata e unilateral à trabalhosa inteligibilidade da mudança e à decisão dialogada e conciliadora, que são entregas do julgamento sofisticado. Só que há muito mais segurança e generosidade em saber navegar na conciliação de forças opostas, ou diversas, que em construir barragens.
Sem a estabilidade da coisa julgada, ou da prescrição e decadência de possibilidades, a própria consulta ao Judiciário perderia valor, é claro. Mas a condição de legitimidade do direito está em sua sensibilidade ao tempo, à fluidez, à liberdade.
A justiça então precisa ter um sentido jurídico, e ele vai implicar em abertura de possibilidades, em pluralismo. Ela, afinal, só emerge como questão quando o estável e certo já não funcionam. É convocada quando a ordem falha. Virá sempre com mudanças. É a introdução do fluido e flexível contra o que, por ser rígido, fere alguém.
Ela emerge, reitero para concluir, de uma clínica, na qual os efeitos de verdade, interpretativos, terapêuticos, são secundários, e o movimento principal é a mudança de nível reflexivo — fazer as partes pensarem “Quem sou eu, nesta situação?”, “Eu poderia ter agido diferentemente?”. Enriquece assim a percepção de alguém de suas possibilidades lógicas, o que haveria de entregar a todos, ao final de um processo, perspectivas ampliadas de futuro, e refinar a ética e o senso de responsabilidade de cada um. É como vejo.
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[1] Jacques LACAN « Allocution sur l’enseignement » Autres écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 304.
[1] FERRAZ JUNIOR, T.S. Teoria da Norma Jurídica, 1986, p. 165.