No dia 20 de março de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, se reuniu com a psicanalista Maria Rita Kehl para discutir as relações entre ressentimento e sociedade.
INB: Quando falamos em sentimentos, é comum tratar do assunto sob o ponto de vista de uma linguagem classificatória: de um lado, estão os sentimentos bons e de outro os ruins, que temos de evitar a qualquer custo. No entanto, uma perspectiva mais crítica do problema pode concluir que é um grande desafio construir psicologicamente uma situação na qual os sentimentos complicados simplesmente não existam. Como a psicanálise aborda essa dicotomia qualitativa e como a senhora compreende o ressentimento na sociedade brasileira?
Maria Rita: A linguagem do senso comum tende a classificar coisas, pessoas e sentimentos como bons ou ruins, positivos ou negativos. No entanto, pessoalmente, acredito que é equivocado analisar as emoções dessa forma. O renomado filósofo do século XVII, Baruch Espinosa, trata as “paixões da alma” a partir do paradigma da tristeza e alegria, Isto é, paixões como a raiva extrema e o ressentimento são notavelmente tristes, enquanto a euforia e o amor são alegres. Do meu ponto de vista, essa abordagem é interessante porque retira o julgamento de valor dos sentimentos.
Isso não significa que eles não possam causar o mal. De fato, é possível que alguém sinta tanta raiva por outra pessoa ao ponto de desejar sua morte, embora não execute essa ação. Portanto, é preciso ter cuidado ao julgar moralmente situações dessa natureza. Sigmund Freud, por exemplo, também afirmou que não devemos nos julgar por nossos impulsos, fantasias e desejos, mas sim pelas nossas ações.
O ressentimento como uma paixão triste
Apesar da categorização de Espinosa sobre as paixões proceder à psicanálise de Freud, ela possui uma relação especial com o ressentimento. O ressentimento pode ser considerado uma “paixão triste”, que diminui a capacidade de viver e o entusiasmo diante da vida. Ele é triste, porque reduz o bem estar do ressentido, que se torna resmungão e opta por não se libertar da memória de uma injúria e de um dano causado por alguém.
Assim, o ressentido lida constantemente com a intenção de punir seu algoz. Isso é significativo, pois ser ressentido não é o mesmo que ser vingativo. Tive um paciente que costumava dizer que perdoar é humano, mas a vingança é o ato divino. Ele acreditava que não se vingar era admirável, pois exigia um esforço para não se render ao desejo da ação violenta. No entanto, qualquer ato vingativo já produz efeitos. Se uma deslealdade conscientemente é cometida e você é capaz de responder, isso pode ser suficiente para impedir o ressentimento. Até mesmo o desprezo pode ser um castigo válido, como dizia Dona Ivone Lara.
É de extrema importância distinguir o ressentimento da vingança. Eu não me considero uma pessoa ressentida, embora haja situações que ocorreram em minha vida que poderiam ter alimentado esse sentimento em mim. Um exemplo disso foi quando fui deixada pelo homem com quem vivi o caso de amor mais doloroso. Naquele momento, o homem por quem me apaixonei também se apaixonou por outra mulher. Apesar de ter sofrido intensamente por isso, nunca cultivei ressentimento em relação a ele. Pelo contrário, nós inclusive viajamos juntos posteriormente.
Essa breve narrativa ilustra que a maneira mais eficaz de evitar o ressentimento é reconhecer nossa própria parcela de responsabilidade nas circunstâncias que nos levaram a isso. É certo que há várias situações na qual alguém é vítima completa, porém em muitos casos o sofrimento também é originado por nossas próprias ações.
Consequentemente, o ressentimento também desempenha o papel de proteger o ego. Em vez de refletirmos sobre nossa contribuição para o ressentimento, lançamos absolutamente a culpa sobre o outro. Ou seja, o indivíduo ressentido se alimenta da narrativa para evitar enfrentar a realidade.
INB: Em seu livro “Ressentimento”, a senhora trabalha com a ideia de que no ressentimento há sempre o movimento de responsabilizar o outro e não a si. Na sua opinião, de que forma o ressentimento está presente na dinâmica eleitoral brasileira e no próprio modus operandi discursivo dos candidatos às eleições?
Maria Rita: Eu não concordo que esse fenômeno caracteriza o ressentimento. Primeiramente, porque ele surge quando o indivíduo de fato sente-se prejudicado, o que difere da situação na qual um candidato recorre a retórica para invalidar as posições de seu oponente com o intuito de vencer uma eleição. As acusações e críticas presentes no debate político democrático são parte integrante de sua dinâmica.
Quando alguém é prejudicado, não consegue se defender e superar a dor causada, surge o ressentimento. Nossa mente revista os fatos inúmeras vezes porque não admite-se a própria falta de coragem diante da violência do outro. A essência do ressentimento consiste em ver-se como vítima repetidamente, enquanto anseia por retornar ao mesmo ponto a fim de ocultar algo dentro de si.
INB: Um dos assuntos mais polêmicos que permearam a redemocratização no Brasil é a Lei da Anistia. A senhora avalia que há ressentimento nesse processo e de que maneira isso contribui para a eleição do ex presidente?
Maria: Eu discordo dessa visão. Principalmente porque os militares foram anistiados e aqueles que se opunham à anistia dos militares eram, em sua maioria, representantes de grupos de esquerda que não se mobilizaram para eleger Bolsonaro impulsionados pelo ressentimento.
Nesse contexto, não é apropriado falar de ressentimento, uma vez que a esquerda estava ativamente envolvida na busca pela punição dos responsáveis e não apoiou a anistia. Apesar disso, houve uma clara dissidência. Por exemplo, durante o meu envolvimento na Comissão da Verdade, conheci vítimas de tortura e familiares que aceitaram a anistia ampla, geral e irrestrita porque temiam que seus entes queridos permanecessem detidos por mais tempo, correndo o risco de morte.
Isso é muito relevante. Quando há aceitação, o espaço para o ressentimento é reduzido. Não se trata de uma manobra desleal, mas sim de uma decisão tomada diante das circunstâncias. Certamente, a anistia está longe de ser a solução ideal, mas sua aceitação por parte da resistência foi motivada pelo desejo de libertar os prisioneiros políticos.
Os trabalhos da Comissão da Verdade
Os trabalhos da Comissão da Verdade, mesmo que tardios, revelaram que a falta de interesse em se informar sobre os crimes da ditadura era mais presente entre a direita e seus apoiadores, que sustentaram o regime militar. Países como Argentina, Uruguai e Chile implementaram iniciativas imediatamente após o término de suas ditaduras para descobrir a verdade e garantir justiça para os crimes cometidos. Essa impressão se acentuou para mim após visitar esses países, pois fiquei impressionada com os diversos museus, memoriais e monumentos que revelam partes dessas histórias.
O fato é que a anistia foi aceita por ambos os lados, de forma irrestrita. Durante a Comissão da Verdade, muitos demonstraram desconforto e irritação com as informações divulgadas, talvez porque lhes fosse conveniente manter o silêncio. Contudo, a anistia cria uma falsa sensação de equidade ao colocar no mesmo nível as violações cometidas pela resistência e pelos militares. É verdade que houve luta armada e, em alguns casos, perdas humanas. No entanto, também existiram aqueles que foram torturados até a morte, cujos corpos nunca foram entregues às famílias e permanecem desaparecidos até os dias de hoje.
Incentivadas pela Comissão, iniciativas foram articuladas para localizar ossadas em sepulturas anônimas, como evidenciado pelo trabalho conduzido pelo professor Pedro Pontual. Tudo isso visa proporcionar um senso de encerramento aos familiares sobreviventes e dignificar um sepultamento adequado para as vítimas. Na minha perspectiva, é nesse ponto que o ressentimento surge.
Muitas pessoas foram coniventes com o regime ditatorial, incluindo membros de minha própria família. Até o meu ingresso na Universidade de São Paulo, não compreendia completamente a seriedade daquele momento histórico. Isso era comum, pois haviam aqueles que não se envolviam na oposição ao regime e, consequentemente, não tinham conhecimento das práticas de tortura, mortes e desaparecimentos. A imprensa estava sujeita à censura, e o discurso em torno do “milagre brasileiro” ganhou cada vez mais força. Sob certa perspectiva, tudo parecia estar bem e em ordem.
No entanto, trinta anos depois, em 2012, uma presidente que havia sido presa e torturada decidiu criar uma Comissão da Verdade para finalmente revelar todos os crimes cometidos durante esse período. Com a divulgação das informações, algumas pessoas se deram conta de que não haviam tomado posição diante das atrocidades perpetradas pelo regime. Isso gerou ressentimento não por uma questão de culpa, mas por causa de uma grande passividade.
Há um outro aspecto a ser considerado. Durante a votação do impeachment de Dilma, por exemplo, o então deputado Jair Bolsonaro se posicionou a favor do processo e, em sua declaração, prestou homenagem ao coronel Carlos Brilhante Ustra, um dos principais torturadores do período ditatorial. Esse mesmo indivíduo foi eleito presidente da república.
INB: As ditaduras latino americanas são conhecidas pelo uso institucional da violência militarizada para a repressão daqueles que eram considerados inimigos do Estado. No Brasil, o tratamento do tema ganhou sistematização décadas após o fim da ditadura civil-militar, com a instituição da Comissão Nacional da Verdade, em 2012. Como a senhora avalia o desenvolvimento de um ressentimento social neste contexto de graves violações aos direitos humanos?
Maria: Eu não caracterizaria esse processo como ressentimento, que ocorre quando alguém age de maneira covarde em uma situação e depois precisa alimentar uma narrativa para evitar encarar a realidade. Isso é muito distinto do cenário que se desdobrou após o término da ditadura. Ao meu ver, nesse caso, trata-se de mágoa e de um sentimento de injustiça.
Por exemplo, quando Bolsonaro compareceu à Câmara durante o impeachment de Dilma e elogiou Ustra, a esquerda não ficou ressentida; ela ficou furiosa e indignada. Essa é a diferença. Ninguém ficou pensando “coitado de mim, o que fiz para merecer isso?”. Pelo contrário, houve manifestações organizadas e protestos em locais públicos.
Na minha opinião, a eleição de Lula deixou Bolsonaro ressentido, pois ele foi o primeiro presidente na história da redemocratização a tentar se reeleger e não obter sucesso. Além do temor de ser preso, ele tem todas as razões para sentir ressentimento, porque compreende o seu fracasso como presidente. E o ressentimento age como um escudo para evitar que o indivíduo confronte a si mesmo e questione suas ações. Por essa razão, ele atribui a culpa aos outros, alegando: “Veja o que fizeram comigo. Isso é uma injustiça! A eleição foi roubada. Exijo uma recontagem de votos!” Entretanto, a realidade é mais complexa e a dificuldade reside em encarar a própria frustração diante da frustração.
INB: Na sua opinião, o ressentimento é uma dinâmica que acontece apenas com o sujeito ou ele pode ser coletivo?
Maria Rita: O ressentimento também pode ser coletivo, e há exemplos históricos que ilustram essa perspectiva. Um caso emblemático é a Alemanha nazista sob o domínio de Adolf Hitler. O discurso que sustentava o governo na época baseava-se no ressentimento pela humilhação que o país havia sofrido na Primeira Guerra.
É notável que esse sentimento permaneceu o mesmo diante das mudanças tecnológicas. No entanto, é possível que os gatilhos que o desencadeiam tenham se alterado. O ressentimento surge quando o indivíduo desempenha um papel que contribui para a situação, mas não quer reconhecer esse fato. Se ele o faz, então já não se trata de ressentimento, mas de arrependimento, algo que pode ser completamente superado.
Se não há intenção de admitir, o sentimento persiste e, mesmo que inconscientemente, a sensação de ter cometido o erro permanece cutucando a mente. Nutrir o ressentimento é uma forma de esconder de si mesmo a sua responsabilidade, a fim de proteger o ego e evitar encarar a sensação desconfortável. O ressentido busca culpados externos, pois precisa de justificativas para explicar o sofrimento. Seu oposto é o arrependimento, pois simplesmente reconhecer o erro auxilia no processo de perdão, tornando desnecessária a tentativa de culpar os outros.
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