A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, conversou, no dia 8 de fevereiro de 2023, com o professor André Karam Trindade sobre a relação entre Direito e Literatura.
INB: O ensino jurídico muitas vezes vale-se de um método pouco atento a explorar o direito em um contexto multidisciplinar. Como a literatura pode auxiliar na construção de lugares de sentido do direito?
André: A relação entre Direito e Literatura é plural e pode ser encarada de diversos modos. Algumas pessoas afirmam que o Direito e a Literatura formam uma disciplina, outras compreendem que estabelecem um novo campo de pesquisa, uma abordagem inovadora ou até mesmo uma metodologia. A multiplicidade de interpretações é confrontada por uma tendência que prevalece entre os profissionais do âmbito jurídico, que é a de determinar a natureza de qualquer situação. Mas, na realidade, não há uma natureza jurídica específica que defina o vínculo entre essas áreas.
O tempo passa rápido e já estamos em 2023. Falar sobre interdisciplinaridade hoje é relativamente mais simples do que era há vinte anos. Por exemplo, nos anos 2000, o padrão era trabalhar o Direito isoladamente, separado de outras instâncias do conhecimento. Isso era um resquício negativo do positivismo, porque valoriza apenas a perspectiva normativista própria e exclui todas as conexões com outras esferas. Nesse sentido, acreditava-se com fervor em uma “autossuficiência” do Direito.
Direito e literatura: “autossuficiência” do Direito”?
Trata-se de algo problemático, mas que produz efeitos até agora. Claro que, atualmente, a interdisciplinaridade é melhor aceita. Me lembro quando, em 2010, participei de uma série de avaliações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) na Área Interdisciplinar. Naquela época, havia inúmeras dificuldades para definir os parâmetros que permitiam identificar certo programa de pós-graduação como interdisciplinar. Mais do que reunir duas disciplinas, era preciso produzir algo novo, um conhecimento que não se restringia àquele gerado no campo disciplinar.
Esse debate pode parecer muito simples. Mas ainda existem estigmas e rótulos que consideram essas observações como forçadas. Para exemplificar, um profissional do Direito que é apaixonado por literatura pode parecer um mero diletante, já que esse hábito pode não levar a nenhum lugar. Do meu ponto de vista, considero essas afirmações simplistas e equivocadas, uma vez que elas ignoram a complexidade da questão.
Mas também tenho algumas restrições em tratar o direito como arte. Recentemente, Roberto Benigni concedeu uma entrevista durante um festival de cinema na Itália, no qual se celebraram os 75 anos da Constituição italiana. Nessa oportunidade, Benigni afirmou que a Constituição seria uma obra de arte. Contudo, existem fragilidades nessa afirmação, especialmente se considerarmos a técnica em sentido estrito. A Constituição possui força normativa, o que é diferente de uma obra de arte. Seus propósitos não são os mesmos. O texto constitucional não foi feito para ser belo, mas sim para ordenar e transformar a realidade. É necessário compreender as particularidades de cada um dos universos, embora certamente eles possam se conectar em algum momento.
O texto como ordenador da realidade
Realizei essas observações introdutórias para demonstrar a existência dos mais diversos caminhos para responder a indagação. Em 2023 é muito mais fácil falar em Direito e Literatura do que há 100 anos, justamente porque houve avanços significativos ao longo desse período. Contudo, ainda existem pessoas que não reconhecem essa intersecção como ciência e, por isso, desconsideram sua relevância.
A expansão desse conhecimento começou a ser mais bem compreendida e trabalhada durante o século XX. Porém, antes desse momento, os próprios irmãos Grimm diziam que o Direito e a poesia nasceram no mesmo leito. Além disso, podemos identificar importantes autores americanos do século XIX que exploraram essa relação. Mas, ao longo do século XX, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, a abordagem do tema tornou-se mais organizada. Mesmo assim, o vínculo entre Direito e Literatura era observado mais como uma bandeira, do que qualquer outra coisa.
Foi a partir dos anos 1970 que uma sistematização científica começou a tomar forma, sobretudo em razão do surgimento do movimento norte-americano Critical Legal Studies. Nessa época, alguns autores iniciaram um debate mais rigoroso. E o Brasil não ficou atrás nesse processo.
Os escritos de Aluísio de Carvalho Filho
Ainda na década de 1930, Aluísio de Carvalho Filho publicou os primeiros escritos sobre o assunto, abrindo a possibilidade de se pensar a relação entre Direito Penal e Machado de Assis.
Avançando historicamente, nos anos 1940, outro baiano, Lemos Brito, também explorou de forma inovadora essa interdisciplinaridade. Seu objeto de estudo era a figura do criminoso na literatura brasileira. Embora esse ensaio específico não seja tão conhecido, Lemos Brito apresentou uma leitura particularmente lombrosiana do assunto.
Porém, antes mesmo da chegada da década de 1990, o cenário mudou. Em 1980, Luis Alberto Warat consagrou-se como um dos maiores precursores dos estudos em Direito e Literatura. Warat revolucionou a maneira pela qual pensamos o Direito, seja nessa interseção com a literatura, com o cinema, com a psicanálise, com a filosofia, com a sociologia ou com a antropologia. Para ele, é impossível adentrar no campo jurídico sem levar em consideração tais dimensões.
O manifesto do surrealismo jurídico e A ciência jurídica e seus dois maridos
Quando Warat publicou O manifesto do surrealismo jurídico e A ciência jurídica e seus dois maridos, ele revolucionou a formação dos juristas de forma inédita. Tive o prazer, a satisfação e a honra de ter sido um de seus últimos alunos. Todos aqueles que propõem uma perspectiva mais crítica do mundo jurídico foram alunos de Warat, ou de alguém que foi aluno dele. Sua atuação transformou completamente a educação jurídica brasileira.
Portanto, do meu ponto de vista, isso é um divisor de águas para a institucionalização da relação entre Direito e Literatura. Eu mesmo já publiquei alguns textos que tentam mapear quais foram os autores que se propuseram a contribuir para esse campo do conhecimento, levando em consideração as mais diversas regiões do país. Quando avançam os anos 2000, as traduções de textos pertinentes à área ainda eram muito limitadas.
Entretanto, em 2005, com a edição brasileira da obra Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico, de autoria do jurista belga François Ost, passou-se a falar de forma mais expressiva sobre Direito e Literatura no Brasil. É impressionante como uma tradução conseguiu despertar a atenção de toda uma comunidade acadêmica crítica para algo que era lido somente em inglês, espanhol, francês, alemão e italiano. A tradução do livro para o português impulsionou as discussões a ponto de elas tomarem outras proporções.
Curiosamente, foi nesse momento que comecei a pesquisar sobre o assunto. Entre o final da década de 90 e o início dos anos 2000, grupos de pesquisa começaram a se institucionalizar pelo país. Os pesquisadores foram se reunindo, discutindo, produzindo em parceria e organizando eventos. Trata-se de algo realmente significativo e que forma a ideia de identidade. Mesmo para um país tão grande, com dimensões tão vastas, no qual cada um pode agir de acordo com suas vontades, tornou-se possível construir uma unidade entre os pesquisadores. E foi assim que, em 2014, surgiu a Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL).
Rede Brasileira de Direito e Literatura na atualidade
Em 2021, a RDL contava com 14 grupos de pesquisa associados, distribuídos pelas cinco regiões do Brasil, que se reuniam para discutir e produzir conjuntamente. Estabeleceu-se uma verdadeira identidade entre tais grupos, ao mesmo tempo em que o pluralismo era preservado. Por exemplo, os estudos realizados em Sergipe ou na Paraíba são diferentes dos desenvolvidos no interior de Minas ou da Bahia, que se diferenciam da abordagem adotada no Rio Grande do Sul, em Brasília ou em São Paulo. Mas, de certa maneira, todos os pesquisadores estão em contato constante para lidar com questões comuns.
Tudo isso é muito interessante, especialmente quando se fala em internacionalização das pesquisas. Existe algo que é nacionalmente nosso e que os outros devem prestar atenção. Inclusive, há um verbete que escrevi intitulado “Direito e Literatura no Brasil” na Encyclopedia of the Philosophy of Law and Social Philosophy (ed. Springer). Trata-se de um texto fundamental para demonstrar – em esfera nacional e internacional – que há algo de inovador na produção brasileira em Direito e Literatura.
Como mencionei anteriormente, a relação entre Direito e Literatura pode se dar de diversas maneiras. Porém, tradicionalmente, a abordagem mais comum envolve três matrizes que chamarei de proposicionais: i) Direito na literatura; ii) Direito como literatura; e iii) Direito da literatura. A primeira matriz consiste em explorar o imaginário e discutir o Direito a partir de narrativas literárias, enquanto a segunda estuda as questões teóricas relacionadas à literatura e ao Direito. Por fim, a terceira examina como o Direito trata a literatura.
No entanto, muitas pessoas já expandiram essas perspectivas. Calvo González, que foi um grande ícone para todos nós, não seguia essa classificação tradicional. De acordo com Calvo González, os estudos em Direito e Literatura deveriam ser articulados sob o parâmetro das interseções, quais sejam: i) a intersecção instrumental; ii) a intersecção teórica; e iii) a intersecção institucional. E há ainda acadêmicos norte-americanos que mencionam diferentes dimensões, como a hermenêutica e a retórica. Na verdade, cada pensador classifica a relação entre Direito e Literatura por meio de sua própria abordagem.
Há ainda uma importante questão comercial. Isso porque falar em literatura é mais atraente do que falar sobre Direito e narrativa, que talvez seja o mais correto. Mas quando os estudos interdisciplinares começaram a avançar, esse vínculo assumiu grandes proporções e absorveu grande parte do campo conhecido como Law and Humanities. Portanto, uma parcela dos estudos sobre as relações entre Direito e Arte, Direito e Cinema etc. foram incorporados no âmbito temático do Direito e Literatura.
Atualmente, existe uma revista científica [Anamorphosis – Revista Internacional de Direito e Literatura] dedicada ao Direito e Literatura que publica trabalhos sobre todas essas interseções. Talvez, essas áreas, quando pensadas conjuntamente, possuam maior sustentação teórica do que as demais. É comum, por exemplo, quando se trata de Direito e Cinema, utilizar categorias equivocadas, pois, na maior parte das vezes, elas são próprias da literatura e precisam ser ajustadas, pois o filme é uma narrativa mas, ao mesmo tempo, tem elementos que lhe são próprios.
Eu diria que os conceitos centrais para essa discussão são a narrativa e a ficção. A partir delas, é possível ampliar a abordagem para as outras formas de arte. Em outubro de 2022, ministrei um seminário interdisciplinar como professor visitante na Università degli Studi Roma Tre, cujo tema era Direito e Intertextualidade. Nessa ocasião, um dos primeiros pontos que abordei foi a complexidade que está por trás da relação entre Direito e Literatura, que comporta as mais distintas abordagens. É comum as pessoas pensarem o Direito e Literatura a partir dos escritores que mais apreciam. No entanto, o gosto por um autor específico não permite que o pesquisador estabeleça certas associações, muito menos afirmar que elas sejam relevantes para o Direito.
Direito e Intertextualidade
O curso que ministrei na Itália possuía quatro eixos. O primeiro deles tratava da virada linguística para a virada narrativa, que é um assunto discutido apenas no campo da Filosofia. Mas, no Direito, ninguém sabe muito bem como esse giro acontece. E isso é importante porque as narrativas estão presentes desde o discurso da guerra até o das eleições, passando por campanhas publicitárias idealizadas para vender produtos. E parece que, no Direito, esse é um assunto negligenciado, apesar de haver muitos estudos sobre narrativa, especialmente a partir da década de 1980. A verdade é que a centralidade da narrativa vista em autores tanto estruturalistas quanto pós-estruturalistas não foi acompanhada pela teoria jurídica. Por exemplo, nas faculdades de Direito, não existem disciplinas que ensinam os estudantes a como contar uma história e qual a importância da coerência e da verossimilhança. E isso é grave, sobretudo quando compreendido que o Direito é linguagem e, portanto, se funda sobre a palavra, o discurso e o argumento.
No segundo eixo, discuti os diferentes momentos históricos que caracterizaram a teoria do Direito. Nas sociedades primitivas, ele era força e costume. Já na pré-modernidade, passou a ser compreendido como direito natural. Na modernidade, ainda se falava em direito natural, mas agora não era mais regido pelo Cosmos ou por Deus, mas sim pela razão. Aliás, essa evolução é retratada com precisão por Norberto Bobbio, em suas observações sobre o positivismo jurídico. Então, com o advento das codificações, o direito se identifica com a lei. No século XX, a partir de Kelsen, direito é norma. E isso se alterou como cada pensador observava o fenômeno. Para Bobbio, o direito é ordenamento, enquanto Niklas Luhmann traz a ideia de sistema social. Já para H. L. A. Hart, trata-se de uma prática social, enquanto, para Ronald Dworkin, é uma prática social interpretativa. Para Jürgen Habermas, o Direito é uma prática social discursiva e, na opinião de Robert Alexy, é uma prática social argumentativa.
Como se vê, tudo se resume ao modo como o direito se estrutura e se institucionaliza a partir do discurso. Entre os autores melhor exploram a relação entre Direito e Literatura, James Boyd White, Robert Cover, François Ost e Calvo González, para citar apenas alguns, identificam o direito justamente como uma prática social interpretativa e narrativa. Mas não é suficiente apenas entender isso, é necessário agir de acordo com o entendimento.
O terceiro eixo enfocava as tipologias narrativas no campo jurídico. Afinal, todo processo judicial contém um universo narrativo. Isso pode ser facilmente constatado a partir do teor de uma petição inicial, contestação ou sentença. Ou, ainda, do depoimento de uma testemunha ou mesmo de um perito. Ora, cada um desse “atores” do processo traz, no seu relato, sua própria versão dos fatos. Mas, deixando de lado o âmbito processual, poderíamos pensar a narrativa no plano jurisprudencial, por exemplo, que suscita outras questões mais teóricas.
Por fim, o quarto eixo discutia a interpretação e a superinterpretação. Um dos pensadores italianos que mais aprecio é Umberto Eco. Ele escreveu sobre o fenômeno da superinterpretação nos anos 90. Esse é um conceito que também se aplica ao Direito, especialmente à decisão judicial e à jurisprudência, apesar de ainda desconhecido dos juristas. Aliás, estou lançando um livro justamente sobre esse tema nas próximas semanas: Superinterpretação no Direito (ed. Tirant lo blanch).
Direito e Literatura: “O processo” e “O mercado de Veneza”
INB: Há um senso comum que concebe o direito como algo decorrente dos fatos sociais, ao passo que a literatura estaria circunscrita ao domínio da ficção. Todavia, obras como “O mercador de Veneza” e “O processo” permitem a problematização dessa afirmativa. Como o senhor analisa essa questão?
André: O Direito adora dicotomias metafísicas e binômios dessa natureza: fato e ficção. Só que o Direito tem essa capacidade de atribuir sentido para tudo a partir de si mesmo. A norma imputa e qualifica juridicamente. Esse aspecto foi trabalhado por inúmeros juristas, como Kelsen, Bobbio e Ferrajoli. Sinteticamente, o Direito produz Direito com base em suas próprias regras. Nesse sentido, há uma espécie de “vício” de origem, na medida em que ele mesmo define artificialmente como ordenar os fatos que seleciona. De certo, modo, isso também se revela ficcional. Mas é a dinâmica do universo jurídico que estabelece essa forma de interpretar o mundo.
Porém, o universo jurídico é também uma metáfora, o que se revela até mesmo na escolha das palavras. E o Direito trabalha com o fato social por ele mesmo definido e, ainda, lhe atribui um valor ou desvalor, a fim de orientar e regular condutas. No plano jurisdicional, todo processo somente é conhecido por meio da narrativa. Os fatos precisam ser enunciados. Sem discurso não há direito, nem justiça. Portanto, é necessário estudar como tudo isso acontece. Não basta conhecer o código, se não souber como trabalhar os fatos.
No Direito, em especial no processo jurisdicional, o que temos são relatos sobre fatos, de maneira que a atuação dos profissionais está sempre inscrita no campo linguístico. É impossível escapar disso no âmbito jurídico. Em tempos remotos, a realização do direito resumia-se à força. Superada a barbárie, com a racionalidade moderna e a formulação do Estado de Direito, a aplicação do direito se dá sob outros parâmetros, inclusive para que se possa justificar o monopólio estatal do exercício legítimo da violência .
Então, nesses termos, o que é mais fictício? Outro bom exemplo é a própria concepção de coisa julgada. Se não me engano, Giorgio Agamben oferece uma boa análise sobre esse tema. Todo o sistema jurídico depende da coisa julgada. Na verdade, ela não passa de uma construção artificial. Depois que uma causa passou por todas as instâncias juridicamente determinadas, que examinaram todas as narrativas oferecidas e discutidas que se fizeram sobre determinado fato ou sobre determinada tese, o Tribunal confere a palavra final. O que importa é que, com a coisa julgada, essa palavra final é tomada por verdadeira e, com ela, a sociedade será capaz de seguir adiante. Existe algo mais fictício do que isso? A versão oficial é aquela que transitou e que foi estabelecida pela chancela de um tribunal superior.
No VI Colóquio Internacional de Direito e Literatura [evento itinerante anual da RDL], em Porto Alegre, fizemos uma discussão muito séria sobre esse assunto e à qual se pode ter acesso no livro Por dentro da lei: direito, narrativa e ficção (ed. Tirant lo blanch, 2018) organizado por mim e por Henriete Karam. Trata-se de um livro que tenta explorar a linha tênue entre o Direito e a ficção em sentido um pouco mais amplo. Com esse ponto de vista, descobre-se que o direito também assume um caráter totalmente fictício.
Mas, para não perder sua pergunta de vista, Shakespeare e Kafka são fundamentais para o Direito. Já escrevi sobre ambos. Suas obras são mais importantes para a compreensão dos fenômenos jurídicos e sociais do que grande parte dos manuais jurídicos. De todo modo, não devemos nos limitar apenas aos clássicos. A literatura brasileira possui diversos escritores e textos que são capazes de cumprir essa função com excelência, por meio de perspectivas e ângulos diversos.
A literatura como um direito universal
INB: Segundo Antonio Candido, o direito à literatura deve ser tratado como um direito universal. O que significa tratar a literatura como um direito universal e qual é a sua importância no contexto histórico em que vivemos?
André: Concordar com a afirmação de Antonio Candido é simples, fácil e agradável. Se fizermos essa mesma pergunta para as pessoas em geral, inclusive para os profissionais do direito, provavelmente todos iriam concordar sem dificuldade. Mas o curioso é que grande parcela dos juristas não conhece nem Antonio Candido nem sua produção.
Mesmo após todo o obscurantismo dos últimos quatro anos, o ambiente jurídico permanece restrito ao estudo apenas do Direito. Além disso, o texto de Candido é anterior à própria Constituição de 1988, o que é um aspecto relevante. Hoje em dia é fácil concordar que todos devem ter acesso à literatura, mas escrever sobre isso antes de 1988 foi realmente inovador.
Eu trabalhei por muito tempo em um projeto sobre a relação do Direito e Literatura nas escolas. A disseminação da cultura literária dos direitos não pode se resumir apenas a eventos pontuais destinados aos seus profissionais. É possível fazer mais do que isso. Há muito tempo, assisti a um quadro do Fantástico [programa de televisão] que mostrava um menino de rua – na frente da Livraria Cultura da Avenida Paulista, em São Paulo – que, em vez de pedir dinheiro às pessoas que caminhavam na calçada, pedia um livro. A câmera estava escondida para capturar a reação dos pedestres. Apesar do aspecto moralista do quadro, o objetivo era fácil e surpreendentemente alcançado. Quem ouvia a pergunta ficava impressionado e atendia ao pedido. Aliás, era muito comum as pessoas perguntarem: “Por que você quer um livro? Você é um menino de rua, não deveria querer um livro”.
Ampliando essa conversa, existe um assunto que também permeia esse debate e sobre o qual a minha posição já foi mal interpretada. Me refiro aos projetos de remição da pena pela leitura nos presídios. Eu sou totalmente a favor do estímulo à literatura no cárcere, mas tenho algumas restrições sobre o modo como se trabalha e de induz a remição da pena. Já pesquisei, escrevi e falei muito a respeito disso. Trata-se de uma preocupação de ordem metodológica a respeito da maneira devemos abordar a questão da literatura nos presídios.
Cada um pode ler o que quiser e, se for o caso, descontar parte da pena? Isso precisa estar previsto em lei? Cada presídio pode fazer do modo como mais lhe aprouver? Quem estabelece o que “vale” e o que “não vale” ler? Ora, essas questões precisam ser levadas a sério. Não se trata de mero formalismo, mas é preciso ter uma funcionalidade mínima e responsabilidade política. A minha pergunta é a seguinte: a leitura nos presídios será determinada pelo Estado para levar a uma moralização, redenção ou salvação? Sinceramente, espero que não. Ao assumir uma institucionalidade, a decisão sobre o que merece ser lido consumido precisa ser feita por estudiosos e especialistas. Não basta ser bem-intencionado para julgar o melhor caminho.
Recordando e elaborando a história
Não podemos nos esquecer que os alemães da primeira metade do século XX eram considerados os homens mais cultos do mundo e ainda assim perpetraram o Holocausto. Eles ouviam Wagner e liam Goethe. Isso nunca impediu ninguém de agir de forma violenta. Se isso for verdade, é preciso ter cuidado e levar certos aspectos em consideração. Por que não começamos o trabalho da remição da pena com as crianças em vez dos adultos? Por que não começamos com as fundações de amparo à criança e ao adolescente antes dos presídios?
Desde 2015 estive envolvido em um programa de mestrado no sertão da Bahia. Infelizmente, a instituição que o promovia não funciona mais e o projeto foi desativado. Foi lá que me dediquei à cultura literária dos direitos nas escolas. Debatemos exaustivamente sobre quais textos infantis eleger e sobre como seria a dinâmica do trabalho com as crianças de escolas situadas no sertão da Bahia. Qual literatura seria a mais adequada? As fábulas de La Fontaine ou a literatura brasileira contemporânea que aborda igualdade, pautas raciais e liberdade de expressão? Eu e meu grupo passamos dois anos teorizando sobre o assunto e conversando com especialistas das áreas de Letras, Psicologia, Pedagogia etc.
A grande questão é: como criar uma cultura dos direitos humanos entre crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental a partir da leitura de determinada literatura infantil brasileira? Enquanto outros estão brigando por causa do suposto racismo de Monteiro Lobato, nós nos preocupávamos com esse problema. Quando íamos para as ruas, buscávamos escolas para implementar o programa. Contudo, ao longo do último quadriênio, não houve incentivo da CAPES às ciências humanas e sociais. Na verdade, nada disso é rentável. E, na sequência, o curso de mestrado foi fechado. Mas eu acredito que o Direito teria muito a oferecer nesse sentido. Talvez com o novo governo seja possível tirar tudo isso do papel novamente, reunir todas as informações e apresentá-las ao Ministro dos Direitos Humanos. Trata-se de uma questão de política pública, que alia Direito e Literatura em busca da emancipação e da cidadania.
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