A problematização do conceito de “democracia racial” é uma tarefa para muitos pesquisadores brasileiros. O professor Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, buscando contribuir com o debate e desmistificar uma série de ideias equivocadas sobre o assunto, escreveu uma tese de doutorado cujo objetivo é discutir a relação da ideologia da democracia racial com o constitucionalismo na formação sociocultural dos países latino-americanos.
Esta é uma publicação que faz parte do “Especial Prêmio Raymundo Magliano Filho – 1ª edição”, um espaço no Projeto Diálogos INB dedicado a publicar entrevistas com os finalistas do Prêmio Raymundo Magliano Filho que ocorreu em março de 2023. Marcos Vinicius Lustosa Queiroz foi finalista e ganhou o segundo lugar na categoria “Pós Graduação Stricto Sensu”.
Especial PRMF: anseios de uma pesquisa
INB: Qual é o problema discutido no seu projeto de pesquisa e o que te motivou a pesquisar sobre o assunto?
Marcos: O problema da minha tese de doutorado diz respeito ao impacto da Revolução Haitiana na transformação da cultura jurídica e das identidades nacionais na América Latina, especialmente no Brasil e na Colômbia. Eu busco explicar como os efeitos Revolução Haitiana entrelaçaram, no início do século XIX, o que nós entendemos como nação e direito no continente.
Eu não consigo pensar em uma motivação única para pesquisar o tema e por isso destaco dois aspectos que me levaram a este lugar. Inicialmente, a minha experiência no Ensino Superior exerceu uma importante influência. Fui um estudante negro na Faculdade de Direito oriundo das primeiras turmas que possuíam ações afirmativas. Entrei na Universidade de Brasília (UNB) por meio do sistema de cotas raciais em 2007, um momento em que este debate estava em evidência.
E por que isto se relaciona com a minha pesquisa? Quando estava no ensino médio, havia uma discussão ampla sobre a constitucionalidade das cotas raciais no Brasil. Formaram-se dois blocos de opiniões distintas: um a favor da constitucionalidade e outro contra. As pessoas contrárias argumentavam que as cotas violavam o princípio da igualdade, garantido pela Constituição Federal de 1988. Nesses debates, me lembro que o movimento negro e alguns intelectuais estavam contra todo o resto da sociedade brasileira, inclusive a grande mídia, intelectuais e as próprias universidades.
Os argumentos que mencionei – que afirmavam a inconstitucionalidade das cotas raciais em razão da violação do princípio da igualdade – se valiam da preservação de uma “identidade nacional”. O movimento era sempre esse: as cotas violam a igualdade, conforme estabelecido na Constituição, porque o Brasil não é um país onde o racismo é a norma. Os setores anti-cotas até admitiam que havia racismo, mas sempre de maneira episódica e esporádica, algo muito mais casuístico e que não conformaria a sociedade brasileira. Nesse sentido, falava-se com frequência que, no Brasil, o direito nunca foi utilizado para excluir a população negra. Essa situação seria diferente da norte-americana ou sul-africana.
Foi no contexto deste conflito, no qual a ideia de que a discriminação racial nunca se valeu do direito, que entrei na universidade como cotista em 2007. Foi a primeira vez que a UnB atravessou a minha experiência, quando ainda era estudante de ciências sociais. Depois, em 2009 cursei a Faculdade de Direito. Acho importante dizer que sempre que a discussão sobre a constitucionalidade das cotas raciais aparece, ela não está restrita apenas ao âmbito jurídico. Trata-se de um tema que avança sobre aspectos da identidade nacional, com remissões àquilo que fomos no e com o passado enquanto nação.
Isto é algo que baliza a minha vida até hoje. Para discutir o assunto, inclusive neste início da vida adulta, tive de me munir de argumentos para embasar o meu posicionamento favorável às cotas raciais. Como eu mesmo era cotista, precisava entender essa história e os argumentos envolvidos nela. No entanto, não me limitei a compreender os argumentos de caráter jurídico, pois busquei estudar o que estava relacionado à formação nacional para defender a posição que acreditava ser mais correta.
Motivações secundárias
A minha segunda motivação decorre dos meus achados de pesquisa no mestrado. Na dissertação, investiguei o impacto da Revolução Haitiana na Constituinte de 1823 a partir da observação dos anais parlamentares e dos debates a respeito da cidadania. Era muito nítido como o temor e as fumaças do Haiti pairavam sobre a nossa primeira experiência constituinte e como, de certa forma, a Revolução Haitiana condicionou o texto outorgado em 1824. Ali, o ponto central era entender de que forma o medo da repetição dos eventos haitianos balizou as questões pertinentes à identidade nacional e como os parlamentares da época se valiam de uma imagem contraposta entre Brasil e Caribe. Eles diziam: o Brasil não é o Haiti por causa de X, Y e Z. A nossa identidade e conformação de povo são diferentes e por isso não haverá uma revolução negra no Brasil.
Nesse contexto surgiu a hipótese de que a origem da identidade nacional brasileira, reconhecida como um povo singularmente mestiço e harmônico, se tornava hegemônica no momento inaugural da construção do estado-nação. Assim, ao longo da pesquisa de mestrado, notei como o mito da democracia racial remetia às origens do século XIX e isto me deixou com uma pulga atrás da orelha quando. Eu não tratei deste assunto na dissertação, mas foi isso que me orientou durante todo o processo – eu lia autores que, embora não trabalhassem de forma direta com o caso brasileiro, abordavam criticamente o surgimento da ideia de democracia racial e dos discursos sobre mestiçagem no contexto da Era das Revoluções. Especialmente as historiadoras Marixa Lasso e Marlene Daut e o meu orientador Evandro Piza Duarte.
Portanto, esses foram dois dos meus motivadores: a experiência como estudante cotista e como pesquisador no mestrado. Antes de concluir, gostaria de fazer um comentário. Eu sou uma pessoa de classe média que sempre estudou em escolas privadas e fui um dos melhores alunos em todas elas. Mas as pessoas me questionavam, inclusive amigos e professores, se eu era a favor das cotas raciais. Eu sempre respondi que não só era a favor, como ia concorrer a vaga na universidade por este sistema. De certa maneira, quando eu dizia isso para essas pessoas, parecia que eu era um traidor, porque eu estaria violando tudo que elas entendiam: primeiro porque eu me assumia como negro, segundo porque eu dizia que podia ser beneficiado por uma política afirmativa, independente de ter estudado em escolas privadas. Mas mais do que isso, elas acreditavam que se eu ingressasse na universidade, tiraria a vaga de alguém que, teoricamente, seria mais capacitado.
odas essas questões apareciam para mim. Me assumi pela primeira vez como favorável às cotas em uma redação nas aulas de língua portuguesa do colégio. Eu precisei me posicionar e justificar. Quando o fiz positivamente, veio uma enxurrada de questionamentos e críticas a minha postura. Por isso que, antes mesmo de ser estudante cotista na UnB, eu precisei reunir argumentos e enfrentar amigos e professores. Esta é uma experiência que formou o meu caráter e de toda uma geração, assim como nos formou intelectual e politicamente.
Especial PRMF: descobertas da pesquisa
INB: O que você concluiu com o seu projeto de pesquisa?
Marcos: Os diálogos com pesquisas que já foram realizadas sobre a Revolução Haitiana foram importantes neste processo. Entrei em contato com pesquisas que discutem o assunto sob outros pontos de vista que não o latino-americano, mas que tangenciam o tema. A partir dessas leituras, percebi que o mito da democracia racial, tal qual o conhecemos, surge como um mecanismo refreador dos efeitos jurídicos da Revolução no Haiti. Isto é, o mito da harmonia racial, considerado um mecanismo ideológico de hegemonia das elites dominantes latino-americanas, aparece nesse contexto revolucionário pela primeira vez. E por quê?
O grande princípio por trás da revolução haitiana é a igualdade racial. Ele promove a ideia de que a liberdade e a igualdade não devem ser refreadas pela cor da pele de um sujeito. Consequentemente, a afirmação da igualdade racial coloca a pauta da abolição da escravatura: a escravização moderna, que se baseia no fenótipo das pessoas, já não é mais possível. Esse é um efeito importante da Revolução Haitiana, talvez a sua mensagem universal mais significativa. Da mesma forma, para as elites senhoriais, essa mensagem gerou um grande temor sobre a possibilidade de haver mais revoluções, levantes e insurgências negras – ou o medo do simples fato do negro sair da grande noite da escravidão e despertar para a aurora dos direitos.
Identidade Latino-americana
Na América Latina, a identidade nacional e a cultura jurídica estão entrelaçadas e o refinamento desta relação é feito pela democracia racial. É como se disséssemos: nós não somos como o Haiti, convivemos pacificamente com todos. Portanto, segundo esse argumento muito explorado no século XIX, aqui há outras questões que mediam as relações raciais, inclusive para legitimar a própria continuidade da escravidão. No âmbito latino-americano, isto é particularmente intenso nos discursos da elite escravocrata brasileira, que dizia que a população negra, mesmo escravizada, era bem tratada.
Assim, ao longo do século XIX na América Latina, a ideologia da harmonia racial foi institucionalizada como política de estado tendo como objetivo central conter os efeitos universais da Revolução Haitiana em países como o Brasil e a Colômbia. Diante dessas considerações, as conclusões mais específicas da minha pesquisa se inserem nos debates sobre formação nacional brasileira e latino-americana. Em primeiro lugar, eu diria que a intervenção mais direta é na discussão sobre o tempo histórico da democracia racial, na qual intelectuais como Clóvis Moura, Emília Viotti da Costa e Florestan Fernandes participaram ativamente. Muitos dos autores inseridos nesse contexto dizem que o mito da democracia racial surge no cenário pós-abolição, ou seja, na virada do século XIX para o século XX. Eles argumentam que a finalidade do mito é manter as estruturas de exclusão legadas pela escravidão em um ambiente republicano, no qual a igualdade jurídica começa a lograr. Pessoalmente, eu sustento um outro ponto de vista. Na minha tese pretendi demonstrar que o mito, enquanto estrutura hegemônica, surgiu cem anos antes, ali no início do século XIX, sendo o modelo de ideologia nacional das elites brancas latino-americanas, temerosas de um novo Haiti.
Este é um aspecto central do meu trabalho. Nele, há tambem outras conclusões. Eu diria que a minha pesquisa auxilia a desconstruir cinco grandes mitos sobre a escravidão no Brasil e nas Américas como um todo. O primeiro deles é a imagem estereotipada dos senhores de escravos, como sujeitos que falam abertamente contra os negros e que proferem um ideal racista de maneira bastante objetiva e evidente. Este retrato, propagado até mesmo por muitos filmes de Hollywood, é problematizado na minha tese porque ela aponta que o pensamento escravocrata latino-americano se apoia, justamente, no ideário da mestiçagem. A nossa classe senhorial defendia a escravidão com argumentos dessa natureza: “Aqui a abolição não pode chegar, porque nós senhores de escravos somos diferentes, somos mais dóceis e tratamos nossos escravos como membros família. Eles têm mais direitos que os trabalhadores britânicos”. Isso é diferente de dizer: “nós somos escravistas porque o negro é inferior”. Embora esse argumento aparecesse tangencialmente, não era desse modo que eles defendiam a escravidão. O argumento principal era de que, no Brasil e na América Latina, o tratamento singularmente bom dos escravos pelos senhores e as boas relações existentes entre negros e brancos afastavam a necessidade da abolição por meio da lei.
Especial PRFM: o mito da branquitude
O segundo mito que minha tese desconstrói é sobre a teoria da formação social presente em autores como José Murilo de Carvalho e Sérgio Buarque de Holanda. Nas obras mais clássicas sobre o Brasil, é muito presente a ideia de que a escravidão foi uma estrutura herdada passivamente. Essa alegação é comum e foi proferida, inclusive, no ano passado quando as questões relacionadas à Independência foram retomadas. O sentimento de que não mudou nada e que a Independência veio apenas para ratificar a herança colonial é atual. Portanto, a ideia das “raízes da colônia” e os debates sobre formação realçam a sensação de que o Brasil é uma reprodução à exaustão daquele momento fundador. A minha tese aponta que a escravidão foi reelaborada no século XIX sobre novas bases, na medida que era extremamente contestada pelos efeitos da Revolução Haitiana. Essas novas bases exigiram que a escravidão se estabelecesse sob um outro caráter em lugares como o Brasil, Cuba e Estados Unidos – é uma escravidão ancorada a um projeto de estado-nação, como argumentam historiadores como Tâmis Parron e Ricardo Salles.
O terceiro mito que busco desfazer é a narrativa de que no Brasil, e América Latina do século XIX, houve uma oposição entre estadistas e classe senhorial. Esta análise aparece, por exemplo, em autores como o citado José Murilo de Carvalho, na historiografia, e em Paulo Bonavides, no direito. A minha tese colabora com outras pesquisas que manifestam posições contrárias, pois a classe senhorial fazia parte dos estadistas. Ela se constituiu enquanto classe a partir da construção do estado. Esta é uma tese da década de 1980, elaborada por Ilmar Rohloff de Mattos, mas que algumas pessoas deixam de lado. Eu acredito que a minha pesquisa auxilia a ratificar e expandir as conclusões de Ilmar a respeito do Império.
O quarto mito se refere ao que é muito comum no imaginário latino-americano: que a defesa da democracia racial, da mestiçagem, do hibridismo, da “mistura” são antagônicas a uma ética escravocrata, conservadora e autoritária. Por exemplo, podemos pensar que o sujeito que se manifesta nas redes sociais para auxiliar e desconstruir o racismo a partir da defesa do hibridismo e da mestiçagem, não é racista. A minha tese aponta justamente como esse conjunto de ideias são ideologias fundadas pelo supremacismo branco latino-americano e são gestadas no interior da casa grande como um projeto de estado-nação do século XIX.
O quinto e último mito que a pesquisa contesta é a ideia de que nas ciências sociais do início do século XX há uma superação do racismo epistêmico. Essa suposta virada, promovida sobretudo pela obra de Gilberto Freyre, pretendia superar as teses positivistas do racismo científico. Seriam inovações singulares, criativas e pioneiras. Mas o meu trabalho demonstra que a contribuição de Freyre é apenas um aperfeiçoamento da estrutura argumentativa da classe senhorial do século XIX. A pesquisa mostra como os argumentos de Freyre são quase uma sofisticação dos argumentos utilizados no parlamento em defesa da escravidão e do tráfico negreiro, bem como daqueles mobilizados para mediar o debate público e estético em torno do escravismo, algo bastante presente na obra de José de Alencar, um dos maiores intelectuais orgânicos da classe senhorial brasileira. É notável como o próprio Freyre assume ter aprendido muito lendo os romances de José de Alencar. Mas, em suma, eu diria que a argumentação de Freyre é uma reprodução do discurso da classe senhorial no século XIX para manter uma estrutura no Brasil autoritária, excludente e, naquele momento, também escravocrata. O ensaísmo brasileiro de 1930, em grande medida, é uma manifestação tardia do pensamento senhorial do Império, enquadrando as nascentes ciências sociais sob a moral e a visão de país construídas pela Casa-Grande.
Contribuições à sociedade
INB: Como você analisa a contribuição da sua pesquisa para a nossa sociedade?
Marcos: A primeira contribuição específica da tese para o debate atual tem relação com uma mudança de percepção dos próprios discursos jurídicos. Muitas vezes esses discursos são pretensamente técnicos, baseados em doutrinas, jurisprudências, etc. e isto oculta o fato de que eles também se baseiam em imagens estéticas e sensíveis. Por exemplo, a utilização do princípio da igualdade como recurso narrativo em uma decisão implica em recorrer a uma imagem cotidiana que revisa o passado. Isto é, o discurso jurídico recorre aquilo que se entende como a “vida comum” dos seres humanos, a certas verdades sobre quem somos e seremos que seriam compreendidas por todos.
Eu considero a minha pesquisa importante porque ela ajuda a identificar como muitas das imagens do nosso passado – especificamente do século XIX – preenchem a cultura jurídica contemporânea. Essas imagens foram construídas pela classe senhorial e seus herdeiros na América Latina. Nesse sentido, há uma demonstração de como a escravidão permanece, ainda que de maneira póstuma, constituíndo o universo político e a esfera pública latino-americana contemporânea.
Uma segunda contribuição da minha tese é que ela se contrapõe à tendência da academia contemporânea de hiperespecialização e miniaturização dos problemas de pesquisa. É comum pensar que o pesquisador só pode falar do seu próprio objeto de estudos, o qual é extremamente delimitado. Por isso, o investigador não pode fazer generalizações mais amplas. Contudo, essa situação acaba nos excluindo ou marginalizando, em particular pesquisadores negros e indígenas, dos debates que foram estruturais ao longo da história das ciências sociais. Ou seja, perde-se o debate amplo sobre o sentido de Brasil e América. No atual contexto, os temas sobre a formação social são recorrentemente renegados por serem “extremamente genéricos ou amplos”. Assim, interpretar o continente de maneira estrutural seria algo do passado, algo abandonado nas leituras contemporâneas.
O problema disso é que nos tornamos incapazes de responder uma pergunta difícil de ser feita, mas candente, que mobiliza a experiência humana e, consequentemente, o fazer científico: Quem somos nós? Na academia, recorrentemente fugimos dessa pergunta. Ao contrário, seguimos no caminho oposto: batemos nas ideias sobre quem somos, queremos desconstrui-las. Com isso, evitamos repensar quem somos. Eu acredito que a tese, ao intervir no debate sobre formação social, auxilia a trazer essa questão para o centro da discussão acadêmica e política.
Um outro aspecto significativo da pesquisa é a tentativa de realizar teoria social a partir das estéticas negras. Os principais teóricos que utilizei como referência para enfrentar a pergunta sobre quem somos são literatos: Edwidge Danticat, escritora haitiana, Juan Zapata Olivella, escritor colombiano, e o grande intelectual e marco teórico da minha tese, que é Machado de Assis. Isso porque retomo o seu “afropessimismo” e o encaro como o grande intérprete do ideário nacional na cultura jurídica, bem como afirmo que Machado foi o primeiro a estabelecer um campo de análise sobre a branquidade.
Por fim, uma última contribuição da tese para a contemporaneidade se dá nos debates sobre a extrema-direita. Atualmente, o tratamento desse assunto ainda é muito colonizado, tanto no sentido espacial quanto temporal. Com isso, quero dizer que muitas vezes a interpretação do fascismo e da história da extrema-direita na América Latina é focada na Europa do início do século XX, momento que seria fundante das ideias que hoje são readaptadas, reconsideradas e reinventadas no contexto latino-americano.
No entanto, a minha pesquisa aponta que várias das táticas e da ideologia que entendemos como de extrema-direita estão diretamente enraizadas na experiência da escravidão, a exemplo do entrelaçamento entre liberalismo, economia e direito baseado na submissão da ideia de liberdade à propriedade privada. Como afirma Mbembe, a propriedade escrava é o protótipo e o prenúncio de todas as demais formas de propriedade do capitalismo. É esse sentido de liberdade fundada no domínio despótico sobre o corpo negro a base de emergência do liberalismo político. Rastrear esses vínculos entre liberalismo e escravidão no discurso senhorial permite relativizar ideias muito comuns no debate contemporâneo, que contrapõem o ideário liberal ao autoritarismo ou que enquadram a extrema-direita dentro de conceitos como “iliberismo”. Mais do que isso, essa perspectiva permite reconsiderar o circuito do fascismo a partir dos seus laços com a história pretérita da plantation, da escravidão, da colônia e do racismo anti-negro e anti-indígena. Essa reconsideração traz a “raça” como elemento central da experiência moderna, a qual aproxima e borra as fronteiras entre democracia liberal e autoritarismo.