Direito e Psicanálise por Christian Dunker

O professor Christian Dunker nos contou em entrevista sobre aspectos do direito e da psicanálise.
Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP (2014) junto ao Departamento de Psicologia Clínica. Recebeu dois prêmios jabutis na categoria Psicologia e Psicanálise, pelo seu trabalho nos livros Estrutura e Constituição na Clínica Psicanalítica – Uma Arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento e Mal- Estar, Sofrimento e Sintoma. Além disso, é autor de diversas obras e artigos científicos como Por quê Lacan, A psicose na Criança, Reinvenção da Intimidade e O palhaço e o Psicanalista.

O “Direito e o mundo” é um espaço dedicado a explorar as conexões existentes entre o campo jurídico e outras áreas do conhecimento. O professor Christian Dunker nos contou em entrevista sobre alguns aspectos da área do direito e psicanálise. 

Essa entrevista foi produzida em parceria com a Livraria Cabeceira 

A objetividade própria do sistema jurídico normativo pode nos fazer esquecer que os sujeitos de direito também são sujeitos de desejo. Os longos processos judiciais, por vezes, escondem uma importante camada de sentido: as pessoas sentadas em um tribunal são pessoas, antes mesmo de réus, advogados, promotores ou juízes. Isso significa que dentro delas existe um universo de significados específicos e particulares. 

A psicanálise é uma forma eficiente de compreender e desconstruir uma série de formas e dogmas impostos pelo Direito a partir das categorias da subjetividade. Em 9 de janeiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com o professor Christian Dunker para debater as possíveis relações entre os dois campos do conhecimento.

Direito e Psicanálise: a concepção do justo

INB: No direito impera o pressuposto da Justiça. O que o senhor, utilizando o referencial teórico da psicanálise, compreende como Justiça? Como a psicanálise observa a própria noção do justo?

 Christian Dunker: A primeira informação importante para começar essa reflexão, é que Sigmund Freud e Hans Kelsen foram colegas de escola. Inclusive, Kelsen foi leitor de um trabalho de 1929 escrito por Freud que virou referência, chamado Mal-estar na Civilização. Kelsen leu o texto e fez algumas proposições que Freud aceitou. Nesse momento, também publicou um pequeno artigo sobre a relação entre psicologia social e psicanálise. 

Inicialmente, podemos dizer que o conceito de Justiça é um tanto distribuído na psicanálise. Não encontramos uma exposição muito sistemática e nem muito detalhada dessa noção. Mas podemos dividir o tratamento da questão da Justiça de três maneiras. 

  A primeira é o que podemos chamar de um sentimento de Justiça, que pode ser compreendido como uma tradução subjetiva da distribuição dos atos de conhecimento, dos predicados, das trocas que organizam nossa sociedade como um universo simbólico. Isto é, como um universo dependente da circulação daquilo que a gente supõe do desejo do outro. É nesse estado de coisas que Freud introduziu uma novidade: a Justiça não tem uma matriz natural – este é um ponto importante, pois Freud não era um jusnaturalista. Assim, ela não procede de nenhum sentimento ou disposição primitiva, uma vez que é uma construção elaborada na medida em que nós, enquanto sociedade, temos de encarar o preço civilizatório. Na verdade, trata-se aqui do preço para estar com o outro, para poder amar e ser amado, para poder desejar e ser desejado. Mas também do preço que pagamos para a destruição das satisfações e dos prazeres. Aqui entramos na segunda fase da discussão. 

Esse é o tema tratado no Mal-estar na Civilização. Interpretar que todos nós estamos no estado de sacrifício porque fomos privados de algo, significa identificar um solo comum que Freud chamada de Hilflosigkeit – o desamparo. Nesse sentido, a Justiça será determinada pela distância que nos encontramos em relação a essa falta comum, a esse estado de carência, de dependência uma vez que, no fundo, precisamos do outro. Essa é uma medida para o sentimento de Justiça.

Uma outra medida, com a qual Freud tenta equilibrar esse primeiro entendimento, diz respeito ao quanto de satisfação, de gozo e prazer atribui-se ao outro. Estabelece-se aqui a crítica freudiana ao axioma judaico-cristão que profere: “amar o outro como a si mesmo”.  Ora, isso seria justo, mas impraticável. Isso porque o amor não é democrático, ele não pode ser obrigatório ou compulsório. O amor é injusto. Eu posso amar o outro, dedicar a ele os meus melhores esforços, meus melhores carinhos e não ser correspondido.

Aqui opera um paradoxo: o sentimento de desamor não é o que nos falta, mas aquilo que temos e que supomos que o outro pode nos dar. Portanto, o desamor é interpretado subjetivamente como justiça. Eu me dedico ao outro,  renuncio aos meus prazeres imediatos, me faço amar pelo outro, mas o outro não me retribui. Existe uma espécie de gargalo nessa justiça não retributiva entre amar e ser amado,  que é próprio de relações assimétricas, por exemplo, entre a mãe e a criança, entre o pai e a criança, entre o homem e mulher, entre dois homens, entre duas mulheres, etc. Poderíamos dizer que essa situação, em que um ama mais e o outro menos, gera infelicidade, mas essa é uma infelicidade que quase sempre acontece. A gente até pode torcer para que haja evolução na relação: quando eu amo muito mais o outro, talvez seja possível inverter essa lógica. Assim, o casal oscila como uma balança ao longo de seu percurso. Mas também é comum que nada mude e haja sempre alguém que se sinta deficitário amorosamente. Esse sentimento de déficit é traduzido por uma espécie de sentimento de injustiça.

A terceira entrada psíquica desse sentimento de Justiça está presente no seguinte raciocínio:

Eu não sou reconhecido, eu não sou amado pelo que sou e também não sou amado pelo que faço. Eu posso realizar um pacto com o outro por uma espécie de interpretação do meu próprio corpo. Essa injustiça acontece não pelo que eu fiz, pelo que deixei de fazer ou pela minha condição de dependência originária. Logo, só pode ser porque há algo “mal feito” no meu corpo.

Nesse sentido, a justificativa sempre se volta para algo que rebaixa o indivíduo e que ele interpreta e atribui à própria corporeidade como um sinal dessa falta. Tal atribuição poderia ser negociada e resolvida de diversas maneiras. Por exemplo, ao reconhecermos que estamos todos referidos à  incompletude corporal, pois não somos seres fechados em uma bolha narcísica que prescinde do outro. Em regra criamos certos ideais para nos proteger do sentimento de injustiça. 

Castração e os paradoxos de racionalidade e Justiça

Esses paradoxos de racionalidade e de Justiça – visto, geralmente, como sentimento de injustiça – remetem à uma função que Freud chamou de castração. Trata-se da ideia de que na economia libidinal há uma distribuição não equitativa. Daí surge um problema importante: O que é que o Estado e o ordenamento jurídico vão fazer em relação a isso? Nesse contexto, é interessante refletir aquilo que podemos chamar de teoria social freudiana, cujo exercício é a compreensão da origem do Estado, do que ele é feito, como se constituem as nações, o que são as identidades, etc. 

Esse é um aspecto significativo. Vale lembrar que Freud é mais ou menos contemporâneo à realização de um mundo que está construindo um conceito de nação. Ele viveu a dissolução da nação na qual ele mesmo nasceu, o chamado Império Austro-Húngaro. Uma ideia muito importante que aparece em seu texto Moisés e a Religião Monoteísta é a seguinte: um dos motivos para o sentimento de justiça é a atribuição de um gozo supervalorizado ao outro. Ou seja, aquilo que me falta – o prazer que eu interpreto no meu próprio corpo, na minha deficiência amorosa ou no meu desamparo – foi tirado de mim e levado para o estrangeiro. Essa teoria vai ser contestada pela ideia freudiana de que os primeiros estados nações possuem entendimentos teológicos nacionais (aqui ele está pensando na religião islâmica, judaica e cristã). Eles foram inspirados na concepção de que “nós temos primeiro nós”. Isto é, aquele determinado grupo é descendente de um mesmo pai. Por isso, esse grupo que possui um mesmo pai compete com outro grupo que descende de outro ser mítico fundador, seja ele humano, não humano, totêmico, etc. 

Isso é algo muito interessante. Freud argumenta que essa leitura é um encobrimento, uma negação do que poderia ter sido historicamente a fundação do povo judeu a partir do estrangeiro. Ora, Moisés era egípicio, não judeu. Portanto, a fundação ocorre a partir de uma estrangeiridade original, de tal modo que seríamos feitos a partir do outro. É em razão desse fato que imaginamos que o outro goza mais do que nós. Nesse sentido, estabelece-se uma relação paranóica e persecutória. 

É também daí que surge o sintoma chamado de narcisismo das pequenas diferenças. Para falar desse assunto, Freud utiliza exemplos de figuras que são próximas, mas ao mesmo tempo estão sempre em conflito, como os alemães do norte e do sul da Alemanha ou os portugueses e espanhóis. São povos parecidos e, por isso mesmo, se perseguem historicamente, se criticam e se espezinham.  Ou seja, esta é uma teoria sobre como se formam unidades simbólicas que podem passar pelos estados nacionais, pelas regiões nacionais, pelos grupos sociais, pelos grupos totêmicos e que figuram nessa mesma lógica. 

Essa reflexão revela que a nossa identidade vem de fora, ela é herdada do outro. Assim, haveria uma espécie de Justiça esquecida, de lei formativa esquecida que suprimimos e substituímos por guerra e violência. Ao invés de lembrarmos disso – que nos constituímos a partir do estrangeiro – nós negamos. Assim, enquanto se formam grupos de ódio que atacam o outro, os grupos passam a  ser definidos pela inimizade que têm pelo estrangeiro. 

Neste ponto existe uma possibilidade de colocar Freud entre Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes. Por um lado Freud se pergunta, assim como Rousseau em seu discurso sobre a origem das línguas, se nos esquecemos do solo comum. Ou melhor, do desamparo comum. Dessa maneira, a civilização viria acompanhada da injustiça. Por outro lado, o Freud hobbesiano dirá que o estado de anarquia promovido pela incerteza é substituído pela eleição de um pai, de uma lei que é uma espécie de tributo simbólico, de lugar vazio constituído pelos temas de parentesco e pela isonomia. Logo, as pessoas encontram regras que limitam o acesso aos prazeres: você não pode se casar com esse, você não pode se unir com aquele. Tal regra de restrição, justamente por ser comum, funda um certo cenário de Justiça e uma relação com a lei. Porém, existem problemas nesse processo, tanto na leitura mais rousseauniana, quanto na mais hobbesiana. 

O fato é que Freud não se encaixa perfeitamente em nenhuma dessas perspectivas porque ele aponta como problema, para essa noção de Justiça, uma insuficiência da categoria de interesse. Ambos os autores – Rousseau e Hobbes – realizam suas reflexões a partir de um sistema de interesses definidos pelos indivíduos que transferem sua força, seu poder de violência para o Estado, ou pelos indivíduos que estão exilados, esquecidos da sua relação originária com o outro. Para Freud, esta categoria é problemática porque ela supõe que o sujeito vai agir sempre em conformidade com o cumprimento de seus interesses, seja de autoconservação ou de expansão. Além disso, presume-se que tais interesses serão sempre favoráveis à vida e à expansão do grupo de pertinência, de identidade ou filiação a qual pertencemos. 

 Freud vai dizer que esse entendimento possui uma ambiguidade inerente. De fato, criamos leis para minimizar as diferenças, mas na medida em que as leis são imperfeitas, elas nos fazem sentir as diferenças com maior profundidade e sofrimento. Quanto mais as leis são aperfeiçoadas, maior o efeito rebote do ódio à lei, do sentimento de promessa não cumprida ou, ainda, de uma imperfeição que era prometida como ideal de pacificação. Isso vai valer para arte, para ciência e para as limitações eventualmente impostas pelo ordenamento jurídico.

A subversão da noção de interesse proposta pelo autor aponta como os sintomas revelam que não somos justos nem com nós mesmos. Os nossos sintomas ultrapassam as regras dessa ilação teleológica, com respeito a um fim ou interesse na moralidade. Os sintomas são criações que jogam contra os interesses – são hipóteses da existência dos desejos do inconsciente. Tais desejos emanam de outro momento da vida, ou mesmo da história do desejo do desejado. Desejos não são esquecidos. Portanto, poderíamos dizer que os sintomas são uma espécie de demanda por reconhecimento por um desejo que foi negado. 

Este também é o modelo de Justiça. Na forma como a gente se limita, sente angústia, se bloqueia, se silencia e sofre há um apelo por Justiça. Esse apelo demonstra que a totalidade do ordenamento jurídico não se restringe à lei, pois ela não é apenas uma generalização dos costumes de uma nação. De fato, a lei tem um futuro possível que não está escrito, uma vez que é fruto dos nossos desejos. Seguindo o pensamento de Jacques Derrida, é possível entender que o direito não é Justiça, mas é um instrumento da Justiça. Não podemos perder de vista que há vários elementos que não estão presentes no ordenamento jurídico mas que, ainda assim, fazem parte da Justiça. São aqueles que podemos intuir da própria relação com os desejos humanos. 

Em uma contra-chave hobbesiana, esse raciocínio também vale para a lógica de sacrifício. Nos restringimos por medo de ser moralmente punidos por nós mesmos, algo que Freud vai chamar de Supereu. Pensamos: “não vou praticar algo que é contra a lei porque senão vou ferir meu ideal de opinião, ideal que incorporei e se feri-lo vou me criticar e me punir”. Se agir contra meu ideal, estarei em desacordo com essa lei interiorizada chamada de Supereu. 

A partir dessa perspectiva, Freud também trava uma discussão com Immanuel Kant. Freud parte da premissa de que o Supereu é a voz do imperativo categórico, do puro dever. É a voz que, inclusive, inspirou vários modelos jurídicos e a própria noção de cosmopolitismo, quando tratamos do direito internacional. 

Mas seria possível perguntar: como é feito o Supereu? Eu te responderia que isso ocorre por meio da interiorização não da lei que seus pais passaram para você, mas da lei que você interpreta da relação entre seus pais e os ancestrais dos seus pais. Na verdade, o que eles te transmitem é a relação do que tiveram com a lei que os sucedeu, de maneira que o Supereu não é uma verdadeira lei no sentido jurídico ou no sentido kantiano. Trata-se de uma lei patológica, porque ele é particular, próprio daquela pessoa, daquele grupo, daquela família. Para chegarmos no sentido de Justiça como foi estruturado, temos que superar justamente a lei baseada no crime e castigo ou na punição. Isto é, a lei em que não pratico determinado ato por temo ou, como dizia Kant, por motivos patológicos que tem haver com a sensibilidade. Não se trata da minha relação pura enquanto sujeito com a lei.

Deve-se perceber que Freud não é kantiano. A ideia de Supereu é justamente uma espécie de lei que o sujeito acha universal, mas que no fundo é contingente. Essa generalização da lei se funda em cada um e em sua relação  com a sua própria fantasia. Por isso que ela é patológica e particular. Ela se dá nestes termos de que falei há pouco: sou mais amado, menos amado, estou desamparado porque tem alguém gozando mais do que eu. Trata-se do desejo, amor, gozo e angústia. Esses são os operadores jurídicos, os operadores freudianos que podemos utilizar para pensar a noção de direito do ponto de vista da psicanálise. 

Freud reconhece que há um amor à lei, como dizia Kant. Mas esse amor à lei é um amor cuja a lei está representada na figura do pai. O pai é sempre o melhor exemplo do que poderia ser a lei para todos. É uma lei que juridicamente pode ser reconhecida como privilégio. Superar o Supereu implica em uma espécie de emancipação do desejo, figura que aparece como algo capaz de criar atos para além da lei mas, ainda assim, injustos. Ainda assim, capazes de inspirar uma generalização maior da parte simbólica e das formas de gozo que o direito visa arbitrar.

Existem relações entre direito e psicanálise que partem de um caminho da psicopatologia. Quando Freud estuda os perversos – aqueles que têm uma alteração na relação com o objeto e que em vez de amor genital, praticam uma outra forma de afeição do prazer – ele conclui que todos os sujeitos são em alguma medida perversos. Mas de onde vem a sua perversão? Ela não vem de sua psicopatologia, mas sim da moral, da teologia, da ideia que existia no passado pré direito napoleônico e em certa forma pré direito romano, que é a ideia de que o sujeito pode ter uma zona de uso livre do corpo, de uso livre dos seus prazeres. Assim, há um espaço que o Estado não tem que se meter. Essas quatro paredes onde o Estado não deveria por a mão, onde ele deveria zelar por esse espaço preservado dos indivíduos, têm uma relação muito forte com o que a psicanálise vai chamar de fantasia. 

Ou seja, a fantasia tem o pleno direito de ser exercida desde que seja no espaço privado. Desde que ela não se pretenda generalizar e impor-se como um modo de satisfação, como um modo de uso do corpo e dos seus objetivos concretos. Toda essa discussão contemporânea emerge de uma categoria que a psicanálise importou. Podemos nos perguntar: importou e fez a crítica? Sim e não, depende de qual psicanálise estamos falando e de como ela se coloca para pensar a vinculação com a Fantasia e suas implicações políticas, para o que a gente entende pela relação entre  direito e moral.

Direito e Psicanálise: imparcialidade e psique humana

INB:  Ao pensarmos nas funções do magistrado, vigora a máxima de que o “juiz deve ser sempre imparcial ao julgar”. Porém, as contribuições da psicanálise revelam que muitas vezes nós não somos nem um pouco imparciais. Como o senhor compreende a possibilidade da imparcialidade tendo em vista o próprio funcionamento da psique humana ? 

Christian Dunker: Essa é uma boa pergunta. Eu orientei duas pesquisas sobre esse assunto. Uma delas com um grupo que faz a avaliação psicológica dos magistrados para vitalícia-los após a aprovação no concurso público. Foi interessante porque havia um material amplo de como os magistrados julgam. 

Eu diria que aqueles que confiam demasiadamente na imparcialidade são os mais problemáticos. Eles não estão advertidos de que nós não controlamos todos os atos judicativos. Nós estamos expostos aos atravessamentos identificatórios, à nossa  fantasia como algo que nos governa além da consciência e de suas ideias sobre neutralidade, suspensão e imparcialidade. Então, bons magistrados são aqueles que utilizam de sua intuição e que tem certa uma certa prudência ou phronesis, como dizem os gregos. 

Em primeiro lugar existem certas patologias do julgamento que se mostram pela relação com o tempo. A recente reforma judiciária – que estimula as corregedorias a produzirem mais e mais sentenças – afetam muito esse processo. Um dos sinais que o magistrado julga mal, independente do conteúdo e da matéria objeto de debate, aparece quando ele se põe em pressa, ao concluir rápido demais um assunto. Quando ele começa a antecipar provas, parece que já tem uma espécie de tese firmada, embora ainda não saiba. 

Às vezes as perguntas e a própria execução do processo é atravessada por isso. Há julgamentos excessivamente céleres ou que são adiados indefinidamente como uma forma de procrastinação. Portanto existem tanto patologias do instante – como por exemplo: “bati o olho e já sei” – quanto patologias próprias de  um tempo demasiadamente longo. Ou seja, quando há impossibilidade de deliberar, pode ocorrer a tentativa de passar para outra instância. Mas até mesmo o magistrado pode se demitir e responsabilizar um assessor ou analista jurídico de decidir sobre o caso. Nesse sentido, o magistrado realiza um tipo de procuração de sua racionalidade jurídica. 

Os bons juízes são aqueles que conseguem sobreviver e cultivar a dúvida. Ou melhor, que se colocam em dúvida em cada decisão. Isto é, praticam a dúvida não apenas como exercício cético da racionalidade, mas sim subjetivamente. Caso contrário,  o magistrado  deve ficar do lado de fora, na ante-sala.  

Mas como o magistrado vai fazer isso? Como faz para se livrar do seu próprio eu? Psicanalistas diriam: faça uma análise! Não é  desconhecendo e colocando uma trava na porta que conseguimos eliminar nosso eu. Não se trata de um exercício de força de vontade ou de uma regra disciplinar que determina até onde vai o eu pessoal e o eu institucional. Quem fala assim já está com uma apreciação comprometida da situação. Esse é um parâmetro para identificar que a noção de neutralidade força subjetivamente o magistrado a ter uma posição e idealização de si mesmo. E tal situação, por vezes, termina em depressão, em onipotência e impotência. Geralmente isso se dá de forma cruzada;  onipotência para o outro e impotência para si. 

Podemos pensar, por exemplo, como condição para a patologia do juízo o desconhecimento pelas fantasias, o desconhecimento daquilo que promove em você uma resposta por identificação ou uma resposta superegóica. Nós falamos um pouco do Supereu. Embora não seja uma lei, é tentação do neurótico dizer que é. O neurótico pensa que é uma lei porque é sua, porque acredita nela, porque a ama , porque ela é como se fosse da família. Só que ao investir nela um poder de generalização, pouco a pouco produz-se juízos mais simples, ensinados pela forma canônica do direito que é simplesmente aplicar a regra ao caso. Basta aplicar a regra ao caso e o caso à Justiça. 

O problema é que ficam de lado todo o universo das exceções, sejam elas institucionais, circunstanciais, etc. Quando a gente acredita que fazer Justiça é simplesmente aplicar a regra ao caso, em geral aparecem identificações com uma das partes, seja com o acusador, com a promotoria, com a defesa ou até com o réu. Ou então aparece aquele tipo de justiça cruel, sádica e vingativa. Pode ser uma vingança racial, de classe, de gênero, e por aí vai. Pesquisas empíricas mostram que há vieses importantíssimos. Por que a gente tende a julgar algo bom pela cor da pele, pela forma que o sujeito fala, pelos advogados que ele tem e que ele pode contratar.  Tudo isso está imerso no nosso universo ideológico. Mas há também influência do nosso universo  identificatório e superegóico.  Uma boa prática de crítica e atenção a isso é o que se exige dos psicanalistas e é o que se deveria exigir de um bom magistrado. 

Há uma terceira ponderação sobre a neutralidade ou imparcialidade que busca entender como o psicanalista vai saber, em um tratamento, que o paciente realizou uma intervenção autorizando a si mesmo. Ou se esse mesmo paciente diz algo fruto de seus pontos cegos, daquilo que não analisou e que é 

 um pedaço faltante na subjetivação da sua fantasia;  de tudo que  não sabe que o governa.. 

Pergunto como lidar com esse não saber que atravessa os atos interpretativos do caso. Uma resposta é prestar atenção na repetição e nos efeitos dos atos judicativos. Muitas vezes pode ter ali um  gozo ignorado, uma alteridade que não vai ser compatível com o seguimento do processo. Assim, a neutralidade não é um estado que você alcança para algum fim. A neutralidade é construída quando o lugar da verdade não está nem em você nem no outro, mas na instância terceira. É justamente desse lugar que queremos nos aproximar. Para isso é preciso se despossuir da verdade e da força de verdade no ato judicativo. Vou te transferir isso para o que a gente pode saber, para o que a gente pode supor. Vou transferir isso para essa instância terceira.

Fake news e psicanálise

INB: Nos últimos tempos, os meios de comunicação divulgam notícias sobre fake news, de modo que o tema da mentira parece estar em alta, o que tem levado a muitas críticas moralistas sobre o assunto. Como é possível compreender as funções e características da mentira no contexto da psicanálise? 

Christian Dunker: Essa é uma pergunta complicada, porque a gente teria que falar um pouco da arqueologia da verdade. Isso significa entender que a verdade é um conceito mais heterogêneo do que gostaríamos. Para começar, a verdade oscila entre uma raiz grega que a coloca como aquilo que se revela e que está ali diante de nós. Ou seja, a verdade se mostra como uma evidência  que estaria encoberta. Este conceito está muito ligado ao presente, ao imediato e à verdade. Nesse sentido, ela foi demasiadamente absorvida pelo funcionamento positivista do direito. No Brasil esse funcionamento se revela pela triangulação entre fato, norma e valor. 

Então, o que seria o fato? Seria a evidência posta diante dos nossos olhos. Porém, o fato jamais contempla as intenções. Há, no positivismo, uma prática de direito na qual a intencionalidade está completamente posta de lado, pois o que importa são as consequências. Essa maneira de lidar  metodologicamente com um problema, supera os próprios métodos. Basta recorrer ao direito romano para entender que a verdade também é feita de memória.  

Portanto, a verdade não é só presente, ela é reconstruída por testemunhos. Mas os e os testemunhos  podem estar enganados. Mesmo o direto deles perde força. O que está nessa função de verdade como aletheia dos gregos é o comprometimento de “dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade em nome de deus”. Essa concepção grega significa exatidão. Trata-se de um conceito que se relaciona com a reprodução exata daquilo que foi visto.

Contudo, como pontuei, sabemos que a memória humana não é reprodução exata do que alguém viu. Ela é atravessada pelas fantasias e pelos afetos.  O que você estava sentindo quando você viu? Estes outros elementos interferem no ângulo, no ajuizamento e na sua própria convicção.  Ou seja, o direito positivista confia na memória como uma espécie de instrumento, deslocando as pessoas a condição de máquinas que buscam nos engramas  os acontecimentos  para depois reproduzi-los como um computador.

A verdade possui um outro sentido que vem do hebraico e consiste em tratá-la pela confiança. Nesse sentido, é verdade porque o povo escolhido fez um pacto  que envolve terras com Israel e por isso é verdade que esse povo tem um futuro ali. Em lógica, usamos a ideia da incontingência, para falar daquele possível que se realiza. Então existem  três versões da verdade: i) a  que é o oposto da mentira; ii)  a que é o oposto do engano; iii) a que é o oposto da ilusão.

Quando falamos em Fake News, somos levados a entender que há um cruzamento entre essas coisas. Existem reflexões sobre como desmontar as Fake News a partir da apresentação de informação. Se a informação está errada, basta apresentar a evidência correta para resolver. Só que esse método desconhece as tecnologias contemporâneas. Em termos de Fake News, atualizam a propaganda do jornal ao contar mentiras só falando verdades. Por exemplo, se eu faço o seguinte retrato: esse é um homem que levantou uma nação, que acabou com a inflação de seu país, que foi eleito com uma alta porcentagem de pessoas favoráveis, esse é um homem que organizou um país destruído. Mas esse mesmo homem levou milhões de judeus para o campo de concentração. Eu não mencionei esse último aspecto e, inclusive, alguns de que falei são falsos. De tal modo que o meu retrato produz uma ilusão. 

Nós precisamos ter uma relação mais complexa com a verdade. Isto se choca com a banalidade de reduzir o direito como aplicação da regra ao caso e com a desatualização de instituições antigas, muitas delas formadas no século XVIII e XIX. Inclusive nossa própria definição do que é política não acompanhou as novas tecnologias e produção de verdade, que são correlativas a produção de mentiras, de engano e ilusão.

 Assim há manipulações que não se resolvem por mais informação, mas sim por mais formação. Isso torna o cenário mais difícil de ser combatido porque tais considerações apotam para  a nossa complacência com a existência de muitas pessoas que são excluídas do caráter emancipatório da linguagem digital. Podemos dizer que a cidadania tem haver com acesso a bens e serviços. Mas e a linguagem? Antonio Candido já falava do direito à literatura, mas agora temos o direito à linguagem digital. Isso significa alfabetizar, reduzir o número de excluídos que não conseguem ler criticamente a produção de uma imagem, uma mensagem e aquilo que chega pelo celular. De certa forma, a reparação não era possível há vinte anos ou trinta anos atrás, mas agora essa tarefa existe se queremos pensar em cidadania.

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