No dia 19 de janeiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com o advogado e pesquisador André Lucenti Estevam para discutir os livros que, em sua opinião, são fundamentais para desmistificar a Filosofia do Direito.
A Antígona de Sófocles
É muito difícil selecionar poucas obras para começar a estudar um campo tão vasto quanto o da Filosofia do Direito. Primeiramente, gostaria de sugerir uma peça de teatro de Sófocles chamada Antígona. É possível, portanto, ler ou assistir a Antígona, em uma de suas diversas montagens.
A Antígona aborda questões atemporais, como a natureza e o próprio conceito de Direito. Nesse sentido, questiona se qualquer coisa que um soberano determina pode ser considerada Direito. Ou, por outros termos: qualquer comando pode se tornar Direito, não importa o quão injusto ou absurdo seja? A discussão presente na Antígona é frequentemente tratada sob o ponto de vista do embate entre o direito positivo e o direito natural. Somente aquilo que é fixado por atos de vontade constitui o Direito? Há algo externo ao direito positivo que possui vinculatividade sobre nós?
Na peça, a personagem Antígona invoca uma norma que não foi ditada por qualquer soberano, mas que é amplamente aceita na sociedade. Mas acatar essa norma implica violar a norma prescrita pelo soberano. Note-se que a lei de Creonte não é totalmente arbitrária, já que é prévia e não retroage, bem como distingue os amigos dos inimigos. Mas, por outro lado, essa lei ofende profundamente uma ideia de justiça que reinava entre todos daquela comunidade. Diante desse dilema, há uma questão: o que é realmente o Direito? Recomendo aos nossos leitores que assistam e leiam essa peça curta, mas imortal.
A República de Platão
A minha segunda sugestão é a obra A República de Platão. Trata-se de um texto que levanta questões cruciais sobre justiça, direito e moralidade em uma comunidade política, algo que permanece relevante até hoje. O método socrático do diálogo, da contraposição de ideias e de testes, é absolutamente relevante para a experiência jurídica moderna. Para o pensamento jurídico moderno, Platão é muito relevante para entendermos os limites até os quais o direito poderá contribuir efetivamente para o bem de uma comunidade política. Há matérias, relacionadas ao desenvolvimento das virtudes, que dificilmente o legislador alcançará pela via do direito. Mesmo assim, Platão coloca verdadeiros desafios para nós que trabalhamos com o direito – por exemplo, quais as qualidades para ser um magistrado? Basta possuir conhecimento técnico? Ou, diversamente, é necessário o desenvolvimento de virtudes?
A partir da leitura de República, o leitor compreenderá como é o modo filosófico de pensamento. A filosofia não é apenas um corpo de conhecimento, mas também uma forma de pensar. Acredito que Platão fornece uma boa introdução a esse modo de pensar filosófico.
Tópica e Jurisprudência de Theodor Viehweg
A minha terceira sugestão é a Tópica e Jurisprudência. É um livro pequeno e revolucionário, em parte responsável pela reemergência de um tipo de pensamento presente já em Aristóteles: o pensamento tópico. Essa colocação do pensamento jurídico já nos faz lembrar que ele pertence, por excelência, ao campo da dialética.
É interessante notar que boa parte do treinamento que as faculdades de direito oferecem a seus alunos é calcada no pensamento sistemático. Cultiva-se, talvez excessivamente, a ideia de que o direito positivo, reconstruído sistematicamente pela ciência do direito (que elimina antinomias, colmata lacunas e dá interpretações sobre os enunciados normativos), pode oferecer soluções precisas, claras e lineares para todos os problemas jurídicos.
O pensamento sistemático é importante, sem dúvidas. Mas o pensamento tópico é igualmente relevante. Pensamento sistemático e pensamento tópico são complementares, e não excludentes ou conflitantes.
A obra de Viehweg coloca em destaque, justamente, o pensamento tópico, problemático, argumentativo. A importância desta obra revela-se ainda mais potente em um contexto em que as faculdades de direito precisam treinar seus alunos para pensar criticamente e argumentativamente, a fim de responder às possíveis crises do positivismo.
No pensamento tópico, as regras são usadas como sedes de argumentos, que devem ser pesados cuidadosamente. Ganha importância a prudência. Nesse tipo de pensamento, é preciso elaborar uma trama (tecida com argumentos) para avaliar a força dos argumentos e determinar a melhor solução. Ou seja, em geral, não há uma regra única que resolva o conflito de modo geométrico e sistemático. É necessário sopesar argumentos tendo como horizonte a decidibilidade dos conflitos.
A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen
Hans Kelsen é um autor que passou por diferentes fases e escreveu várias obras importantes, representativas de cada uma dessas fases. Gostaria de recomendar a leitura da obra Teoria Pura do Direito, cuja primeira edição data de 1934. Recomendo, entretanto, especialmente, a segunda edição da Teoria Pura do Direito, publicada em 1960, quando Kelsen já vivia nos Estados Unidos. Nessa segunda edição, Kelsen revê e modifica várias explicações e posições da primeira edição, bem como expande o alcance do seu estatuto teórico, formulando uma espécie de “novo testamento da teoria pura”.
A teoria pura do direito apresenta as ideias fundamentais para se desenvolver o raciocínio jurídico em qualquer estudioso do Direito. Kelsen propõe como a Ciência do Direito se diferencia de outras formas de conhecimento, com sua especificidade própria, com seu estatuto epistemológico próprio. Isto é, oferece critérios que nos permitem distinguir o conhecimento científico sobre o direito do conhecimento não científico sobre o direito. Igualmente, Kelsen se preocupa em distinguir o Direito de outras ordens normativas, captando o que há de específico no modo de existência do sistema jurídico.
A perspectiva de Kelsen é muito criticada, por vários motivos – alguns bem fundados, outros infundados. Mas a teoria pura possui muitos méritos – Kelsen explicita, por exemplo, que o conteúdo do Direito será aquilo que nós desejarmos. O direito, nesse sentido, na teoria pura, é resultado da vontade, e não da razão. Não há garantias jurídicas – i.e., no próprio sistema jurídico – de que o Direito será justo. O Direito pode ser justo ou injusto. Se houver alguma garantia, ela estará em nós mesmos, que fazemos o Direito.
Apesar de o livro representar uma espécie de positivismo que frequentemente critico, eu o considero fundamental para entender o que é o Direito nos tempos modernos e como se pode pensar juridicamente de modo rigoroso.
Há uma metáfora utilizada por Losano para descrever a importância da teoria pura como opus perpetuum, quando ele escreve o prefácio da edição italiana da Teoria Geral das Normas: assim como São Pedro foi construída, em parte, com pedras do Coliseu, a ciência do direito do futuro continuará a ser escrita com o material da imensa construção kelseniana.
Direito como Experiência de Miguel Reale
O jurista Miguel Reale é um grande nome da Filosofia do Direito brasileiro. Ele escreveu um importante curso denominado Filosofia do Direito, que é muito lido até hoje. Trata-se de um bom livro, principalmente para alunos de graduação, pois sua estrutura revela uma verdadeira história da filosofia do direito.
Para mim, Reale possui outros livros que são mais estimulantes, pois exigem mais do leitor, aguçam a curiosidade e a especulação. Entre eles, há o Direito como Experiência, um livro escrito no final dos anos 1960 em que Reale apresenta novas ideias sobre suas premissas ontognoseológicas. Ele se pergunta: como é possível conhecer o Direito?
Miguel Reale estuda a teoria do conhecimento – chamada de gnosiologia – e desenvolve uma teoria própria sobre quais são as condições que possibilitam um sujeito conhecer verdadeiramente o Direito. Reale absorve as contribuições de Kant e de Husserl e ainda acresce uma contribuição original à teoria do conhecimento. Além disso, nesse livro, ele apresenta as linhas mestras de uma ideia de modelo. Para Reale, a teoria das fontes tem certa utilidade, mas é necessário algo a mais. Com isso, ele desenvolve a ideia de modelo jurídico e, junto a esse modelo, elabora a ideia de experiência jurídica. O Direito pode ser entendido ou conceptualizado como norma, como prática, mas pode ser também uma experiência. Reale nos ensina – pelo seu próprio exemplo – a teorizar a vida e viver a teoria (na unidade incindível do pensamento e da ação). Posso dizer também que o Direito é, também, um experimento, e esse livro é um convite à reflexão por essa senda.
Introdução ao Estudo do Direito e Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa de Tércio Sampaio Ferraz Júnior
Outro livro que recomendo é do professor Tercio Sampaio Ferraz Júnior e se chama Estudos de Filosofia do Direito. É muito difícil recomendar apenas uma obra do professor Tercio, mas creio que esse livro – Estudos de Filosofia do Direito – possa ser uma boa porta para ingressar no pensamento do professor Tercio. Esse livro reúne textos independentes entre si sobre direito, justiça, liberdade e poder. O tipo de pensamento desenvolvido nesses textos é precipuamente zetético, isto é, especulativo, e abre os horizontes do seu leitor, permitindo que ele repense problemas variados do Direito, nos mais diversos campos.
Também vale ressaltar que o professor Tercio é autor de um livro de introdução ao estudo do direito – denominado Introdução ao Estudo do Direito – que não é apenas uma introdução. É muito mais do que isso. É um livro que constitui, em si, uma teoria do direito, uma complexa e original teoria do direito, que combina elementos clássicos e contemporâneos, brasileiros e estrangeiros, da cultura jurídica.
Também gostaria de aproveitar e sugerir um livro de tamanho pequeno e bastante original, chamado Teoria da Norma Jurídica: Ensaio de Pragmática da Comunicação Normativa. Na minha opinião, o professor Tercio presta uma contribuição muito original com esse livro ao explorar o campo da pragmática na filosofia do direito. Digo isso porque, em outros campos, a pragmática já havia sido explorada há algum tempo. O professor Tercio mostra que os sistemas normativos podem ser vistos também como um jogo, um jogo sem fim, cujo critério último de fundamentação é a legitimidade. Encarar o sistema normativo como um jogo que se joga, pelo ângulo da comunicação – em que tudo é comunicação (até quem não se comunica, na verdade, comunica; comunica que não se comunica) –, pelo ângulo da pragmática, é uma renovação muito benfazeja para a Filosofia do Direito.
Reconstrução dos Direitos Humanos de Celso Lafer
A Reconstrução dos Direitos Humanos, do professor Celso Lafer é, sem dúvidas, uma obra fundamental para a Filosofia do Direito no Brasil. Isso porque ainda precisamos aprender a não repetir as experiências totalitárias que tivemos outrora. Precisamos contar com algum tipo de reflexão filosófica para evitar essas experiências totalitárias. Assim, o professor Lafer faz um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt e exorta a importância do “parar para pensar”, isto é, de se fazer uso da razão para avaliar as dimensões morais do agir. O professor Lafer retoma, a esse respeito, a distinção de Karl Jaspers entre Verstand e Vernunft, entre o intelecto e a razão. Não basta conhecer o mundo intelectualmente, é necessário pensar criticamente esse próprio conhecimento intelectual. Isso se estende, inclusive, para o uso da razão que deve se projetar sobre o direito positivo.
Vemos que as ameaças fascistas, autoritárias e totalitárias continuam permeando o nosso mundo. Qual é o remédio ou antídoto possível para essa ameaça? Penso, na trilha do professor Lafer, que é esse “parar para pensar”, que é questionador e problematizador. É essa reflexão crítica, jusfilosófica, que pode nos imunizar contra a dogmatização excessiva do conhecimento jurídico que, no extremo, pode permitir que qualquer conteúdo – mesmo que absurdo – possa ser objeto de norma jurídica.
Nessa lista de indicações, busquei apresentar os grandes professores que influenciaram o meu pensamento jusfilosófico, como o professor Tercio Sampaio Ferraz Jr., o professor Celso Lafer, a professora Elza Boiteux. Eu lembraria, com Hegel, que, no que respeita ao indivíduo, cada um é filho do seu tempo. Essas obras e esses autores que citei constituem um pouco da espinha dorsal do meu universo existencial formador do pensamento filosófico.
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