No dia 22 de fevereiro de 2023, a pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu com o pesquisador Pedro Monteiro, para discutir seu trabalho “Políticas públicas municipais de saúde sexual e saúde reprodutiva para homens em Porto Seguro (2017-2020): uma análise interseccional”, que ganhou o primeiro lugar da categoria “graduação” da 1.º edição do Prêmio Raymundo Magliano Filho.
INB: Qual é o problema discutido no seu projeto de pesquisa e o que te motivou a pesquisar sobre o assunto?
Pedro: O meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) se relaciona com minha trajetória e, por isso, reflete a maneira pela qual construí minha carreira e meu ativismo social. Quando menciono carreira, não me refiro apenas ao percurso acadêmico, mas também às experiências que surgiram a partir da formação em Direito. Na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), os alunos seguem um modelo de dois ciclos. Em um primeiro momento, devem realizar um Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (BIH), que proporciona uma noção geral nessa área ao longo de três anos. Após concluir o BIH, podem optar por ingressar em uma graduação específica. No meu caso, escolhi o curso de Direito. A mudança de cenário também foi marcante, pois saí da cidade de Ipiaú, interior da Bahia, para Teixeira de Freitas. Lá, me envolvi em diversos movimentos e frentes, pois a universidade, durante os anos de 2015 e 2016, tinha acabado de começar a operar. Coincidentemente, esse mesmo período foi marcado pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e por diversas formas de ocupações das universidades. Mas no contexto universitário, participei ativamente do movimento LGBTI+, negro e estudantil, envolvendo-me em dezenas de centros acadêmicos e iniciando ativismo em várias frentes.
Ao longo desse processo, identifiquei-me como homem negro afeminado, integrante ativo da comunidade LGBT+. Ao participar das atividades sociais, frequentemente era acusado de ser um “militante”. Isso me deixava intrigado, pois, na minha cabeça, ser um militante demandava um alto nível de conhecimento e eu não me sentia completamente preparado nesse aspecto. Então, me dediquei aos estudos não apenas para entender minha posição enquanto indivíduo no mundo, mas também para compreender os ativismos que abraçava.
Investiguei profundamente a experiência de ser um homem negro e afeminado, mergulhando nos estudos das masculinidades e dos gêneros em geral. Enquanto realizava a formação no BIH, elaborei um TCC sobre as representações de masculinidades e feminilidades no filme Madame Satã, dirigido por Karim Aïnouz e protagonizado por Lázaro Ramos. Essa pesquisa foi uma oportunidade empolgante para explorar mais sobre o tema.
Ao concluir o BIH, mudei-me para Porto Seguro para dar continuidade ao segundo ciclo, onde o curso de Direito estava sediado. Assim que cheguei nessa nova cidade, me envolvi ainda mais nesses debates, nós reformulamos o coletivo LGBT+ Flor de Lótus, e começamos a promover diversas atividades espe,cialmente quando a universidade começou a lançar editais para promoção da saúde universitária. Junto aos meus colegas, submeti um projeto que foi aprovado: o 1ª Simpósio de Saúde Sexual, o que despertou um interesse ainda maior pela pesquisa em saúde sexual e reprodutiva.
Inicialmente, concentrei-me nas lutas das mulheres por seus direitos sexuais e reprodutivos. Organizamos o primeiro Simpósio em 2018 e o segundo em 2019, com o apoio da Universidade Federal do Sul da Bahia, através da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas (PROAF). Nos eventos oferecemos minicursos, oficinas e palestras informativas sobre sexualidade, gênero, saúde pública e direitos. Conseguimos trazer estudantes do ensino médio da escola pública para dentro da universidade. Também levantamos recursos por meio da PROAF para realizar um evento com drag queens da região de Porto Seguro, com apresentações artísticas e falas sobre a LGBTfobia na região, como parte da conclusão da nossa segunda edição do evento.
No meio disso tudo, engajei-me na militância pela saúde sexual e, ao mesmo tempo, em um contexto político desafiador, especialmente diante das tentativas de proibir a educação sexual nas escolas sob a alegação da “ideologia de gênero”. Lutamos contra esses projetos de lei nas câmaras municipais, tanto aqui em Porto Seguro quanto em Teixeira de Freitas, em 2018. Infelizmente, esses projetos foram aprovados, o que nos levou a mudar nossa estratégia: ao invés de falar sobre educação sexual, passamos a abordar temas como saúde sexual, gravidez na adolescência, prevenção de IST’s, e, gradualmente, questões de identidade de gênero, orientação sexual e direitos humanos das pessoas LGBTI+. Nessa mesma época, fui aprovado para uma pós-graduação lato sensu em Direitos Humanos na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Nesse momento, iniciei uma pesquisa sobre as políticas públicas de saúde sexual LGBTI+ no Brasil, que até hoje são bastante incipientes. A monografia da pós-graduação nos rendeu a publicação de um artigo. Por ser uma pessoa negra LGBT+, a questão racial é muito presente e relevante. A formação no BIH foi fundamental, pois me ensinou a abordar os problemas sociais e de pesquisa de maneira holística, integrando diversas disciplinas. Isso significa que, em qualquer produção científica que realize, gênero e raça sempre estarão presentes, desde a seleção de referências até a abordagem dos temas.
Mas voltando para o TCC em Direito, quando chegou a hora de elaborar o projeto, decidi pesquisar sobre as políticas de saúde masculina no município da minha universidade. A UFSB é uma das últimas universidades criadas no governo Dilma e conta com campus em Teixeira de Freitas, Porto Seguro e Itabuna. Uma de suas principais características é o foco na comunidade local e, quando era estudante, tive contato com grupos quilombolas e indígenas, assim como movimentos do MST e terreiros de candomblé, entre outros. Os trabalhos de graduação e pesquisa sempre voltavam para a região e buscavam refletir sobre como podemos impactar e transformar nosso território por meio da extensão e produção acadêmica local. Foi assim que comecei a investigar as políticas de saúde masculina no município, para identificar quais eram e como eram implementadas.
Eu até tinha contato com profissionais de saúde locais e uma noção de como funcionavam as políticas de saúde para homens gays, bissexuais, travestis e mulheres trans. Também estava ciente do atendimento relacionado à profilaxia pós-exposição (PEP) e à oferta de métodos contraceptivos para mulheres, mas notei uma lacuna na discussão sobre serviços destinados aos homens cisgênero. Inclusive, até hoje é difícil encontrar pesquisas dedicadas ao tema.
Fiquei pensando nisso, pois não tinha muitos colegas da mesma área de estudo que eu em Porto Seguro. Muitas vezes, me vi discutindo sozinho. Cheguei ao problema considerando meu contexto territorial, ativismo social e a área de políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva, pensando nos homens e no papel deles nesse contexto social, onde muitos se excluem das questões relacionadas à reprodução, contracepção, aborto e maternidade.
Ao mesmo tempo, muitos homens não têm acesso aos serviços devido aos seus horários de trabalho e à falta de disponibilidade dos postos de saúde. Me refiro não apenas aos homens cisgêneros, mas em uma diversidade de identidades sexuais e raciais, considerando a forte presença das comunidades indígenas, negras e estrangeiras, em uma cidade turística como Porto Seguro. Questiono-me como essas políticas de saúde contemplam tal diversidade e faço referência à Política Nacional de Saúde Integral dos Homens (PNAISH) como um ponto de partida para minhas análises.
Outro aspecto importante dessa discussão é que o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil é articulado para a prevenção e promoção da saúde; isto significa que o cidadão não deve acessá-lo apenas para reparar os agravos. E isso também é uma questão de segurança pública, uma vez que os dados de mortalidade revelam que os homens são os que mais morrem no Brasil a cada ano, muitas vezes devido a causas externas, como violência e acidentes de trânsito, que poderiam ser prevenidos pelo sistema de saúde. No entanto, muitos não buscam ativamente os serviços e, ao mesmo tempo, enfrentam barreiras no acesso. Por exemplo, as unidades de saúde geralmente operam em horário comercial, o que dificulta o acesso para aqueles que trabalham durante esse período.
É um ciclo que se retroalimenta: tanto os homens não procuram quanto enfrentam dificuldades de acesso, em razão da falta de disponibilidade nos horários de funcionamento. Isso levanta questões importantes sobre como garantir que os homens tenham acesso adequado, incluindo a necessidade de horários de funcionamento mais flexíveis e estratégias para alcançar aqueles que não buscam ativamente os cuidados médicos necessários.
Em um município turístico como Porto Seguro, por exemplo, há uma forte presença do trabalho precarizado. Isso significa que muitos trabalhadores não têm contratos formais e exercem suas atividades sem carteira assinada ou qualquer tipo de proteção jurídica. Muitos trabalham como ambulantes ou em empregos temporários, especialmente durante a temporada do verão, e logo se encontram desempregados novamente. Além disso, os preços na região são elevados, pois a economia é voltada principalmente para o turismo.
Essas condições dificultam ainda mais a ida aos serviços de saúde. Com a instabilidade financeira e a falta de garantias trabalhistas, muitos podem não ter recursos para acessar os cuidados de saúde necessários ou podem priorizar outras necessidades básicas de sobrevivência. Assim, o contexto socioeconômico do território contribui para as barreiras no acesso aos serviços de saúde para essa população.
É evidente que as mulheres com filhos também enfrentam dificuldades de acesso nos serviços de saúde, mas para os homens, especialmente aqueles que têm uma noção de invulnerabilidade, força e resistência, a barreira é ainda maior. Há uma explosão de pensamentos quando consideramos quem está por trás da produção dessas políticas de saúde: em grande parte, são homens. Isso me fez refletir profundamente. Alguns pesquisadores na área de saúde sexual e reprodutiva masculina, como Jorge Lyra e Benedito Medrado, têm abordado essa questão há anos. Eles destacaram que um pequeno grupo de homens brancos influencia a legislação sobre saúde masculina no Brasil, mas essa política ainda não alcança outros grupos de homens, especialmente os racializados.
É importante reconhecer tal disparidade e considerar como as políticas de saúde podem ser mais inclusivas e abrangentes, levando em conta as diversas realidades e necessidades dos homens em diferentes contextos sociais e raciais. A política de saúde masculina muitas vezes é de gabinete, isto é, elaborada por um pequeno grupo de médicos especialistas e pode estar desconectada das contribuições dos cientistas sociais. Por exemplo, a Política Nacional de Saúde do Homem destaca as principais causas de morte, como as decorrentes de causas externas, mas não oferece estratégias para lidar com essas questões que vão além da esfera da saúde, como segurança pública e educação. Essa política foi desenvolvida entre 2008 e 2009, mas ainda não tem um impacto significativo na realidade municipal. Isso ressalta a importância de revisar e adaptar para garantir que aborde adequadamente as complexas questões sociais, econômicas e culturais que afetam a saúde dos homens.
Além dos estereótipos de gênero, também existem estereótipos associados à raça, como o do homem negro trabalhador, resistente e que suporta tudo. Esses estereótipos podem contribuir para que muitos homens negros adiem a busca por cuidados médicos, mesmo quando enfrentam problemas de saúde graves. Os homens ainda não se colocam no papel de cuidadores, o que é totalmente deixado para as mulheres.
Durante a minha pesquisa, senti-me muito sozinho pois não encontrava interlocutores. Em 2019, tentei realizar uma palestra na universidade sobre o Novembro Azul, mas com uma abordagem diferente: uma perspectiva racializada para discutir a saúde do homem negro e a saúde do homem em geral. Para isso, solicitei ajuda a um enfermeiro que é servidor da universidade. Conversei com ele, compartilhei dados sobre mortalidade e falei sobre o câncer de próstata, já que muitos homens têm o pênis amputado anualmente devido à falta de higiene adequada e à falta de testes para identificar e tratar infecções sexualmente transmissíveis, o que poderia prevenir a amputação. Então, ele respondeu que os números eram muito pequenos e não demandavam uma ação de combate.
Dessa maneira, inviabilizou completamente a realização do evento. Mas o fato é que homens que trabalham na área da saúde enfrentam dificuldades, especialmente porque a saúde sexual e reprodutiva é um tema muito difícil de ser debatido no Brasil, um país muito conservador. Enquanto pesquisava meu tema, estava finalizando meu trabalho em 2021, durante a pandemia e o final do governo Bolsonaro. Testemunhava o desmonte da política de saúde reprodutiva das mulheres diante dos meus olhos. Se já estávamos enfrentando dificuldades para discutir a saúde masculina, imagina a das mulheres cis que estava sendo desmantelada, e nem se fala sobre a saúde das pessoas trans.
É frustrante perceber essas lacunas e sentir-se incapaz de abordá-las. No entanto, encontrei interlocutores em 2022, quando apresentei um trabalho no 8º Colóquio de Homens e Masculinidades, um evento internacional, em que tive a oportunidade de dividir experiências com Benedito Medrado, uma das minhas referências. Na ocasião, apresentei um resumo do meu TCC e tive a oportunidade de conhecer outros pesquisadores que também investigavam políticas públicas de saúde masculina. A maioria deles já fazia parte de uma rede de pesquisa sobre a implementação da política nacional nos estados. Houve apresentações sobre São Paulo, Rio de Janeiro, Pará e Rio Grande do Norte. Em nossas discussões, percebi que os problemas encontrados em nível estadual eram muito semelhantes aos que eu havia identificado no município em minha pesquisa. Foi incrível poder compartilhar essas experiências e perceber que outras pessoas estavam discutindo o mesmo tema. Isso me proporcionou uma compreensão mais ampla dos desafios enfrentados e a possibilidade de comparar os indicadores em nível municipal.
INB: O que você concluiu com o seu projeto de pesquisa?
Em primeiro lugar, conclui que no Brasil há uma descontinuidade de políticas públicas que oferecem serviços de saúde. E isso não ocorre apenas na transição entre governos: há um verdadeiro desmantelamento financeiro das políticas e a perda de diversos recursos. Essa descontinuidade também acontece quando um gestor municipal deixa o cargo e leva consigo todo o seu trabalho. Por exemplo, durante o período da minha pesquisa, de 2017 a 2020, registrei três mudanças de secretários de saúde.
Às vezes, quando um gestor deixa o cargo, continua utilizando seu e-mail pessoal como e-mail profissional, e quando ele sai, leva consigo todo o histórico de comunicação e documentos. Ou então, ocorre a troca de direção e as novas pessoas não estão qualificadas para assumir o posto. Elas podem não ter a qualificação necessária para ocupar a Secretaria de Saúde, ocasionando a interrupção das políticas em curso. Isso pode ser observado nos dados de Porto Seguro sobre a campanha do Novembro Azul, de 2017 a 2020. Há uma inconsistência gigantesca nos dados, pois no relatório de 2017 constava que 11 pessoas morreram de câncer de próstata no município, enquanto no relatório de 2019 constava que ninguém morreu de câncer de próstata naquele ano de 2017.
Essa incongruência nos dados revela a falta de continuidade na observação do que foi feito no ano anterior. Há ainda uma segunda questão, que é a ausência de avaliação das políticas públicas. Como qualificar e melhorar uma política específica se não sabemos o que foi produzido a partir dela, quais foram os resultados e quais os seus impactos? O Novembro Azul é um exemplo disso. O discurso do próprio projeto, que são os documentos que analisei em minha pesquisa, mostra que em 2017 houve mortes de homens por câncer de próstata, enquanto em 2020 e 2019, ninguém morreu. Então, fica evidente que essas campanhas não têm tanta eficácia para atrair a população para fazer os testes. É preciso realizar exames durante todo o ano.
Portanto, identifiquei que a falta de avaliação rompe com o próprio ciclo da política pública: primeiro, identificar o problema; depois, realizar um diagnóstico; em seguida, formular as estratégias; e, por fim, avaliar o que foi feito. Se não realizarmos essa avaliação, continuaremos a enfrentar os mesmos problemas.
Nesse sentido, uma das principais questões é a ausência de um diagnóstico do perfil dos usuários do sistema de saúde do município. Não há informações sobre a religião, orientação sexual e identidade racial desses homens para enfrentar questões específicas do município. Por exemplo, a partir do Novembro Azul de 2018, foi implementado um atendimento noturno para os homens nas unidades básicas de saúde, apenas uma vez em um ano, e depois todas as quintas-feiras do mês de novembro seguinte. Por que essas ações não ocorrem durante todo o ano? Se os homens procuraram o serviço naquele horário, por que não está disponível durante o ano inteiro? Como criar políticas com base nas necessidades desses homens se não temos essas informações?
Como mencionei anteriormente, os índices de mortalidade indicam que os homens são a parcela da população mais vulnerável a morrer por causas externas, como violência no trânsito, violência geral por arma de fogo, arma branca e acidentes de trânsito, entre outras. Embora os dados existam, há uma falta de soluções para esses problemas no âmbito municipal. Os administradores do município apenas replicam os métodos previstos na Política Nacional de Saúde do Homem em nível municipal e, com isso, não buscam soluções para situações específicas.
Quando comecei minha pesquisa, durante a pandemia da COVID-19, tinha a intenção de fazer muitas coisas, como entrevistas e grupos focais. Devido as limitações e distanciamento social, decidi elaborar um pedido de acesso à informação para mapear quais políticas de saúde para os homens existiam em Porto Seguro. Em 2020, realizei duas solicitações, mas apenas na segunda recebi uma resposta. Apesar de ter pedido os documentos digitalizados, recebi poucos documentos físicos. Dentre eles, alguns projetos que não tinham relação com as políticas que eu estava pesquisando, como o projeto de combate ao tabagismo, de diabetes e as três edições da política do Novembro Azul.
As análises foram concentradas na Política do Novembro Azul, pois abordava questões de saúde sexual e reprodutiva, embora infelizmente estivesse muito focada na próstata. Isso é um ponto importante. Acho que a saúde do homem é excessivamente focada na próstata, e nesse projeto específico do Novembro Azul, isso é evidente, apesar de também oferecerem, por exemplo, testes de ISTs, aferição da pressão arterial e avaliação de diabetes.
Em seguida, fiz três pedidos de acesso à informação com base em três políticas diferentes. O primeiro deles para saber quais eram as políticas relacionadas à saúde do homem, considerando a Política Nacional de Saúde Integral do Homem (PNAISH), o segundo era sobre a saúde da população negra, com foco na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), e o terceiro pedido relacionava-se à Política Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva. Como resposta, recebi uma carta do gestor, que está anexada ao meu trabalho, na qual ele dizia que o município de Porto Seguro não pratica segregação, mas compreende as especificidades de cada grupo.
Isso revela que há uma má compreensão por parte dos gestores sobre como a política pública realmente funciona. Acredito que essa seja uma questão central em meus anos de pesquisa sobre essas políticas nacionais. Estudei a saúde da população negra, a saúde LGBT+, a saúde das mulheres e a Política Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva. Ocorre que essas políticas foram construídas em um período de tempo muito próximo, nos primeiros governos do PT, durante o governo Lula, no primeiro e no segundo mandatos. No entanto, elas não dialogam entre si. Há uma tentativa de implementá-las de forma muito espaçada, o que resulta em uma perda de coesão.
Cada vez mais forma-se uma noção de um sujeito universal de saúde. Por exemplo, ao pensar na saúde do homem, muitas vezes só se considera o homem branco de classe média. Ao pensar na comunidade LGBT+, foca-se apenas nos homens gays. Ao considerar a saúde das mulheres, muitas vezes só se pensa na mulher branca e heterossexual.
Meu trabalho revela como tais políticas não se comunicam. Isso torna muito mais difícil alcançar a equidade quando se atua em uma frente diferente a cada mês. O último ponto que percebo como positivo, para não fazer tantas críticas, é que existem medidas que considero como ações de sensibilização e prevenção.
A sensibilização compreende medidas direcionadas a toda a população, à comunidade do município, como palestras, sinalização ou iluminação, inauguração de unidades de saúde e mudança de nome em homenagem às pessoas. São formas de conscientizar que algo está acontecendo, como o Novembro Azul. Já as medidas de prevenção são realmente voltadas para o público masculino, como consultas, palestras e exames, como o exame de PSA para detectar possíveis problemas hormonais, cistos, entre outros. Eles oferecem o PSA total e o PSA livre durante essa época.
INB: Como você analisa a contribuição da sua pesquisa para a nossa sociedade?
Pedro: Na UFSB, há uma cultura de desenvolver projetos de pesquisa que geram intervenções. Mas com a pandemia, foi muito difícil fazer isso. Já era complicado fazê-lo presencialmente, mesmo com o apoio da universidade por meio de editais que forneciam recursos.
Eu queria retribuir e dialogar com esses homens da sociedade, qualquer que fosse o grupo. Durante esse período, houve mais um edital remoto de promoção da saúde pública, e então ofereci um minicurso para quem se interessasse no tema, para discutir sobre a saúde dos homens. Esse minicurso foi intitulado As Cores das Masculinidades. Hoje, vejo que tal iniciativa foi uma forma de também retribuir.
O título do curso é em homenagem ao livro As Cores das Masculinidades: Experiências internacionais e práticas de poder na Nossa América, de Mara Viveros Vigoya. Ela é uma pesquisadora feminista e antropóloga afro-colombiana, cuja obra foi recentemente traduzida no Brasil. Na verdade, esse livro é uma compilação de seus trabalhos, traduzidos e organizados em forma de livro. Eu e minha orientadora, Lidyane Ferreira, desenvolvemos esse minicurso em quatro encontros.
Começamos introduzindo questões de gênero e feminismos, depois abordamos políticas públicas e o funcionamento do direito à saúde no Brasil, e então discutimos sobre a saúde do homem. Por fim, o quarto encontro foi dedicado a analisar especificamente o contexto da pandemia, e uma declaração do Bolsonaro me marcou muito. Ele afirmou que “máscara é coisa de viado”, o que me inspirou a escrever um capítulo de livro no ano passado, intitulado “Máscara é coisa de viado?” Pandemia, masculinidades e branquitude, onde questiono como essas declarações do presidente afetaram não apenas as políticas que ele implementou, mas também como suas falas influenciaram a maneira como os homens cuidam de si mesmos e dos outros.
Foi interessante que um agente de saúde participou do minicurso, o que nos permitiu dialogar sobre estratégias que as unidades de saúde utilizam para atrair os homens para os serviços. Ele mencionou, por exemplo, que quando uma mulher vai fazer o pré-natal, é incentivada a levar o marido junto, pois assim ele pode fazer exames e ser encaminhado para um médico específico. São estratégias que já existem para tentar atrair os homens para os serviços de saúde. Era essa minha intenção: dialogar com outras pessoas que estão na política, que estão no sistema de saúde.
Para mim, essa iniciativa é uma contribuição para repensar os indicadores de saúde sexual e reprodutiva no município para os homens, tanto para a produção de indicadores para avaliar as políticas públicas quanto para criar novas estratégias, inclusive com a iniciativa privada.
Por mais que estejamos discutindo um contexto de produção científica e acadêmica, que está estruturado e organizado, estamos lidando com algo muito presente no nosso dia a dia. O profissional de saúde deve acolher o paciente, mesmo se o problema não for considerado grave. O que nossa Constituição preconiza é um sistema de saúde universal, público, gratuito e digno. Apesar de ser uma questão nacional, ela também é muito local. No final da carta que recebi do gestor, ele faz uma observação sobre o fato de que os homens não acessam os serviços de saúde com tanta frequência quanto as mulheres. Ele apresenta dados sobre quantas pessoas de cada sexo foram atendidas no Sistema Único de Saúde por mês durante o ano de 2020, na tentativa de provar que as mulheres buscam mais os serviços do que os homens. Mas, como mencionei, esses dados não transmitem exatamente essa mensagem. Eles, por si só, sem contexto, não revelam muito, considerando as políticas nos setores sociais e econômicos.
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