No dia 20 de janeiro de 2023, a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com o professor Gustavo Siqueira sobre a história do direito e a importância de Hans Kelsen na Assembléia Constituinte de 1934.
INB: Qual é o estatuto e a importância da História do Direito para a formação do estudante de direito?
Gustavo: A sua pergunta é interessante porque, se a tivesse feito ontem, eu teria respondido de outra forma. O conhecimento da história é essencial para que possamos conhecer a sociedade em que vivemos e entendê-la melhor. Por outro lado, o que a história nos ensina é um aprendizado para as sociedades do presente. Acredito que o exemplo da pandemia e da relação com a gripe espanhola tenha trazido essa questão à tona. Inclusive, hoje mesmo, enquanto conversava com um colega sobre o assunto, ele me disse que não faz mais sentido um professor apenas ensinar as datas de batalhas ou o nascimento de alguém, com a intenção de o estudante decorar eventos importantes ao longo do tempo. Com as novas tecnologias, ele tem acesso a essas informações facilmente.
Talvez hoje a função da história do Direito seja possibilitar àqueles que lidam com o assunto entender o passado jurídico, na medida em que sempre haverá uma relação entre passado, presente e futuro. Acredito que uma das funções da história do Direito hoje seja ensinar aos alunos a ler o passado jurídico, a compreender as lógicas diferentes e os conceitos distintos, bem como entender como o Direito e a lei funcionavam na sociedade do passado. Até porque lidamos constantemente com conceitos que possuem uma dimensão histórica, sujeita a mudanças ao longo do tempo e do espaço.
A história nos possibilita, por exemplo, examinar a evolução do conceito de democracia e como ele se transforma ao longo do tempo e em diferentes lugares. Isso é essencial para evitar uma visão anacrônica, um erro comum que ocorre quando olhamos para o passado sob a ótica do presente e o interpretamos à luz das lógicas contemporâneas. Portanto, acredito que a história do Direito permite aos alunos compreenderem que o passado foi permeado por experiências jurídicas distintas e momentos singulares do presente. A partir desse conhecimento, podemos então refletir sobre nossa sociedade atual, especialmente sobre o que desejamos para o futuro.
INB: Quais os principais erros e equívocos relacionados ao estudo da História no direito ?
Gustavo: A história do Direito é uma disciplina relativamente recente no Brasil. Ela não existia na fundação dos cursos jurídicos no século XIX, tampouco nas primeiras faculdades de Direito. Teve um breve período de existência no início do século XX, mas só se tornou conteúdo obrigatório no século XXI. Nesse sentido, pode ser considerada uma área bastante recente, tendo em vista a longa tradição de faculdades de Direito com mais de um século de existência.
Por essa razão, o corpo de especialistas no assunto é relativamente pequeno e até hoje há uma confusão entre as disciplinas História do Direito e Filosofia do Direito. Às vezes, os professores da áreas do direito se aventuram em incursões históricas, mas a história é uma disciplina com suas próprias metodologias, técnicas e especializações que, às vezes, o jurista desconhece.
Portanto, o erro principal dos profissionais do âmbito jurídico está em querer adentrar em uma área para a qual não estão devidamente preparados. Isso ocorre não apenas na História do Direito, mas também em outras matérias. Um exemplo disso é quando um ministro do STF menciona o Egito Antigo, sem compreender adequadamente o contexto histórico da época. Outro exemplo é o uso equivocado do termo “Carta Magna” para se referir à Constituição.
Existem uma série de conceitos do passado que têm significados diferentes e às vezes nos apropriamos deles sem considerar o devido cuidado histórico. Portanto, acredito que a principal falha dos juristas ao trabalharem com história é não utilizarem as técnicas e metodologias adequadas à disciplina histórica. Se desejam uma abordagem interdisciplinar, é fundamental estabelecer um diálogo genuíno entre as disciplinas, em vez de simplesmente presumir que podem adentrar na história sem uma preparação prévia adequada.
INB: Em que medida o conhecimento das técnicas e metodologias históricas é importante para a prática do jurista?
Gustavo: O conhecimento das técnicas, em primeiro lugar, evita que ocorram equívocos conceituais, como mencionar greve no Egito em um voto ou fazer comparações entre a Constituição e a Carta Magna. Em suma, esse primeiro aspecto é de natureza estética e acadêmica, e, portanto, a base fundamental é o conhecimento.
O segundo ponto, igualmente crucial, é entender o Direito. Não podemos ignorar que o Código Penal e o Código de Processo Penal foram elaborados durante o período da ditadura Vargas, quando o Congresso estava fechado. É essencial compreender os contextos e lógicas subjacentes a essas leis. Isso não implica que estamos presos a uma interpretação específica do Código Penal dos anos 1940, o que seria absurdo, na minha opinião.
No entanto, é fundamental entender a lógica subjacente àquele código, o processo de sua elaboração, os motivos por trás dele e as discussões que o envolveram. Isso nos permite compreender como um projeto de Código Civil foi desenvolvido durante a ditadura. Devemos também reconhecer que o Código Civil, aprovado no século XXI, foi amplamente elaborado e concebido durante o final do período da ditadura militar. É importante conhecer a origem do nosso sistema jurídico, seja como cidadãos ou profissionais do direito.
Assim, acredito que esse conhecimento não seja relevante apenas para aqueles que exercem profissões jurídicas tradicionais, mas também para o exercício da cidadania. Isso aumenta o valor que atribuímos aos nossos direitos, como o direito de greve – uma conquista histórica pela qual muitas pessoas deram suas vidas – bem como o direito ao voto. É por isso que devemos repudiar a ditadura, sentir aversão por ela, pois sabemos que pessoas morreram e atrocidades ocorreram para que pudéssemos desfrutar desses direitos hoje. É por isso que é tão importante defender os direitos fundamentais, como o tratamento de indivíduos presos, porque conhecemos a maneira como o sistema acusatório funcionou durante grande parte da história deste país.
INB: Recentemente, o senhor publicou o livro Hans Kelsen no Brasil: 1934 – 1949. Como você avalia a influência de Kelsen durante os debates que caracterizaram a Assembléia Constituinte que idealizou a Constituição de 1934?
Gustavo: É interessante notar que Hans Kelsen desempenhou um papel de destaque na Constituinte de 1934, embora não estivesse fisicamente presente neste momento. Sua influência foi notável, e os parlamentares frequentemente o mencionaram e fizeram referência a ele. Um parlamentar, por exemplo, chegou a descrevê-lo como “o príncipe do direito constitucional”. Assim, citar Kelsen durante a Constituinte era um argumento de autoridade muito utilizado pelos deputados ali presentes. Além disso, Kelsen teve outra participação significativa nesse processo, relacionada ao debate de 1933. Houve uma discussão constitucional crucial sobre a soberania da Assembleia Nacional Constituinte. Isso se referia à questão de saber se o decreto que convocava a Constituinte poderia impor limitações a ela, o que, essencialmente, era uma discussão de teoria do Estado.
A pergunta central era se a Constituinte tinha total liberdade para tomar decisões sem restrições. Na época, foi-lhe enviada uma carta contendo essas perguntas e ele respondeu com um parecer sobre o debate constituinte no Brasil em 1933, publicado em 1934 em uma revista jurídica. Assim, além de ser um personagem constantemente citado, Kelsen também contribuiu com um parecer que foi lido na Constituinte e representou, de certa forma, os debates em curso naquela época.
O parecer escrito por Kelsen buscava responder, essencialmente, se a Assembleia Nacional Constituinte era soberana em suas decisões ou se o decreto que a convocava impunha limitações a ela. Por exemplo, o decreto estabelecia que uma Constituição republicana com determinada estrutura deveria ser elaborada. No entanto, uma pergunta simples não foi feita: e se a Assembleia quisesse estabelecer uma monarquia? Seria permitido? Já naquela época, havia discussões sobre se o decreto emitido pelo governo provisório de Getúlio Vargas restringia a Assembleia Constituinte.
Kelsen e outros professores da época responderam que a Assembleia Nacional Constituinte não era soberana e que estava sujeita a restrições impostas pelo poder que a convocava. Em outras palavras, as ações principais da Constituinte podiam ser delimitadas pelo poder revolucionário que a instituiu. De maneira geral, as questões giravam em torno da dúvida se a Assembleia Constituinte tinha total autonomia para tomar qualquer decisão que desejasse. A resposta de Kelsen e de outros foi negativa; a Constituinte era limitada em suas ações.
INB: Hans Kelsen ainda hoje é visto pejorativamente como um formalista. De que modo a abordagem histórica pode combater essa visão e, assim, alargar o horizonte de pesquisa sobre as ideias do autor?
Gustavo: Hans Kelsen é um autor que já foi acusado de inúmeros rótulos, desde comunista, liberal, estadista, formalista. Ele mesmo assumia que, durante a vida, recebeu todas as críticas possíveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, ele foi investigado pelo FBI por suspeita de comunismo. Além disso, ele possui um livro que trata da teoria comunista do Direito, que, na verdade, é uma crítica ao comunismo no campo jurídico.
Como se vê, o autor recebeu muitos rótulos ao longo de sua carreira, mas foi pouco lido na década de 1940, por exemplo. Sobral Pinto, um importante teórico da época, acusou Kelsen de favorecer os regimes totalitários com sua teoria. No entanto, essa acusação é questionável, especialmente considerando o contexto em que ocorreu.
Do meu ponto de vista, a obra de Hans Kelsen no Brasil foi excessivamente rotulada, mas pouco estudada e compreendida. Eu não me sinto capaz de rotulá-lo justamente porque ele é um autor complexo, que aborda diversos temas em várias direções e que, em alguns momentos, altera suas opiniões. No entanto, posso afirmar que esses rótulos acabam prejudicando a compreensão de sua obra.
Seu arcabouço teórico era muito amplo. Por exemplo, quando Kelsen visitou o Brasil em 1949, um dos principais temas de sua palestra foi o Direito Internacional, uma vez que ele foi professor de Direito das Gentes. É curioso notar como ele era conhecido no Brasil como o autor da Teoria Pura do Direito, apesar de sua ampla abordagem em várias áreas do Direito.
Portanto, acredito que devemos abordar os autores com menos ênfase em rótulos e mais ênfase em evidências concretas. Devemos analisar o que eles disseram em contextos específicos, levando em consideração as nuances de suas opiniões e contribuições.
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