A sessão “INB na cabeceira” dedica-se a contar a trajetória de pesquisa dos professores e colaboradores do Instituto Norberto Bobbio a partir da recordação de suas leituras mais marcantes. Dessa forma, no dia 23 de fevereiro de 2023, a pesquisadora Blenda Santos se reuniu com a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, para contar sua história de formação. Para contar essa história ela apresentou como marcos referenciais, os livros essenciais de sua vida. Blenda foi professora no curso Democracia e Internet, produzido pelo Instituto Norberto Bobbio em parceria com o Politize!
O início
Acho que a primeira coisa importante de destacar é que toda a minha formação acadêmica foi realizada em Salvador. Nessa cidade, onde eu nasci e fui criada, realizei a educação básica, a graduação e a pós-graduação. Foi também nessa cidade onde adquiri o gosto pela leitura e pela escrita. O que é curioso, porque, apesar de ser a maior incentivadora para que eu me tornasse uma leitora ávida, minha família não tinha condição financeira para comprar uma quantidade significativa de livros em curtos períodos de tempo – eu lia muito rápido e meus pais achavam isso ‘fora da curva’. Então, não era incomum ouvir deles frases como: “Nossa, você já terminou esse livro? Mas nós acabamos de obtê-lo.”.
Além de gostar de ler, esse hábito sempre me ajudou a ocupar outros espaços. Através dos livros, encontrei novas formas de identificação e possibilidades de construir histórias e utopias. Isto me permitiu entender melhor o mundo e a mim mesma. E, na medida em que cresci, a importância da leitura continuou evidente para mim. Durante o ensino médio e a graduação, eu continuei a desenvolver esse hábito, até que eventualmente me tornei pesquisadora. Seguir a carreira acadêmica foi como realizar o sonho de infância de estar sempre em meio às palavras, refletindo e propondo novas interpretações sobre o mundo.
Nesse contexto, ao pensar sobre o processo de me tornar leitora e pesquisadora, um dos primeiros livros que me marcaram profundamente foi O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder. Eu o li pela primeira vez nas aulas de filosofia do ensino médio e foi por meio dele que o universo filosófico se apresentou para mim. Foi através dele que me deparei com questões mais complexas sobre como entender o mundo e as relações sociais, e sobre como compreender a minha relação com o mundo, com a natureza e com a minha comunidade. Este livro também foi muito importante para começar a pensar a construção de conhecimento e de poder a partir da filosofia. Pretendo relê-lo.
A graduação e o ativismo
Já na graduação em direito, durante as aulas de filosofia e antropologia, outro livro me marcou. Trata-se de O Preconceito, uma antologia publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo que reúne textos de diversos autores que participaram do simpósio de mesmo título na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cada capítulo apresenta, portanto, contribuições de personalidades como Ruth Cardoso, Marilena Chauí e Milton Santos. No entanto, o primeiro capítulo que li, por indicação do meu professor à época, chama-se As Cidadanias Mutiladas. Este capítulo foi escrito por Milton Santos, meu conterrâneo, e discute a construção da cidadania no Brasil. Tal leitura me impactou à época porque debate as diferenças de tratamento entre os cidadãos em nosso país. Assim, trata sobre cidadania a partir das relações étnico-raciais, de classe e de gênero. Este livro me ajudou a refletir sobre as dinâmicas sociais e despertou meu interesse para estudar ainda mais essas questões. Anos depois, ainda na graduação, quando comecei a participar de grupos de pesquisas, pude revisitar essa leitura sob indicação da minha orientadora e coordenadora de um dos grupos de pesquisa ao qual era vinculada. Na primeira vez que o li, eu não tinha a versão física, mas a minha orientadora me deu a sua própria cópia de presente.
Os anos em que estive na faculdade de direito foram especialmente importantes para a minha “cabeceira de livros”, pois nesse período muitas leituras me marcaram e contribuíram para quem eu sou hoje. Isto porque, no mesmo período, eu me tornei ativista de direitos humanos e comecei a atuar na Anistia Internacional. Naquela época, uma das campanhas que realizamos – chamada Jovem Negro Vivo – pautava o genocídio da juventude negra no Brasil, então muitas das obras que eu li transformaram o meu modo de pensar os direitos humanos e de fazer “revolução”.
Ser uma ativista em nossa sociedade, é importante ressaltar, exige mais do que desejo e coragem, exige conhecimento e sabedoria. Sem esses elementos, é muito difícil transformar realidades. E é por isso que muitos(as) grandes ativistas foram e são também intelectuais. Ou, como acredito e descrevo na minha dissertação de mestrado, ativismo é a transformação da realidade por meio da prática e da teoria. Talvez por essa razão a leitura e a escrita sempre tenham sido importantes pra mim, desde a infância. Porque foi através delas que eu pude imaginar e só então colocar em prática a mudança que eu gostaria de ver e viver.
Assim, a leitura foi também essencial para o meu ativismo enquanto ainda estava na graduação. Uma dessas leituras é Mulheres, Raça e Classe da Angela Davis, que trata sobretudo da experiência de mulheres negras na sociedade estadunidense, mas que se tornou essencial para discutir direitos e relações internacionais. O segundo livro que gostaria de mencionar chama-se Subordinação racial no Brasil e na América Latina: o papel do Estado, o Direito Costumeiro e a Nova Resposta dos Direitos Civis da Tanya Katerí Hernández. Nessa obra, Hernández, que é professora de direito nos Estados Unidos, apresenta e discute como o direito e a aplicação da legislação penal foram cruciais para o desenvolvimento e a manutenção das desigualdades raciais no Brasil e na América Latina. Este é um aspecto que torna a leitura muito interessante e que nos permite refletir sobre a dimensão do papel estatal nas desigualdades que ainda hoje ameaçam e violam direitos fundamentais. Foi uma leitura muito ativa para mim, especialmente para a formação da minha militância.
Uma terceira obra que marca o meu ativismo – e que integrava a lista de leitura da Anistia Internacional – é o Bela Baderna: Ferramentas para a revolução, organizado por Andrew Boyd e Dave Oswald Mitchell. Este não é um romance tampouco um livro acadêmico, mas nos auxilia a refletir sobre diferentes formas de mobilização e ativismo. Eu sempre o indico para pessoas que são ou desejam ser ativistas, ou que trabalham com mobilização social e garantia de direitos, porque a gente se depara com outras maneiras de mobilizar e praticar a incidência política.
O mestrado
Já no mestrado, entrei em contato com outro livro importantíssimo para mim que se chama Por um feminismo afro-latino-americano. Trata-se de uma coletânea de textos da Lélia Gonzalez, organizada pela Flávia Rios e pela Márcia Lima. Lélia Gonzalez é uma dessas grandes referências brasileiras – e mundiais – que “fizeram ativismo” através da prática e da teoria, e os seus textos são de fundamental relevância na minha formação. Gonzalez é, inclusive, uma das ativistas que eu analisei de forma mais detida em minha dissertação de mestrado.
Defendida em 2021, a dissertação trata sobre o ativismo de mulheres negras em uma perspectiva comparada entre Brasil, Alemanha e Estados Unidos, e foi premiada duas vezes – em 2022, pela Associação Brasileira de Relações Internacionais, e em 2021 pelo Prêmio Lélia Gonzalez de Manuscritos Científicos sobre Raça e Política. Ao analisar a vida e a obra de Lélia Gonzalez (Brasil), Claudia Jones (Trinidad/Estados Unidos/Inglaterra) e May Ayim (Alemanha), pude refletir sobre a minha própria identidade, sobre o meu ativismo e sobre o processo de adquirir conhecimento e se tornar uma referência intelectual. Tais questões são especialmente complexas e marginalizadas quando se trata de mulheres negras. Assim, além de Lélia Gonzalez e Claudia Jones, ler May Ayim foi muito potente ao longo da escrita da dissertação.
O trabalho de May Ayim ainda é pouco conhecido, internacionalmente e no Brasil, mas sua história e o seu ativismo são muito importantes para a história da Alemanha e para a história da população negra alemã. O que, de certa forma, é triste porque a maior parte do seu trabalho ainda não foi traduzido ao inglês e tampouco ao português – o que infelizmente ainda é muito comum quando se trata das contribuições realizadas por mulheres negras. Muitos dos trabalhos de Ayim ainda estão disponíveis apenas em alemão, o que dificulta a sua disseminação. Ainda assim, indico duas de suas obras que tive a oportunidade de ler no mestrado, uma em alemão e outra em inglês: a primeira chama-se Grenzenlos und unverschämt e a segunda é Showing our colors: Afro-German Women Speak Out. Esta última ela assinou com o sobrenome “Opitz”.
Os livros essenciais da cabeceira
Ainda que tenha sido uma experiência transformadora na minha vida, em diversos sentidos, confesso que após concluir o mestrado, precisei me afastar um pouco das leituras acadêmicas e do ativismo. Muito pouco, porque continuei atuando como pesquisadora em direitos humanos nos espaços em que atuei e atuo – o que demanda leitura e capacitação constantes. No entanto, quando se trata de direitos humanos e de questões que nos atravessam diretamente enquanto indivíduos, a exaustão pode nos levar a buscar outras leituras e outros espaços.
Foi o que fiz nos anos seguintes à conclusão do mestrado: comecei a explorar outros assuntos, o que me ajudou a conhecer novas técnicas para superar a exaustão e a conseguir, aos poucos, retomar algumas leituras mais densas. Assim, um dos livros que terminei recentemente e que discute e compartilha essas técnicas, chama-se O caminho do artista, da Julia Cameron. Esse livro me ajudou a me reconectar com a arte, com a minha escrita e com o meu trabalho de formas criativas, que, por conta da rotina, acabamos esquecendo ou ignorando com o passar do tempo.
Por fim, além de O mundo de Sofia, que desejo reler após tantos anos, outros livros estão na minha ‘cabeceira’ e integram a minha lista de leitura. No entanto, essa lista nunca está totalmente definida porque assim como a vida se transforma de acordo com os acontecimentos, as nossas prioridades de leitura também podem mudar de acordo com as transformações e os acontecimentos em nossas vidas. De qualquer forma, espero que a leitura continue a desempenhar um papel importante na minha vida e na vida de todas as pessoas que eventualmente se beneficiem dela – e dos trabalhos com os quais eu posso contribuir através dela.