No dia 21 de março de 2023 a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, conversou com a professora Andrea Guerra sobre a Psicologia Social em interface com a Psicanálise.
INB: O século XX foi marcado por grandes inovações no âmbito da psicanálise e da teoria social. Qual é a relação entre essas duas áreas do conhecimento?
Andrea: É interessante retroceder e analisar o panorama das sociedades nos séculos anteriores para notar as discrepâncias no desenvolvimento global. Nos séculos XV e XVI, os significativos avanços das grandes navegações abriram novas fronteiras e introduziram a possibilidade de uma reavaliação do mundo. Além disso, eles estabeleceram as bases para o desenvolvimento científico nos séculos seguintes. Esse paradigma de ciência criou métodos e lógicas que permitiram à humanidade superar abordagens míticas da realidade e o método cartesiano, especialmente, estruturou as bases para um procedimento mais metodicamente adquirido.
No entanto, esse processo não ocorreu de maneira uniforme. Enquanto alguns países avançaram com descobertas inovadoras, outros sofreram destruição, invasões e desvalorização dos seus próprios conhecimentos. Portanto, antes de discutir a psicanálise do século XX, é relevante compreender um conjunto de ideias que levou à transição de uma abordagem empírica de busca direta de explicação do mundo e dos fenômenos sociais para uma abordagem mediada pela racionalidade da ciência moderna. Essa ciência instrumentalizada oferece perspectivas para interpretar a realidade com base em dados objetivos e supostamente neutros. Isso foi evidente não apenas nas ciências humanas e sociais, mas também nas ciências exatas e biológicas.
No entanto, ao aspirar à universalidade, esse modelo desqualifica outras formas de conhecimento e representação. Os saberes originários de povos indígenas, rituais derivados de diferentes sistemas de crença e enfoques da realidade foram cada vez mais substituídos por um modelo hegemônico de pensamento. Nesse ambiente de solidificação científica, surgiu o campo da psicologia no século XX, cujo olhar que examina o mundo muitas vezes não reconhece que também há mediação em sua própria perspectiva. Portanto, o conhecimento científico, ainda que aspire à universalidade, está sempre referido a uma estrutura, a um contexto, a uma lógica característica do campo em que se desenvolve.
Os avanços científicos nos contextos europeu e norte-americano do século XX provocaram uma investigação inicial sobre a subjetividade, a partir da categoria da percepção. Tal processo deu origem à psicologia e, ao mesmo tempo, à psicologia social, inaugurando distintas matrizes do pensamento psicológico, como a mecanicista, funcionalistas, orgânica e vitalista, e outras ainda, como a estruturalista, de maneira multifacetada, segundo Luis Cláudio Figueiredo. Ao considerá-las como uma abordagem específica da realidade, precisamos lembrar que elas coexistem com outras formas de conhecimento não-científico de explicação, compreensão e intervenção sobre a realidade material concreta. Embora a fundamentação científica tenha se consolidado nos séculos XVII e XVIII, a psicologia como campo estruturado surgiu apenas no final do século XIX e no início do século XX.
Wilhelm Wundt é um dos principais nomes desse período fundacional. Professor alemão, construiu um laboratório em Leipzig em 1879 para pesquisar percepção. E, entre 1900 e 1920, ele escreveu Psicologia dos Povos, um extenso tratado que discute o evolucionismo social sob uma perspectiva que hoje é considerada preconceituosa, mas ao seu tempo, foi considerado o primeiro grande ensaio de psicologia social. Wundt classificou povos como primitivos ou evoluídos, do ponto de vista do darwinismo social, uma das bases do pensamento científico racializado. Apesar de todos os problemas que envolvem sua análise, tanto seu trabalho sobre percepção, quanto sobre a psicologia dos povos, é precursor e marcou a abertura do campo da psicologia.
Sigmund Freud, por seu turno, nascido no Império Austríaco, hoje República Tcheca, também contribuiu significativamente para a formação do campo. Ele estudou na França e realizou pesquisas em seu país de origem antes de migrar para a Inglaterra. Enquanto trabalhava com o francês Jean Martin Charcot, Freud percebeu dissonâncias entre as práticas médicas da época e as abordagens neurológicas, ao se deparar com sintomas psíquicos que não respeitavam as funções neurológicas e anatômicas. Ele começa, então, a investigar esse corpo estranho, atravessado pelo inconsciente, que permeia a experiência humana e não é diretamente percebido. Seus estudos sobre o tema deram origem a uma obra substancial.
Freud publicou A Interpretação dos Sonhos em 1900, que estabeleceu uma lógica para entender a realidade, embora parecesse flertar com suposições e superstições. Juntamente com Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, essas obras formam as bases iniciais do pensamento freudiano. Elas sugerem que nossa vida é moldada pela busca por satisfação, mesmo diante de proibições sociais e interditos superegóicos, gerando conflitos internos e respostas inconscientes.
Posteriormente, Freud desenvolve uma teoria mais complexa que inclui a repetição de movimentos que nunca produziram satisfação. Com isso, abriu uma nova perspectiva de entender a reprodução do mal-estar, tanto como sintoma individual, quanto como dificuldade de laço com o outro. Neste ponto, funda, no mesmo gesto, uma teoria social de interpretação da realidade pela via do inconsciente e de sua transformação, pela operação clínica. Para ele, a psicologia individual é também social.
Portanto, a relação entre a psicologia social e a psicanálise no século XX é complexa. A psicanálise reintroduz o sujeito, enquanto a psicologia busca a neutralidade científica. Esses campos coexistem e assumem diferentes formas e perspectivas ainda hoje sob investigação e intensas discussões e disputas.
INB: Quando falamos em psicologia, muitas vezes associamos o seu conteúdo apenas às questões subjetivas. Nesse sentido, qual é o significado e importância da psicologia social?
Andrea: Acho importante esclarecer que a psicologia social não é minha área de especialização, embora tenha estudado o assunto no mestrado. Apesar de trabalhar com a psicanálise, até hoje mantenho uma abordagem vinculada à psicologia social que me auxilia a construir ferramentas para ler e intervir sobre o mundo. É importante esclarecer esse ponto porque, se um psicólogo social respondesse a esta pergunta, provavelmente seguiria por outros caminhos.
O historiador Robert M. Farr desenvolveu uma tese demonstrando como a psicologia social é a matriz que contempla a interação. Essa abordagem visa compreender a subjetividade a partir das relações de dependência, determinação, influência, poder, opressão e hegemonia. Tais características se desenvolvem e evoluem constantemente, uma vez que a história da psicologia social é marcada por importantes pensadores que reformularam a abordagem interacionista. Apesar de haver uma vertente de integração, utilizo aqui o termo para descrever uma relação dialética e dialógica.
O interacionismo é uma das correntes da psicologia social. Portanto, quando menciono que a psicologia social considera a interação, não me refiro exclusivamente a uma teoria ou linha específica, mas sim a uma perspectiva que ultrapassa o nosso universo interno. É nesse lugar em que se encontram os medos, as angústias, os interditos conscientes ou inconscientes, as defesas que utilizamos para interpretar o mundo por meio do corpo, da linguagem e do ato.
A psicologia social sempre analisou o indivíduo a partir de um contexto político e econômico mais amplo. Isso estabelece um método no qual é impensável conceber o indivíduo desvinculado da realidade. O mundo interno somente faz sentido para a psicologia social quando considerado a partir do corpo, que é influenciado por questões de raça, de gênero e de classe. Quando um indivíduo expressa uma opinião, ela já é mediada pela cultura, hierarquia e poder hegemônico, etc. que controlam o uso e a circulação de seu corpo. A psicologia social tem a premissa de compreender essa correlação e é difícil pensar que ela se ocuparia apenas da subjetividade isoladamente, embora existam abordagens mais comportamentalistas e funcionalistas da psicologia social.
No contexto brasileiro, a perspectiva crítica obteve maior destaque e influência em termos de formação e disseminação. Acredito que a psicologia social, nos limites de sua abrangência, está essencialmente orientada por essa dimensão que resultou em grandes progressos. Ela é caracterizada, hoje no Brasil, por uma metodologia crítica e sócio-histórica, dialógica e dialética, que interage com teorias internacionais, e pode ser descrita como geopoliticamente situada e construcionista, no sentido de estar em constante movimento.
Em certo sentido, a psicologia social sempre se conecta por meio de diálogo e da interação. Com isso, busca compreender o que é afirmado e negado materialmente para emergir como um produto do conflito proveniente das tensões relacionais, sociais e de poder. Consequentemente, seus resultados não são imutáveis, definitivos ou universais. Eles continuam sendo uma reação a alguma forma de dominação, opressão, subalternização e negação.
É possível dizer que a psicologia social é uma obra em andamento. Tal característica pode ser aplicada à ciência de maneira geral, mas a especificidade do campo aqui reside em envolver o sujeito e o corpo social nos processos de auto e de heterodeterminação. Assim, noções como história, poder, opressão, representação e mais recentemente interseccionalidade, racismo, sexismo, dentre outras categorias no âmbito da psicologia social, vinculam-se a diversas escolas de pensamento, cada uma com sua própria abordagem.
Dentre os principais nomes do campo no Brasil, destaca-se Silvia Lane, uma importante pesquisadora que escreveu uma obra considerada um clássico, intitulada Psicologia Social: O Homem em Movimento, com raízes na psicologia russa e nas bases construtivistas de Jean Piaget e Lev Vygotsky Além disso, há uma outra abordagem conhecida como psicologia sócio-histórica, cada vez mais difundida no Brasil, com uma base dialética e marxista forte.
É intrigante refletir sobre como a psicologia e a psicanálise se desenvolveram em nações influenciadas por processos de colonização. Houve uma evolução singular na ciência, especialmente no século XXI, marcada pelo levantamento de um véu normativo que aparenta ser científico, mas, na verdade, oculta relações de poder, questões de gênero e dimensões da alteridade estratificadas pelas relações étnico-raciais. Gradualmente, começamos a perceber que o discurso científico, seja na psicologia social ou na psicanálise, reflete matizes e encobrimentos específicos de acordo com a cultura e o desenvolvimento científico local em movimento e relação com o desenvolvimento internacional dos respectivos campos.
Os estudos sobre racismo, por exemplo, foram assimilados pela psicologia social, porém sua história é extensa e remonta ao século XVIII. Concomitantemente ao estabelecimento da ciência como critério primordial e racional para descobrir a verdade dos fatos, surgia uma perspectiva preconceituosa disfarçada de cientificismo, conhecida como evolucionismo social ou darwinismo social. Essa concepção pressupunha que os países colonizados possuíam conhecimentos primitivos e precisavam evoluir em direção a formas de racionalidade e comportamento civilizados, emancipados. O que reduzia a diferença à deficiência, atraso.
A própria psicologia social, nos estágios iniciais das ideias psicológicas, revelou o quanto os primeiros teóricos da subjetividade enxergavam os indígenas por meio das lentes religiosas, considerando-os destituídos de alma, razão e de um repertório simbólico emancipatório capaz de influenciar suas ações. Os tratados examinados por historiadores nas ideias psicológicas precursoras da psicologia, incluindo estudos de jesuítas e acadêmicos de Coimbra, carregavam preconceitos ligados a uma visão do indígena e do negro escravizado como preguiçoso, incapaz, selvagem.
Essas percepções começaram a ser questionadas apenas no século XX, especialmente no que se refere às questões raciais definidas tanto por preconceitos ideológicos quanto científicos. As pesquisas biológicas no campo da genética foram cruciais para mostrar que não há evidências genéticas que sustentem as diferenças propostas pelo discurso racionalizado da ciência em termos fenotípicos, como distintos tons de pele entre brancos e negros. Desse modo, a discussão retorna ao ponto de partida: mesmo no âmbito genético, não há justificação para as disparidades mantidas pelo discurso racializado em nenhum âmbito.
Portanto, os estudos sociais demonstram que categorias como cor, raça e etnia são instrumentos de hierarquização do mundo em prol de modelos econômicos específicos de acumulação de capital. Não é possível desconectar o sujeito dos processos históricos, sociais, discursivos e econômicos. Nesse contexto, a psicologia social revela suas maiores complexidades com autores fundamentais que contribuíram para a construção dessa matriz crítica.
INB: Quais são as principais contribuições de Sigmund Freud no campo da psicologia social?
Andrea: Freud introduziu uma abordagem radicalmente inédita, com sua chamada metapsicologia e suas dimensões tópica, dinâmica e econômica. A tópica refere-se às relações entre os sistemas inconsciente e pré-consciente – consciente; a dinâmica, às relações entre id, eu, supereu e mundo externo; e a econômica à dualidade pulsional entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Como essa abordagem se relaciona com a dimensão social da época e com as implicações para a interpretação social de nossa era? O modelo freudiano revitalizou concepções pré-existentes sobre o inconsciente, conferindo-lhes uma nova estrutura, tanto em relação à analítica subjetiva, quanto às dinâmicas de poder. Essencialmente, postulou que há uma determinação inconsciente, uma força pulsional e energética interna que gera respostas subjetivas às influências do mundo externo, ao mesmo tempo em correlação com imperativos internos.
O foco principal dos estudos de Freud centrava-se na analise dos fenômenos e sintomas subjetivos, embora o termo “sujeito” não fosse amplamente utilizado por ele. Ele empregava mais frequentemente as palavras “eu” ou “ego” para se referir ao indivíduo – o que já mostra sua divisão numa não identidade de si a si. O conceito de sujeito é uma construção mais contemporânea e estruturalista no campo da psicanálise. Freud usava o termo “eu” para representar a instância que obedecia a uma ordem interna, conhecida como superego, que internaliza as proibições da cultura e do mundo externo. Assim, o superego tenta se impor ao ego e controlar os impulsos do id, sendo o ego um mediador das forças internas e externas.
Como essa dinâmica se articula ao tecido social. Tudo o que podemos observar no corpo social, pode gerar tensões internas no indivíduo. Portanto, todos nós somos divididos entre o que desejamos satisfazer e o que consideramos interditado ou proibido, consciente ou inconscientemente. Alcançar o equilíbrio entre desejos conflitantes é uma tarefa idealizada, pois eles sempre resultam em déficit ou excesso de satisfação. Estamos constantemente tensionados entre nós mesmos e o outro, com seu corpo legislativo.
Freud trabalhou com a ideia de mundo externo e mundo interno para introduzir a complexidade das instâncias do superego, ego e id, que são dinâmicas e determinantes da forma como o indivíduo se posiciona em relação à ordem social normativa. Isso significa que sua teoria não é puramente centrada no sujeito. Seria um equívoco pensar assim, pois no século XX, Freud, juntamente com Nietzsche e Marx, elaborou ideias que contestam a supremacia da razão e fundaram novas visões de mundo.
Cada qual à sua maneira, eles desenvolveram modelos teóricos de interpretação da posição do sujeito na sociedade. Nietzsche, com a vontade de potência; Marx, com a ideia de estrutura, sistema e lógicas que culminam no capitalismo como uma forma de pensar a dialética material; e Freud, com o conceito do inconsciente — esses três mestres da suspeita da razão moderna produziram sistemas de pensamento radicais, segundo Paul Ricoeur. Neles, destaca-se o conceito de “sociedade” que Freud chama de civilização. Isso é importante porque, na época, havia uma distinção entre os termos “civilização” e “cultura”. “Civilização” é uma expressão influenciada pela perspectiva franco-inglesa, incluindo a consideração dos efeitos da tecnologia e dos avanços das relações mecânicas e técnicas. Por outro lado, a palavra “cultura” mantinha uma tradição germânica mais ampla.
Feita essa observação, gostaria de enfatizar que o pensamento de cada um desses três mestres construiu um sistema teórico complexo para compreender o mundo. De modos distintos, eles tornam indissociáveis os conceitos de sujeito, homem ou indivíduo; sociedade, política e poder; economia, interesse e satisfação; acúmulo, potência e catexia. Definitivamente, Freud não se restringe a uma abordagem subjetivista ou psicologista da realidade social.
Existem textos clássicos, como Totem e Tabu, que discute a origem do laço social e da interdição que funda sua condição de possibilidade, e A moral sexual civilizada que se dedica à análise de contexto da estrutura de interditos sociais e seus efeitos subjetivos e relacionais, que exploram todas essas questões. Além disso, na obra freudiana, há reflexões sobre religião, educação, família, violência, poder e guerra, identificação e aço amoroso, desamparo originário e desejo de proteção, que configuram categorias centrais para o pensamento social. Especialmente em um texto tardio, O mal estar na civilização, Freud discute o superego, a sublimação, a agressividade e a pulsão de morte no laço social, a partir de sua incidência sobre o sujeito.
Além desses, há textos que discutem aspectos da religiosidade e da transmissão intergeracional, como Moisés e o Monoteísmo e outros sobre o antissemitismo. A partir dessas inovações de abordagem, Freud contribuiu enormemente para a fundação da psicologia social e sua concepção do ser humano como resultado de conflitos inerentes ao encontro com a alteridade. Seja entre o mundo externo e interno, entre o superego e o ego, ou entre o id e o superego, qualquer que seja a noção de sociedade ou de ser humano adotada em Freud, ela é sempre atravessada pela ideia de que toda psicologia individual é também social, como disse acima.
Freud incentiva a construção de um projeto de corpo social que leva em consideração as interações entre as diferentes estruturas, como a econômica, a societária e a subjetiva, entendendo a determinação pulsional e inconsciente como orientadora. Essa premissa, que também é desenvolvida em Moral Sexual Civilizada, estava implícita desde os primeiros momentos de sua teorização da psicanálise. A noção de que somos fruto da resposta aos conflitos inconscientes é central na visão proposta por Freud. Os conflitos sempre encontram soluções, mas elas nunca são perfeitas. Há um certo dinamismo que aponta para um elemento não equacionável, chamado de “pulsão de morte”.
Freud identificou que as principais fontes de mal-estar são a natureza, o corpo e a relação com o outro, uma vez que é impossível dominá-los totalmente. É mesmo o outro que se revela como fonte mais significativa de mal-estar. Encontrar maneiras para conviver não é fácil ou óbvio e as soluções nunca são ideais. A cada momento histórico, adaptamo-nos e encontramos maneiras de responder aos impasses que nascem da convivência com a diferença e com a alteridade que nos interroga em nossas certezas, em nossas identificações e em nossas crenças. A construção das respostas a esses impasses constrói ou fragiliza o laço social.
A contribuição de Freud permite também que, em nosso século XXI, a suspeita da razão desvende a ideia de um poder que se impõe como hegemônico, totalizante e dominante, no fundamento das relações econômicas, legitimando discursos e justificando ideológica e pulsionalmente desigualdades sociais profundas. Freud nos deu uma chave importante para pensar o mundo e o sujeito como corpo social permanentemente em conflito que exige uma reconstrução constante das relações. As ideias de Freud ajudaram os teóricos da pós-modernidade a duvidar da razão, repensar a filosofia da linguagem e entender que o mundo é uma representação, mas ela impõe limites ao uso do corpo, da linguagem e das relações.
Assim também Freud constitui ferramentas para ler o avesso da pós-modernidade, seu avesso colonialista, pintado por Frantz Fanon, de um mundo que, simbolicamente, criou a noção de hierarquia entre humanos, fundou uma zona do não ser e cujo poder destituiu sujeitos de sua própria condição de humanidade. Freud fala da redução do homem, pelo próprio homem, à condição de objeto da agressividade, da sevícia sexual, da exploração de sua mão de obra, em relações que podem se assentar no abuso, humilhação, sofrimento e tortura, podendo chegar à destruição. Homo homini lúpus, como prolongamento de uma leitura hobbesiana. Quem, em face de toda a sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção, ele pergunta.
Freud também fornece subsídios para pensar questões de gênero, visto que a anatomia não é suficiente para determinar o que é ser homem e mulher, embora haja discussões complexas e variações em relação a essa temática nos campos do estruturalismo e do pós-estruturalismo. No contexto do século XXI, as perspectivas interseccionais e outros sistemas de pensamento crítico emergem dessa matriz dos conflitos de gênero na construção de soluções, revisões e impermanências que inauguram novos interrogantes e percursos para o campo psicanalítico.
INB: Como a psicanálise pode auxiliar na crítica e transformação na sociedade?
Andrea: Acredito que tanto a psicologia social quanto a psicanálise ensinam, de perspectivas distintas, que há uma insuficiência no conhecimento racional para dar conta dos fenômenos sociais e conflitos da realidade. Elas mostram claramente que não é possível viver em um mundo dentro de uma lógica universal que se impõe como unívoca e para todos, longe da busca pela sutentação do comum na diferença.
Cada uma, à sua maneira, enfatizam o singular e o coletivo, a singularidade e a particularidade, como desafios ao universal. Isso significa que, tanto cada sujeito possui um funcionamento pulsional próprio e enfrenta desafios singulares para habitar um corpo discursivo comum, quanto o corpo discursivo encontra dificuldades em compor a regulação material e simbólica dos mosaicos em movimento de construção do comum.
Da mesma forma, a soma das características individuais, como raça, classe e gênero, não determina o universal. Cada uma dessas abordagens, revela a falta de completude ou a impossibilidade de alcançar uma posição universal para cada um na sociedade. A psicologia social contribui mostrando as desigualdades nas interações, nas opressões e nos sistemas de representação que hierarquizam o mundo. Ela denuncia como a acumulação de vantagens, capital e poder resulta em lógicas opressivas, excludentes e segregacionistas. Para impedir sua completa dominação, a luta social é essencial.
Por outro lado, a psicanálise mostra que o sujeito está dividido e enfrenta o impacto dessa divisão e da impossibilidade do bem comum. Independentemente do modelo adotado, como o aristotélico, o kantiano ou o utilitarista, a psicanálise destaca que não é suficiente projetar externamente nosso mal-estar e criar inimigos para serem seus depositários, aliviando nossa angústia. Eliminar os inimigos não resolverá o mal-estar estrutural, porque a pulsão de morte é intrínseca ao laço social e, pois, ineliminável. Portanto, a psicanálise ensina que é necessário que cada sujeito se engaje no processo de transformação social com sua cota de responsabilidade.
Talvez ela seja, no século XXI, a grande teoria da transformação, pois explora como a transformação ocorre na experiência subjetiva mais íntima e se compõe assim como estratégia política. A psicanálise sugere que o interno e o externo não são distintos, mas estão entrelaçados em uma contínua interação. Isso nos oferece uma ferramenta para enfrentar os ideais alienantes e construir posições emancipatórias. Ao compreender os conflitos constantes entre nós e o mundo, podemos encontrar novas soluções para antigos e eternos problemas.
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