No dia 27/03 , a pesquisadora do INB, Júlia Albergaria, se reuniu com o professor José Garcez Ghirardi para contar sua história de formação. Para contar essa trajetória ele apresentou como marcos referenciais, os livros mais fundamentais de sua vida. O poder da literatura, nada mais, nada menos.
Apaixonamento pela literatura
Minha paixão pela literatura começou muito cedo. Lembro-me de um episódio que talvez tenha sido o momento decisivo para o surgimento dessa paixão . Eu deveria ter por volta de dez anos de idade – eu era tão pequeno que meus pés não alcançavam o chão quando sentava no banco que havia da casa da minha tia. Um dia, ela me presenteou com uma edição para crianças da Melhoramentos, ilustrada por Gustave Doré, de Dom Quixote de la Mancha. O livro era fininho (era uma edição bem condensada, dirigida, como disse, ao público infanto-juvenil), mas era também um livro bem grande, as folhas maiores do que as que a gente encontra num dicionário como o Aurélio, por exemplo.
Folheando aquelas páginas, sentado na cadeira, me senti completamente fascinado pela figura daquele senhor de idade, emaciado, com uma biblioteca ao fundo, tendo um livro em uma mão e uma espada erguida na outra. Ainda hoje, acho essa ilustração de Doré muito bela, poderosa e poética. Imagem e texto me tocaram profundamente. Essa obra me marcou, e foi o início início de meu amor intenso pela literatura. Desde então, compreendi que ela nos torna humanos de uma forma muito profunda.
Um outro momento que me marcou foi quando uma minha irmã me presenteou com o uma coletânea de Fernando Pessoa, um escritor que se tornou fundamental em minha vida. Se Quixote me abriu as portas para o romance, Pessoa me fez compreender a beleza única da poesia. Além das obras de Pessoa, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez e As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa me impactaram profundamente quando os li, em minha juventude e início da idade adulta.
Também tenho uma forte relação com a produção de William Shakespeare, assim como com a literatura inglesa do século XIX. Tive contato com esses textos, de maneira mais estruturada, quando cursei Letras – Literaturas de Língua Inglesa, na USP. Esse foi o meu percurso de apaixonamento pela literatura. Acima de tudo, o convívio com os livros, desde cedo, me pareceu um permitir vivências e reflexões de enorme complexidade e beleza, e acredito que isso é indispensável para todos nós.
Formação como pesquisador
Enquanto me formava como pesquisador, minhas leituras eram muito erráticas e eu me interessava por muitos assuntos simultaneamente. Mas quem gosta de ler sobre uma coisa só? Nessa época de formação, li um livro que exerceu uma grande influência sobre minha forma de pensar: a História da Loucura de Michel Foucault. Mesmo sendo uma leitura da juventude, ela me proporcionou uma chave que me pareceu muito relevante para interpretação do mundo e das relações humanas.
Um outro livro que para mim foi fundamental, embora menos conhecido do grande público, foi A sátira e o engenho do professor João Adolfo Hansen. Hansen faz uma análise muito sofisticada da obra de Gregório de Matos e de seu contexto de funcionamento. Esse estudo me ajudou a refletir sobre a convencionalidade da linguagem, o funcionamento da literatura e sobre a forma como ela nos constitui individual e socialmente.
Dentre as obras mais diretamente filosóficas penso que Sources of the Self – The Making of Modern Identity de Charles Taylor tenha sido um dos textos – excetuados os clássicos, é claro – que mais me impactou. Trata-se de uma reflexão poderosa sobre as matrizes filosóficas da formação da subjetividade moderna. Ele ele continua sendo um referencial importante, que ajuda a pensar a crise social e política que hoje vivemos.
Também considero indispensável, A Grande Transformação, de Karl Polanyi. Esse livro aborda de forma impactante a formação do modelo econômico e da ideia de mercado que temos atualmente. Do ponto de vista metodológico, uma leitura central me parece ser A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn.
Leituras do Direito
No contexto jurídico, aprecio bastante a elegância e agudeza do O Conceito de Direito de H. L. A. Hart. Ele auxilia a estruturar o debate, ajudando a melhorar os argumentos tanto de quem concorda, quanto de quem se opõe a ele. Uma teoria da justiça, de John Rawls, é um livro de uma generosidade e sofisticação enormes. Mas também quero destacar a minha admiração pelo próprio Norberto Bobbio. Trata-se de um autor que vai além do campo do Direito. Ele está sempre aberto para o mundo e leva em consideração, com particular agudeza, as relações entre poder e justiça. Isso é fantástico, sobretudo porque Bobbio sempre respeita a especificidade do jurídico.
Melhor dizendo, Bobbio entende que o Direito é relevante e precioso para nossa sociedade. Ele ainda possui grandes qualidades no que diz respeito à elegância de sua escrita. Para os adeptos à leitura de suas obras, penso que Era dos Direitos seja uma boa compilação.
José Garcez Ghirardi
Antes de avançarmos aos textos ficcionais, eu diria que gosto bastante dos escritos de Terry Eagleton sobre teoria literária, assim como seu Ideologia: uma introdução, que é bastante acessível.
A importância de ler ficção
Sempre leio ficção, e penso que seja muito importante que todos leiamos literatura o tempo inteiro. Digo isso porque, para além do prazer estético e da ampliação da visão de mundo, sem esse convívio com a ficção – a meu juízo, claro -, não é possível entender a teoria. Desenvolver nossa capacidade imaginativa é indispensável para conseguirmos estruturar um pensamento rigoroso.
Vale dizer, em minha visão, a oposição entre pensamento rigoroso (que geralmente se associa à ciência) e capacidade imaginativa (que geralmente se associa à literatura e à arte, de maneira geral) é falaciosa. Penso que esta segunda é a condição da primeira. Portanto, temos que lidar com a ficção, porque isso diz respeito ao que somos.
Os livros abandonados
Dificilmente abandono um livro, mas em minha extensa lista de defeitos posso incluir o de por vezes descartar, preliminarmente, algumas obras. De antemão já decido o que não vou ler, mais ou menos na linha do Oswald de Andrade: “não li e não gostei”. Há certos gêneros – romance muito açucarados ou didáticos, por exemplo – que não me encantam. Prefiro dedicar meu tempo de leitura a gêneros literários que fazem mais sentido para mim. Sei que há um lado ruim, empobrecedor nisso: é possível que tenha perdido a oportunidade de ler textos muito bons. Consciente desse meu limite e dos riscos que ele traz, peço aos meus amigos que me convençam do mérito dessas obras que, em princípio, não me encantam. Muitas vezes, eles fazem exatamente isto – o que me alegra muito.
A leitura da cabeceira
No momento, preparo um curso sobre Romeu e Julieta e por isso esse livro está na minha cabeceira. Ao mesmo tempo, estou lendo os contos de T.C Boyle. Na correria do dia-dia, gosto de ler, até pegar no sono. Esse mesmo autor escreveu um romance de que gosto muito: East is East.
Atualmente, estou também fascinado com a leitura do maravilhoso A Condição Humana,de Hanna Arendt. De todo modo, Romeu e Julieta continua na minha cabeceira: é realmente espetacular, e não deixa de me comover, mesmo tendo trabalhado com ele diversas vezes.
Assim, penso que a leitura e nossa relação com a literatura, assim como os grandes amores, é algo em constante transformação. Toda leitura modifica o leitor, toda releitura modifica a leitura, e desperta o encantamento da paixão que se sentiu naquele momento primeiro de descoberta de uma beleza que nos arrebata. Eu considero isso sensacional, não só na literatura, como na vida.
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